Delação de Cid deixa Bolsonaro exposto à Justiça
O Globo
É preciso investigar acusação do ex-ajudante
de ordens que implicou ex-presidente na conspiração golpista
Ao longo de quatro anos de mandato, Jair Bolsonaro atacou instituições republicanas, tentou minar a credibilidade do sistema eleitoral brasileiro, interpretou a Constituição de modo errático e usou organismos de Estado como se lhe pertencessem. Sempre amparado por uma rede de colaboradores leais, dispostos a tudo — ou a quase tudo — para blindá-lo. Agora, a rede de proteção rompeu-se, deixando Bolsonaro exposto. A ruptura vem do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. Cid fechou acordo de delação com a Polícia Federal (PF). Pelo conteúdo que veio à tona, Bolsonaro terá muitas explicações a dar à Justiça.
A principal acusação de Cid, revelada
pela colunista do GLOBO Bela Megale, atribui a Bolsonaro a
tentativa de obter apoio das Forças Armadas para se manter no poder, impedindo
a posse de Luiz Inácio Lula da Silva. De acordo com o depoimento de Cid,
Bolsonaro se reuniu com os comandantes de Exército, Marinha e Aeronáutica e
ministros militares para sondá-los sobre a adesão a uma minuta de decreto com
base no artigo 142 da Constituição que, na versão delirante de bolsonaristas,
daria às Forças Armadas um “poder moderador”. Na delação, Cid disse que o
comandante do Exército se recusou a participar da conspiração, e o da Marinha
afirmou estar pronto a aderir.
É certo que a palavra de um delator não pode
ser tomada como retrato fiel da verdade, muito menos é suficiente para
incriminar quem quer que seja. Diante dela, porém, a Justiça não pode se manter
inerte. Cada uma das acusações de Cid precisará ser investigada a fundo. E
desde já há indícios de que algumas são verossímeis.
O primeiro é a minuta do decreto de Estado de
Defesa encontrada na casa do ex-ministro Anderson Torres, preso sob acusação de
omissão ante os ataques do 8 de Janeiro, quando secretário de segurança do
Distrito Federal. A minuta tentava dar um verniz jurídico a uma intervenção
militar no TSE para anular a eleição. Cabe à polícia investigar se foi o tema
da reunião. Por paradoxal que possa parecer, a nota divulgada pela defesa de
Bolsonaro pode ser vista como elemento a corroborar a delação. Não desmente Cid
cabalmente, nem diz que a reunião jamais ocorreu. Prefere afirmar que Bolsonaro
sempre atuou respaldado na Constituição. São palavras ambíguas, pois, na visão
torta dos bolsonaristas, a intervenção militar descabida tinha amparo legal.
Um segundo indício são os documentos e áudios
extraídos pela PF do celular do próprio Cid. Entre eles, outra minuta, de um
Decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), mecanismo usado para acionar
militares em situações críticas de segurança. Outra frente de investigação diz
respeito à venda das joias e presentes recebidos por Bolsonaro como chefe de
Estado. De acordo com a revista Veja, Cid disse na delação ter entregado “em
mãos” a Bolsonaro o dinheiro da venda de dois relógios vendidos no exterior.
Também afirmou não saber que isso era ilegal. E há, por fim, a fraude,
reconhecida por Cid, nos cartões de vacinação de Bolsonaro e de sua filha
Laura.
Se as acusações forem confirmadas, a delação
desse personagem do círculo íntimo de Bolsonaro terá caráter pedagógico. Poderá
mostrar ao Brasil as consequências do desprezo aos princípios republicanos e do
uso das instituições em benefício próprio — seja para tramar um golpe, seja
para transformar o Planalto em camelódromo.
