O Globo
Estava em Alto do Moura, agreste
pernambucano, quando começou a onda de taxação do Pix. Na loja de dona M.,
separei algumas lindas peças em cerâmica. Quis pagar, mas ela enrolou:
— Só aceito em dinheiro — me disse. — Nada de
Pix. Dizem que vão cobrar imposto.
— Mas a senhora vai perder a venda?
— Fazer o quê? — retrucou.
Alto do Moura, em Caruaru, é a terra de Mestre Vitalino, artista do barro, autodidata genial. Seu talento inspirou gerações de artesãos, e hoje a cidade tem dezenas de oficinas de cerâmica. O charmoso lugarejo vive da arte — cerca de 95% da receita tem origem naqueles delicados estúdios, um ao lado do outro. Pequenos museus registram a trajetória dos artistas. Pelas ruas ecoam conversas em francês, inglês e até em árabe — ao contrário de Miami, preferida por muitos brasileiros, por ali chegam turistas de várias partes do mundo. As peças reproduzem personagens do cotidiano, como casais, cangaceiros apaixonados ou ainda cenas do trabalho camponês. É um mundo idílico, onírico, construído sob a aridez do sol — e único em sua beleza.
Logo nas primeiras horas da manhã, quando o
calor ainda é ameno, as ruas se enchem com turistas circulando pelos ateliês,
onde quem vende as peças são os familiares dos artesãos — filhos, noras, é um
pequeno comércio que gira em torno da arte, responsável por ser uma alternativa
à áspera rotina na roça. Valor agregado pelas mãos que esculpem o barro. Uma
arte globalizada — as cerâmicas de uso cotidiano, como pratos, travessas,
tigelas etc., abastecem as mesas de restaurantes em vários países europeus.
— Por que eles não deixam a gente trabalhar?
— ouço de um artesão quando falamos da ameaça que ronda o Pix.
De repente, por alguns dias, a orgulhosa
economia daqueles microempreendedores (linguagem da direita?) se viu totalmente
desarranjada. A engrenagem encrespou. Tornou-se um comércio parado no ar. Como
muitos, não ando com dinheiro em espécie. Como outros, deixei de comprar minhas
peças de Mestre Vitalino.
O Brasil — desde sempre debatendo-se entre o
arcaico e o moderno, entre o assistencialismo e a iniciativa privada — mostrou
seus dentes. Naquele vibrante pedaço do país, ouvi que não interessa o Bolsa
Família; preferem a arte e o trabalho gerado por suas próprias mãos. Dias
depois, as pesquisas mostraram a queda de popularidade de Lula da
Silva, Nordeste afora. Não é de estranhar — a velha cartada de mão dos petistas
envelheceu, o truque dos programas sociais em detrimento de desenvolvimento
sustentável azedou o jogo. No Uber, já em São
Paulo, ouço do motorista autônomo (conceito de direita?):
— A Marta (Suplicy) aumentou os impostos na
cidade… O Haddad também. Claro que iam taxar o Pix.
Voz do povo, voz de Deus. O passado condena
as gestões petistas — Marta ainda é a Martaxa (aumentou brutalmente o IPTU). Na
eleição passada, como vice de Boulos, amargou derrota acachapante.
Vitorioso, Ricardo Nunes falou
a linguagem do empreendedorismo, da vibrante periferia paulistana nada afeita
ao vocabulário de soluções sociais, mas sempre populistas. O Brasil da
iniciativa privada emerge em oposição ao Estado pedinte.
Pela manhã, na pista central da Faria Lima,
os patinetes trafegam com o operador financeiro (“o mercado”) e o funcionário
da área administrativa; até a recepcionista da corretora se arrisca no veículo
que simboliza outra época de mobilidade. Estão todos de banho tomado,
perfumados e com bons celulares junto ao corpo. É o mundo do consumo
estabelecido, mas também de pertencimento (vocabulário da esquerda light)
oferecido pelo crediário. São os eleitores que deram vitória a Ricardo Nunes,
apresentado como político de direita. E se importam com essa designação? A
esquerda continua interditando o debate do país.
— O Haddad é um ministro fraco — disse
Kassab, ex-prefeito paulistano.
Lula da Silva, aquele que humilha Haddad dia
sim, dia sim, retrucou. Mas ameaça colocar Gleisi
Hoffmann, para quem gasto é vida, a seu lado. É como juntar a torcida do
Santa Cruz e do Sport (linguagem lulopetista). Todos sabem que Haddad é um
ministro fraco, sem a autoridade de Henrique Meirelles ou Paulo Guedes.
Como todos sabem que Nísia
Trindade repete a destreza de Eduardo Pazuello no Ministério
da Saúde. Mesmo que o Brasil fique sem vacinas pelo imobilismo da ministra
(ela é mulher: álibi da esquerda), bem, essas coisas não devem ser ditas. Nem
que “a preço de banana”, agora é caro demais. No corpo do Brasil se debatem o
médico e o monstro.
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