segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Bolsonaro e a Lei da Ficha Limpa - Marcus André Melo

Folha de S. Paulo

Qual o significado de longo prazo de mudanças institucionais virtuosas e viciosas?

Há uma dinâmica curiosa em relação à corrupção e abuso de poder. Quando um grupo político é hegemônico e está no poder, e sua hegemonia é avassaladora, não há registro de denúncias por duas razões. Esse grupo tipicamente controlará meios de comunicação e instituições de controle, aqui incluídas as congressuais; a oposição legislativa terá assim baixa capacidade de incidir sobre a corrupção. As denúncias, portanto, terão pouca visibilidade. Ações individuais e coletivas da sociedade civil terão a mesma sorte: há poucos incentivos para as denúncias. Afinal, por que agir se as chances dessas ações prosperarem são baixas? Quando não há grupo hegemônico, mas dois competitivos, os incentivos são outros. Quanto mais competitivo o sistema, mais incentivos para a criação de um escândalo que afete o incumbente.

Quando se alternam no poder, surge um conflito que leva à mudança institucional: arranjos e legislação anteriores passam a ser atacados. A dinâmica é fundamentalmente incumbente-oposição, mas se traveste de disputa ideológica direita-esquerda.

É o que estamos assistindo no momento em relação aos ataques de Bolsonaro e outros em relação à Lei de Ficha Limpa. A lei foi aprovada em 2010 na esteira do Mensalão. Produto de uma aliança do Conselho Nacional dos Bispos do Brasil e do TSE, ela foi a segunda lei de iniciativa popular do país. Na campanha da fraternidade daquele ano as dioceses mobilizaram-se para a obtenção de 1,6 milhão de assinaturas e para a aprovação pelo Congresso por unanimidade. As 1.500 audiências públicas sobre a lei foram realizadas em todo o Brasil pelo TSE.

Mas o mesmo vale para outros atores e instituições. O STF, a Polícia Federal, e o Ministério Público, que eram vilipendiados pelo PT, quando era incumbente, passaram a ser defendidos pelo partido. Por ter defendido no passado a bandeira anticorrupção, para Brizola, "o PT era a UDN de macacão". Sim, a UDN que era o partido que denunciava a corrupção e o abuso getulista.

E vice versa, em relação ao bolsonarismo.

Há dois cenários hipotéticos que podem resultar de uma nova configuração política competitiva. O primeiro é um ciclo virtuoso que é marcado por um certo aprendizado coletivo, em que desaparecem supostos monopólios da virtude. O eleitorado aprende a distinguir entre retórica e realidade. Os atores internalizam a mudança. Excessos são mitigados. Arranjos institucionais e legislação são aperfeiçoados.

O segundo cenário é vicioso: uma combinação de brutal retrocesso e conluio generalizado. O equilíbrio resultante é perverso: "Você não denuncia minha emenda e eu não denuncio a sua". Ele produz malaise institucional e cinismo cívico generalizado: "são todos farinha do mesmo saco". Mas o equilíbrio só quebra por ações disruptivas, antissistema. Cria-se assim incentivos a outsiders.

O primeiro cenário representa a trajetória histórica das democracias avançadas (que analisei aqui). O segundo é a armadilha da democracia de baixa qualidade que mantem dinâmicas predatórias.

Na nossa trajetória recente há dinâmicas virtuosas mas elas se inviabilizam em contextos de alta polarização. E uma explosiva combinação de ultra reação ao combate à corrupção (como vimos em relação à Lava Jato) e persistência de um equilíbrio predatório.

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