Percepção dos juízes sobre a própria
remuneração é distante da realidade
O Globo
Mesmo integrando a elite do serviço público,
pesquisa do CNJ constatou que três em quatro estão insatisfeitos
Três em cada
quatro juízes brasileiros consideram que recebem remuneração abaixo da
adequada, revelam dados preliminares do Segundo Censo do Poder
Judiciário, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ),
divulgados nesta semana. Levando em conta que esse tipo de percepção costuma
ser influenciada por fatores como tempo de formação, carga de trabalho, tempo
de serviço ou planos de carreira, não surpreende que quase todos os
trabalhadores se mostrem insatisfeitos com seus salários. Nesse caso, porém, a
insatisfação vem justamente da elite bem aquinhoada do funcionalismo.
Cada juiz ou desembargador custa por mês em
média R$ 69,8 mil aos cofres públicos, segundo dados do próprio CNJ. É verdade
que o valor inclui remunerações, indenizações, encargos sociais,
previdenciários e despesas com viagens a serviço. Mas isso não torna a conta
menor. Levando em conta apenas a remuneração média total, os juízes estão com
folga no grupo que reúne 1% dos brasileiros com maior renda.
A percepção sobre a própria remuneração varia
conforme o setor do Judiciário. A maior insatisfação está na Justiça do
Trabalho, onde quase 90% estão insatisfeitos. Na Justiça Federal, o percentual
também é alto (86,2%). Na Militar, em contrapartida, pouco mais de um terço
(34,4%) considera inadequada a remuneração. A pesquisa expõe também o
desconforto dos juízes com a carga de trabalho. Quase quatro em cada cinco
(79,7%) a consideram alta.
Não se questionam a competência e dedicação
dos magistrados, tampouco o direito a serem bem remunerados. Nem se ignora o
volume de processos a que são submetidos diariamente num país em que qualquer
conflito deságua na Justiça. Mas não se pode perder de vista que os juízes
integram a parcela mais privilegiada do funcionalismo. A Constituição
estabelece um teto salarial, infelizmente driblado por meio de todo tipo de
penduricalho. Um estudo de 2020 mostrou que, a cada dez salários de
magistrados, sete superam o teto.
De acordo com estudos comparativos, o Brasil
tem a Justiça mais cara do mundo. O Judiciário brasileiro custou 1,2% do PIB em
2021, o correspondente a dez vezes a despesa da Argentina e nove vezes a dos
Estados Unidos. Qualquer reforma administrativa que se preze deveria começar
pela eliminação das regalias que encarecem nossa Justiça.
As benesses dadas a juízes já foram alvo de
críticas do próprio Supremo Tribunal Federal (STF). Recentemente, o ministro
Gilmar Mendes defendeu o fim das férias de 60 dias, e a presidente da Corte,
ministra Rosa Weber, repudiou a aposentadoria compulsória remunerada. Foram
manifestações bem-vindas, que deveriam servir de exemplo aos demais
magistrados. Infelizmente, a pesquisa do CNJ mostra que a imagem que o
Judiciário faz de si mesmo ainda passa ao largo da realidade.
Dólar na balança
Folha de S. Paulo
Produtos primários geram recordes em
exportações, mas diversificação é desejável
Os resultados do Brasil no comércio exterior
têm sido e devem ser, até o final deste ano, excelentes para nossos padrões. As
exportações brasileiras chegaram a US$ 334 bilhões nos últimos 12 meses, o
equivalente às vendas de 2022.
Trata-se de desempenho quase 48% superior ao
de 2019, antes das perturbações causadas pela pandemia e pela guerra na
Ucrânia.
Como proporção do PIB, o valor está próximo
dos 17% registrados em 2022 e 2021, os maiores em pelo menos um quarto de
século.
Apesar das quedas de preços de produtos, até
agosto o valor total das exportações aumentou ainda 0,7% em relação ao mesmo
período de 2022; o das importações caiu mais de 10%. Assim, o saldo da balança
comercial está próximo de inéditos US$ 80 bilhões, em termos anuais. Em 2022,
havia sido de US$ 61,5 bilhões.
