O Globo
Decisão de abolir os programas federais de
inclusão é armadilha pavloviana dirigida aos 'progressistas'
O russo Ivan Pavlov (1849-1936), pioneiro do
condicionamento clássico, tornou-se célebre por suas experiências com a mudança
comportamental de cães. Donald Trump aplica os mesmos princípios de estímulo e
resposta na moldagem do debate público. Sua decisão de abolir os programas
federais de DEI é uma armadilha pavloviana dirigida aos “progressistas”.
Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI), eufemismo cunhado nos Estados Unidos para designar a expansão universal de políticas identitárias, abrange uma coleção sempre crescente de “minorias”: negros, latinos, indígenas, mulheres, trans et alii. O amplo guarda-chuva recobre universidades, empregos públicos e privados, instituições sociais, eventos culturais e até Hollywood.
Nas universidades, as preferências
identitárias saltaram da admissão à graduação para o ingresso na pós-graduação
e a contratação de docentes. Nesses últimos casos, contam pontos o “lugar de
fala”, o alinhamento ideológico (o candidato promoveu DEI em sua vida
profissional pregressa?) e a especialização nos “novos saberes”, como estudos
étnico-raciais e de gênero, disciplinas sobre “branquitude”, “negritude” e
“políticas do corpo”, historiografia comparada do “imperialismo de colonos”.
Nas empresas privadas, a “diversidade”
orienta contratações e promoções. O ideal é, além de pertencer a uma “minoria”,
atuar como militante da causa. Os empresários entenderam o valor de marketing
da cooptação. Nelas, soporíferos cursos de DEI adestram a camada gerencial no
uso correto da novilíngua identitária.
A DEI instalou-se no núcleo do Partido
Democrata e atingiu um ápice quando Biden selecionou Kamala
Harris ao posto de vice em 2020. O fracasso constrangedor da campanha
de Harris nas primárias democratas daquele ano foi ignorado, pois ela preenchia
quase todas as caixinhas identitárias imagináveis.
Equidade é o termo-chave da DEI. Trata-se da
réplica identitária ao princípio da igualdade perante a lei. A doutrina
filosófica e legal nela sintetizada advoga o tratamento desigual aos desiguais
— e toma como implícito que desigualdade não é uma referência à renda, mas a
atributos essenciais (cor da pele, etnia, gênero, orientação sexual). Segundo
tal lógica, as filhas do casal Obama mereceriam preferência na concorrência com
jovens brancos de baixa renda.
A raiz principal da DEI encontra-se na noção
de que as sociedades ocidentais são palco da opressão de homens brancos héteros
sobre um extenso conjunto de vítimas, as “minorias”. (Disso, aliás, resulta a
concorrência intraidentitária para determinar as “minorias” mais vitimizadas,
as mais merecedoras de preferências.) A esquerda pós-moderna trocou o conceito
de luta de classes pela doutrina da hegemonia identitária, convertendo os
trabalhadores brancos numa seção do estamento opressor.
Após longa experiência, o fastio da maioria
com a bíblia identitária tornou-se indignação explícita. A aversão chegou aos
latinos e difunde-se entre parcela crescente dos jovens negros. Trump é
inculto, mas sobra-lhe inteligência política. Ao detonar a DEI, captura o
discurso sobre igualdade e oportunidade. Dias atrás, dobrou a provocação com
sua irresponsável conexão entre a DEI e o acidente aéreo em Washington.
A militância acadêmica esculpiu um campo
“progressista” hipnotizado pela noção de que o motor das sociedades
democráticas é acionado pelas turbinas do racismo e do patriarcalismo. O
delírio propicia ao líder da direita extremista a invocação eficaz de Martin
Luther King e do sonho de uma nação “cega diante da cor”.
Os truques de Pavlov provocavam salivação
canina. O truque de Trump tem o objetivo de causar reações histéricas entre os
“progressistas”, prendendo-os às narrativas identitárias e à carcaça da DEI,
enquanto seu governo concentra-se na xenofobia, no protecionismo e na retórica
imperialista.
Kamala Harris evitou definir sua campanha
presidencial pela simbologia da “mulher-negra-imigrante-asiática”. Trump almeja
interromper o tardio ensaio de correção de rumo. Quer os democratas de volta ao
padrão habitual, que lhes fecha o diálogo com o povo em geral. Estímulo e
resposta.
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