O Estado de S. Paulo
Estratégia conhecida como flooding the zone busca dificultar a construção de uma resposta eficaz
O maior desafio para analistas políticos, jornalistas e governos ao redor do mundo desde que Donald Trump voltou ao poder tem sido diferenciar notícias relevantes de manobras diárias de distração. Trump certa vez pediu a seus principais assessores que pensassem em cada dia de sua presidência como um episódio de um programa de televisão no qual ele derrota seus rivais. Isso implica acumular vitórias – mesmo que meramente simbólicas – e produzir, de forma metódica, notícias bombásticas que lhe permitam pautar a agenda política. Essa estratégia, conhecida como flooding the zone (inundando a área), busca desorientar e atordoar a oposição e a mídia, dificultando a construção de uma resposta eficaz.
Até agora, a tática tem funcionado. Sempre
que Trump ameaça anexar territórios estrangeiros, provoca uma previsível onda
de indignação. Da mesma forma, o Partido Democrata passou dias, na semana
passada, debatendo os riscos de tarifas sobre produtos do Canadá e do México.
No fim, Trump recuou, mas conseguiu fazer a oposição perder tempo valioso que
poderia ser usado para desenvolver uma estratégia coordenada.
O mesmo ocorreu com suas ordens executivas:
Trump assinou mais decretos nos primeiros dez dias de mandato do que qualquer
presidente recente em seus primeiros 100. Muitos serão desafiados na Justiça,
mas cumprem seu propósito imediato e ilustram a dificuldade da oposição em
responder a essa enxurrada de ações.
FUMAÇA. Talvez a maior prova de que a
estratégia de Trump está surtindo efeito seja o sucesso do live feed que o New
York Times incluiu em sua página principal para acompanhar suas ações. Embora
útil, o recurso apresenta um problema fundamental: ao gerar uma cobertura
contínua, não ajuda o leitor a diferenciar entre o que é realmente importante e
o que é apenas “fumaça” de Trump. Assim, até as declarações mais absurdas
ganham ares de urgência.
A ideia de anexar o Canadá, por exemplo, é
chocante, mas extremamente improvável de se concretizar. No entanto, ignorar
esse tipo de declaração não é uma opção. O impacto da retórica de Trump é real:
suas falas inflamam o sentimento anti-EUA no Canadá e reduzem a confiabilidade
americana entre aliados, com consequências potencialmente duradouras para a
ordem global.
IMPACTO DOMÉSTICO. Embora a maioria das
declarações mais polêmicas esteja relacionada à política externa, é provável
que suas ações mais duradouras ocorram no cenário doméstico. O governo tem
iniciado um amplo desmonte da burocracia federal. Isso inclui incentivos para a
saída de servidores de carreira e mudanças estruturais que enfraquecem a
capacidade administrativa do governo, envolvendo planos de redução do
funcionalismo por meio de programas de demissão voluntária e exonerações
direcionadas. Muitos desses programas levarão os quadros mais qualificados, com
fácil inserção no setor privado, a saírem do serviço público. Além disso, a
decisão de demitir inspetores-gerais responsáveis pela supervisão interna das
agências federais sinaliza um movimento deliberado para enfraquecer mecanismos
de controle e transparência.
Outro fator é o papel crescente de Elon Musk
No governo. Apesar de não ter credenciais de segurança adequadas, Musk tem
participado de reuniões estratégicas e influenciado decisões de alto nível. Sua
proximidade com Trump levanta questionamentos sobre até que ponto interesses
privados estão se sobrepondo à governança institucional, o que pode facilitar
tentativas estrangeiras de influenciar processos decisórios internos.
DESAFIO. Apesar de essas questões atraírem
menos atenção do que as manchetes diárias sobre declarações provocativas de
Trump, seus efeitos podem ser mais profundos. Porém, será um desafio para o
Partido Democrata mobilizar a opinião pública em torno dessas questões, vistas
como excessivamente técnicas. Da mesma forma, a imprensa continua enfrentando o
dilema central imposto pela estratégia de i nundação de Trump: reagir
imediatamente às provocações diárias ou focar no que realmente importa? O
desafio será encontrar um equilíbrio entre resistir à distração proposital e
monitorar os impactos concretos da administração. Tudo indica que essa será uma
batalha constante ao longo dos próximos quatro anos.
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