É possível que parte da queda do valor
importado esteja associada ao fraco desempenho recente do investimento
produtivo e do consumo de bens duráveis. É um aspecto negativo do superávit.
Os bons
resultados se devem ao sucesso de setores da agricultura e de
energia. Soja e farelo de soja foram 18,8% do total exportado (até agosto);
petróleo bruto e óleos combustíveis, 14,8%. Há uma década, a participação da
soja era de 12,9%, e a parcela do petróleo era de 6,4%, pouco maior do que a de
carnes (bovinos, aves e suínos). Agora, mais do que dobrou, ultrapassando a do
minério de ferro.
A corrente de comércio, soma de exportações e
importações, ronda os 30% do PIB. Embora tal indicador deva ser tomado com
precaução, por ser influenciado também por variações cambiais abruptas, parece
seguro dizer que o comércio exterior tem mais relevância na economia, por
variados canais.
O peso maior
das transações comerciais implica algum risco. A queda do preço
ou do consumo mundial de produtos nacionais pode causar variações negativas no
ritmo da atividade.
A China é o maior destino das vendas
brasileiras, com 30,2% do valor até agosto; os Estados Unidos vêm em segundo,
com 10,5%, e a Argentina fica com 5,6%. Em 2001, quando os chineses entravam na
OMC, o país comprava somente 4,9% das exportações do Brasil.
Uma análise elementar sugere que seria
conveniente diversificar as exportações. Para isso, é preciso reforma para
uniformizar tributos, abertura comercial para incrementar o capital e os
insumos da indústria de transformação e investimento em pesquisa e tecnologia.
O sucesso da exportação de commodities não
prejudica o avanço nas manufaturas. Mais do que isso, as vendas de produtos
primários têm favorecido avanços do PIB e tranquilidade nas contas externas.
Depois do marco
Folha de S. Paulo
Fim do limite temporal para demarcação de
terras indígenas não pacifica questão
Líderes indígenas, entidades e forças à
esquerda comemoraram, previsivelmente, a decisão do
Supremo Tribunal Federal que derrubou a tese do chamado marco temporal para
a demarcação de terras destinadas aos povos originários. A questão está muito
longe de pacificada, no entanto.
O que o STF fez foi basicamente abandonar um
entendimento firmado em 2009 acerca do artigo 231 da Constituição, que atribui
aos indígenas "os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam".
Naquele ano, os magistrados consideraram que
o ditame valia apenas para as áreas ocupadas no momento da promulgação da
Carta, em 1988. Buscava-se, com essa interpretação, fixar um limite para o
alcance das demarcações.
Do lado do Poder Executivo, a Advocacia-Geral
da União deu guarida ao marco temporal em 2012, sob Dilma Rousseff (PT), e em
2017, no governo Michel Temer (MDB), o que levou à interrupção de boa parte dos
processos.
Hoje, as terras indígenas respondem por quase
14% do território nacional, graças aos avanços proporcionados pelo texto
constitucional. Essa transformação não se deu, obviamente, sem conflitos
políticos e jurídicos.
O setor agropecuário, em especial, apresenta
preocupações legítimas quanto à segurança jurídica de suas propriedades —às
quais se somam pressões menos defensáveis de setores retrógrados.
Em maio, a Câmara dos Deputados
aprovou, com folga de
283 votos a 155, projeto que transforma o marco temporal em lei.
Agora no Senado, o texto tende a ser superado pela decisão do Supremo. Não será
surpresa se deputados e senadores tentarem resolver a questão com uma emenda à
Constituição.
Na esteira da polarização ideológica do país,
o debate sobre o tema ficou contaminado por argumentos extremados de lado a
lado, como se estivesse em jogo um retrocesso das demarcações já realizadas ou
uma desapropriação em larga escala de propriedades rurais.
