segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Pobres do mundo pagam a conta de Trump - Natalia Fingermann

O Globo

Corte na Usaid prejudica combate à desnutrição e programas de saúde em países subdesenvolvidos, sobretudo na África

Dentre as inúmeras ordens executivas assinadas pelo presidente Donald Trump no dia de sua posse, em 20 de janeiro, uma pôs em xeque a credibilidade dos Estados Unidos junto aos países do Sul Global. A paralisação, por 90 dias, dos programas de ajuda externa da Unites States Agency for International Development (Usaid) logo teve impactos significativos em programas de combate à desnutrição e de saúde em países subdesenvolvidos, especialmente na África Subsaariana.

Principal doador mundial, com recursos que representam aproximadamente 40% de toda a cooperação internacional, o governo americano desempenha papel chave na provisão de serviços públicos em mais de 200 países. Em 2024, os Estados Unidos desembolsaram US$ 7 bilhões na África, destinando recursos significativos a políticas de prevenção do HIV, combate à malária, auxílio agrícola e alimentar, além de iniciativas ligadas às mudanças climáticas.

A ação recente realizada pelos funcionários do Departamento de Eficiência Governamental, sob a chefia de Elon Musk, na sede da Usaid em Washington sinaliza que a nova gestão deverá usar todos os meios necessários — ainda que ilegítimos ou até ilegais — para reajustar a indústria da ajuda externa e a burocracia dos Estados Unidos “aos interesses americanos”. De acordo com a ordem executiva de Trump, a Usaid tem adotado, em muitos casos, posturas que “são antiéticas aos valores americanos. Elas servem para desestabilizar a paz mundial, promovendo em países estrangeiros ideias diretamente opostas às relações harmoniosas e estáveis entre as nações”.

Musk publicou no X que a Usaid é “formada por uma rede de marxistas-esquerdistas que odeiam a América”, seguido de outra postagem em que descreve a instituição como “organização criminosa, cuja hora de ser exterminada chegou”. Trump, logo depois, declarou em entrevista ao vivo à Fox TV que a Usaid “é controlada por um bando de lunáticos, e vamos eliminá-los de lá”.

Fundada pelo democrata John Kennedy em 1961, a agência é responsável por 61% (US$ 42 bilhões) do orçamento geral dos programas de ajuda humanitária dos Estados Unidos, que somaram US$ 68 bilhões em 2023. Essa instituição, hoje essencial para milhões vivendo em extrema pobreza, sempre esteve alinhada à defesa dos interesses americanos — seja por meio das condicionalidades impostas em seus programas, que garantem a venda de produtos agrícolas, fármacos e vacinas das empresas dos Estados Unidos; seja pela propagação dos valores democráticos e inclusivos do país.

Além disso, a Usaid desempenha papel crucial na manutenção do prestígio americano junto aos países subdesenvolvidos. Isso significa que, muitas vezes, os recursos despendidos são compensados pelo fácil acesso que os Estados Unidos obtêm junto às elites nacionais. Hans Morgenthau, pensador e consultor no governo Kennedy, defendia claramente a importância de manter programas de ajuda internacional como mecanismo para garantir uma política externa eficiente.

O fim da Usaid como instrumento da política externa americana marca uma nova era nas relações internacionais, em que muitos países ficarão ainda mais distantes do desenvolvimento, dando espaço ao crescimento de novas potências no sistema global. A fusão da agência independente ao Departamento de Estado deverá possivelmente garantir a continuidade de alguns projetos do governo americano. Mas agora os valores defendidos não estarão mais vinculados a democracia, diversidade e equidade, mas sim aos princípios estabelecidos no Project 2025, que resgatam uma América conservadora, cristã e alinhada à defesa dos valores da família tradicional.

 

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