Na verdade, os conflitos palpáveis hoje se
dão em regiões pequenas de estados como Mato Grosso do Sul, Santa Catarina e
Bahia. O governo, ao qual cabem as demarcações, deveria dar a maior
previsibilidade possível aos processos.
A derrubada do marco temporal não elimina as
disputas nas arenas políticas e nos tribunais. O que puder ser feito para
desarmar os espíritos será bem-vindo.
Supremo versus Supremo
O Estado de S. Paulo
Ao rejeitar a tese do marco temporal, a Corte
julgou contra a Constituição e a própria jurisprudência, gerando insegurança
jurídica para todos os cidadãos, inclusive os indígenas
O Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou a
tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas. Trata-se de um
enorme retrocesso, tanto do ponto de vista institucional – pois é mais um sinal
de que a Corte por vezes se deixa inebriar pelas paixões políticas – como
prático. O futuro vai mostrar quão extenso será o dano causado por uma decisão
que, ao que parece, foi pautada pela pressão de setores da sociedade civil, não
pela letra da Constituição que os ministros do STF têm como dever fundamental
resguardar.
Até quinta-feira passada, quando o julgamento
iniciado em 2021 foi concluído, prevalecia o entendimento segundo o qual os
povos indígenas só poderiam reivindicar a demarcação das terras que ocupavam no
dia 5 de outubro de 1988, data em que foi promulgada a Constituição. A fixação
desse marco temporal em 2009, quando o STF se debruçou sobre o caso da reserva
Raposa Serra do Sol, nada tinha de aberrante ou inconstitucional, como apregoam
seus opositores. Anômalo seria o contrário, isto é, tornar a demarcação de
terras indígenas objeto de disputas intermináveis no País. Pois foi exatamente
o que o Supremo fez.
O que mudou no Brasil nos últimos 14 anos, no
que concerne à questão indígena, para que o STF derrubasse uma decisão tomada
pela própria Corte há tão pouco tempo, em termos de jurisprudência? Nada, a não
ser a nova composição da Corte e o aumento da pressão de setores da sociedade pela
revisão da tese do marco temporal. Tanto uma coisa como outra, porém, não
deveriam ter influência nas decisões da mais alta instância do Poder
Judiciário. É prerrogativa do STF exercer um papel contramajoritário justamente
para fazer valer a supremacia da Constituição e, assim, trazer segurança
jurídica ao País, sem a qual não há paz social.
A decisão de 2009, fixando a tese do marco
temporal, respeitava a intenção dos constituintes originários quando escreveram
o art. 231 da Constituição, que diz: “São reconhecidos aos índios (...) os
direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à
União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Como este
jornal enfatizou em junho passado, o texto constitucional é cristalino: os
indígenas não têm direitos sobre terras que, eventualmente, venham a ocupar,
mas sim sobre as terras que “tradicionalmente ocupam”. Não é nada sutil a
diferença entre uma coisa e outra (ver A legitimidade do marco temporal,
11/6/2023).
A validade do marco temporal era a posição do
STF até pouquíssimos dias atrás, coadunada com o que determina a Constituição.
A Lei Maior não ignorou a necessidade de proteger os cidadãos indígenas. Ao
contrário, definiu muito bem os seus direitos e fixou os limites para que
possam exercê-los, assim como os de todo e qualquer cidadão brasileiro. Mas, a
pretexto de resguardar os direitos dos indígenas, o STF caminhou na direção
oposta, vale dizer, reduziu-os à condição de objetos de disputas políticas e
jurídicas que, ao que tudo indica, não terão fim.
Está no Senado um projeto de lei já aprovado
pela Câmara dos Deputados que fixa o marco temporal como base para os processos
de demarcação de terras indígenas. Por óbvio, um projeto de lei não se sobrepõe
à Constituição, mas nada impede que o Congresso, cuja competência para legislar
não é abalada pela jurisprudência do STF, dedique-se a analisar uma emenda à
Constituição que fixe expressamente a data de 5 de outubro de 1988 como marco
para a reivindicação de direitos sobre terras pelos indígenas.
Outra questão que decerto fará com que o
debate sobre o marco temporal ainda se prolongue no tempo é a possível
indenização dos indivíduos que ocuparam de boa-fé os territórios considerados
áreas de demarcação. A indenização por eventuais benfeitorias já é prevista em
lei, mas o ministro Alexandre de Moraes propôs que aqueles proprietários também
devem ser indenizados pela ocupação da chamada “terra nua”.
Ou seja, o STF até pode ter mirado na
pacificação dos conflitos de terra, mas acertou em cheio na confusão.
Quando a intenção vale muito
O Estado de S. Paulo
Com a meta fiscal, zerar o déficit em 2024 é
improvável; sem ela, é virtualmente impossível. Mantê-la inalterada é o único
freio ao ímpeto gastador de parte do governo e do Congresso
A diretora da Instituição Fiscal Independente
(IFI) do Senado, Vilma Pinto, disse que o governo só deve atingir um superávit
primário em 2030. A economista prevê um déficit de 1% do Produto Interno Bruto
(PIB) no ano que vem, maior, portanto, que a meta anunciada pelo ministro da
Fazenda, Fernando Haddad.
A IFI não é a única instituição a ver com
receio a promessa do ministro. Os especialistas que participaram da série de
entrevistas do Estadão sobre a questão fiscal foram unânimes em apontar o
paradoxo de uma meta que depende fortemente de receitas para ser atingida
quando o maior problema a ser resolvido está justamente no lado das despesas.
Essas dúvidas, levantadas ainda na apresentação da proposta do arcabouço, em
janeiro, aumentaram com o passar dos meses, sobretudo na ocasião do envio do
Orçamento ao Congresso, em agosto.
A exemplo do que acontece todos os anos, o
detalhamento da peça orçamentária revelou uma combinação entre receitas muito
otimistas e despesas subestimadas. Nesta edição, em particular, destacou-se uma
confiança exacerbada na efetividade de operações do tipo pente-fino para cortar
gastos na Previdência Social e no Bolsa Família e uma crença digna de fé na
disposição do Congresso em aprovar medidas para taxar parcelas da sociedade que
gozam de privilégios tributários há muitos anos.
Este jornal, que fique claro, não acredita
que o governo esteja errado. Há que criar mecanismos contínuos de combate a
fraudes na concessão de benefícios sociais. Também já passou da hora de o País
avançar na direção de uma carga tributária mais justa e progressiva, que cobre
proporcionalmente mais daqueles com maior poder aquisitivo. Mas isso não é
ajuste fiscal, tampouco é suficiente para trazer resultados promissores em tão
curto espaço de tempo.
O rompimento da meta de 2024 são favas
contadas. Mas, como disse um dos entrevistados da série do Estadão, o
coordenador do Observatório Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia da
Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), Manoel Pires, o sucesso da equipe econômica
não depende exatamente do cumprimento da meta, e sim da entrega de um orçamento
que seja exequível e que, ao mesmo tempo, conduza a um melhor resultado fiscal.
“No final das contas, o papel da equipe econômica é criar condições para
solvência da dívida pública, melhorando o resultado fiscal”, definiu Pires.
Para isso, no entanto, é fundamental, ainda
que irônico, que a meta seja mantida sem alterações. Esse parece ser o
entendimento do Banco Central (BC). As palavras do comunicado divulgado após a
reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) não foram acidentais.
Mencionando a relevância das metas fiscais para ancorar as expectativas de
inflação e, consequentemente, para orientar a condução da política monetária, o
BC reforçou a importância da “firme persecução dessas metas” – e não de
atingi-las à risca.
No limite, o descumprimento da meta até tem
suas virtudes. Ela obrigará a aplicação de gatilhos automáticos para limitar o
crescimento das despesas, proibindo a realização de concursos e os aumentos
salariais para servidores públicos e o lançamento ou expansão de programas de
incentivo tributário e de linhas de financiamento para renegociação de dívidas
– entre outras medidas necessárias, amargas e impopulares que muitos se recusam
a encarar.
Sabendo que todas essas ações estão no
horizonte, parte do governo e do Congresso se movimenta para flexibilizar a
meta e aumentar os gastos desde já. A intenção não é substituí-la por um
objetivo mais realista e crível, mas impedir o acionamento dos gatilhos em
qualquer cenário, independentemente das consequências desses atos na trajetória
da dívida pública.
Se com a meta fiscal zerar o déficit é
bastante improvável, sem ela isso será virtualmente impossível. Defender a
manutenção da meta talvez seja o único freio à disposição do governo para
começar um debate amplo sobre a revisão dos gastos que leve o País a fazer
escolhas para além das já definidas pelos gatilhos. Por isso mesmo, é um freio
de valor inestimável.
2023, o ano do agro
O Estado de S. Paulo
OCDE reforça o otimismo com o PIB do País,
mas o agro sozinho não garante crescimento
O otimismo revelado pelo Ministério da
Fazenda com a recente elevação da estimativa para o desempenho da economia neste
ano, que passou de 2,5% para 3,2%, recebeu da Organização para Cooperação
e Desenvolvimento Econômico (OCDE) um reforço
de peso, com projeção para crescimento do Produto Interno Bruto (PIB)
brasileiro exatamente no mesmo patamar: 3,2%.
No caso da OCDE, a revisão foi ainda mais
consistente, já que na previsão anterior, de junho, a alta era de 1,7%. Ou
seja, acrescentando 1,5 ponto porcentual ao cálculo, quase dobrou a aposta. O
mercado financeiro também tem revisado para cima suas projeções, mas se mantém
um passo atrás, com 2,89%. De qualquer forma, são sinais positivos para uma
economia que iniciou o ano sob prognósticos que, no máximo, chegavam a 1%.
A melhora do quadro em um ano particularmente
difícil, com a desaceleração econômica na China e as sequelas de uma prolongada
guerra entre Rússia e Ucrânia, continua a ser creditada ao setor agropecuário
que, pelos cálculos da Fazenda, deve crescer 14% no ano. Pelo monitoramento
feito até aqui, 2023 será o ano do agro, que tem puxado para cima a economia nacional.
A OCDE atribui aos efeitos do clima os
resultados agrícolas favoráveis no Brasil. Mas essa é apenas uma parte da
questão. De fato, as reviravoltas climáticas que destroem culturas pelo mundo,
como a de algodão nos Estados Unidos, estão castigando menos a agricultura
nacional, que registra safras recorde no ano.
Mas, com produção competitiva em nível
mundial, o agro tem se beneficiado dos investimentos feitos em pesquisa e
desenvolvimento. Iniciativas que, aliadas ao aumento de participação no comércio
internacional, respondem pelos resultados surpreendentes, muito além das
previsões mais otimistas feitas no início do ano pela própria Confederação da
Agricultura e Pecuária (CNA) e por institutos de pesquisa, que variavam entre
2,5% e 10% de alta no PIB agrícola.
Apesar do desempenho extraordinário, o agro
não tem como sustentar sozinho o PIB. O IBC-Br, espécie de prévia do PIB
calculado pelo Banco Central, já demonstra arrefecimento da economia neste
segundo semestre. Embora a desaceleração tenda a ser menos intensa do que o
esperado, a queda do PIB agrícola é certa.
Indústria e serviços, com maior influência no
cálculo final do PIB, amargam resultados medíocres neste ano e isso se reflete
numa taxa de investimentos menor a cada trimestre, incapaz de fazer a economia
brasileira caminhar para um crescimento sustentável. É possível que um pequeno
avanço de serviços possa contribuir positivamente.
Mas somente o investimento tem o poder de
incrementar o emprego, o crescimento real da renda – não apenas aquele puxado
por programas de transferência, como o Bolsa Família –e o consequente aumento
do consumo capaz de movimentar a economia sem contribuir para a elevação da
inadimplência.
O caminho, claro, passa pela estabilidade fiscal e monetária e por uma inadiável política industrial.
Forças Armadas pela democracia
Correio Braziliense
O que ocorreu desde a volta dos militares ao
comando do Ministério da defesa, no governo Michel Temer, até a vitória
eleitoral do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi uma recidiva do chamado
"partido fardado"
Desde a criação de um Ministério da Defesa
civil no Brasil, em 1999, o poder político das Forças Armadas tem diminuído.
Mas houve uma tentativa de restaurar sua tutela sobre a vida republicana
durante o governo de Jair Bolsonaro. Esse projeto fracassou nas eleições de
2022 e, principalmente, depois da tentativa de golpe de 8 de janeiro, que não
encontrou o apoio nas Forças Armadas que muitos esperavam, inclusive o
ex-presidente Jair Bolsonaro.
O que ocorreu desde a volta dos militares ao
comando do Ministério da defesa, no governo Michel Temer, até a vitória
eleitoral do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi uma recidiva do chamado
“partido fardado”, que tutelou a República brasileira durante o século passado,
sobretudo durante o regime militar. O “partido fardado”, na expressão de
Oliveiros Ferreira, morreu com a redemocratização. Entretanto, Bolsonaro tentou
exumá-lo para se manter no poder.
Desde 2008, várias ações formam realizadas
com objetivo de dotar o país de uma política militar e uma doutrina de Defesa
modernas, em sintonia com a ordem democrática. Àquela ocasião, foi elaborada
uma Estratégia Nacional de Defesa, por civis e militares; em 2010, foi
promulgada a Nova Lei de Defesa, que reforçou o papel do Ministério da Defesa;
em 2011, a Lei de Liberdade de Informação; em 2012, leis em benefício da
indústria de defesa; e, 2014, o relatório do Comitê Nacional da Verdade, que
apurou os crimes praticados durante a ditadura militar.
Entretanto, com a chegada de Jair Bolsonaro
ao poder, houve um retrocesso. Notabilizou-se uma militarização da
administração federal e alimentou-se uma narrativa saudosista do regime
militar, que serviram de base para os grupos de extrema-direita e o próprio
presidente da República sonharem com uma aventura golpista.
Os militares envolvidos nas articulações
golpistas, cujos nomes estão sendo revelados pelo ex-ajudante de ordens de
Bolsonaro, tenente-coronel Mauro Cid, em sua delação premiada, e muitos
documentos já apreendidos, devem ser exemplarmente punidos pela Justiça comum;
depois, pelas Forças Armadas, que precisam ser depuradas desses elementos
golpistas.
O Supremo Tribunal Federal (STF), por dever
constitucional, vem cumprindo o seu papel em relação aos fatos ocorridos em 8
de janeiro. O Superior Tribunal Militar (STM), também, ao enfatizar que a
apuração e punição de crimes contra a ordem democrática são de atribuição do
poder civil, ou seja, da Corte suprema.
Entretanto, há um vácuo que não pode ser desconsiderado. O Congresso Nacional
se omite do dever intransferível de fixar o papel das Forças Armadas e da
defesa nacional. A Política Nacional e a Estratégia Nacional de Defesa, que
passaram a ser objeto de análise pelo Congresso Nacional pela Lei Complementar
136 de agosto de 2010, não tem merecido atenção dos líderes, deputados e
senadores.
Ao Congresso cabe liderar, mediante diálogo
com as Forças e a sociedade, um projeto de defesa que atenda aos interesses
nacionais e nos dê capacidades dissuasórias frente a ameaças reais e/ou
potenciais.
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