segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Trump, Pavlov – Demétrio Magnoli

O Globo

Decisão de abolir os programas federais de inclusão é armadilha pavloviana dirigida aos 'progressistas'

O russo Ivan Pavlov (1849-1936), pioneiro do condicionamento clássico, tornou-se célebre por suas experiências com a mudança comportamental de cães. Donald Trump aplica os mesmos princípios de estímulo e resposta na moldagem do debate público. Sua decisão de abolir os programas federais de DEI é uma armadilha pavloviana dirigida aos “progressistas”.

Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI), eufemismo cunhado nos Estados Unidos para designar a expansão universal de políticas identitárias, abrange uma coleção sempre crescente de “minorias”: negros, latinos, indígenas, mulheres, trans et alii. O amplo guarda-chuva recobre universidades, empregos públicos e privados, instituições sociais, eventos culturais e até Hollywood.

Nas universidades, as preferências identitárias saltaram da admissão à graduação para o ingresso na pós-graduação e a contratação de docentes. Nesses últimos casos, contam pontos o “lugar de fala”, o alinhamento ideológico (o candidato promoveu DEI em sua vida profissional pregressa?) e a especialização nos “novos saberes”, como estudos étnico-raciais e de gênero, disciplinas sobre “branquitude”, “negritude” e “políticas do corpo”, historiografia comparada do “imperialismo de colonos”.

Nas empresas privadas, a “diversidade” orienta contratações e promoções. O ideal é, além de pertencer a uma “minoria”, atuar como militante da causa. Os empresários entenderam o valor de marketing da cooptação. Nelas, soporíferos cursos de DEI adestram a camada gerencial no uso correto da novilíngua identitária.

A DEI instalou-se no núcleo do Partido Democrata e atingiu um ápice quando Biden selecionou Kamala Harris ao posto de vice em 2020. O fracasso constrangedor da campanha de Harris nas primárias democratas daquele ano foi ignorado, pois ela preenchia quase todas as caixinhas identitárias imagináveis.

Equidade é o termo-chave da DEI. Trata-se da réplica identitária ao princípio da igualdade perante a lei. A doutrina filosófica e legal nela sintetizada advoga o tratamento desigual aos desiguais — e toma como implícito que desigualdade não é uma referência à renda, mas a atributos essenciais (cor da pele, etnia, gênero, orientação sexual). Segundo tal lógica, as filhas do casal Obama mereceriam preferência na concorrência com jovens brancos de baixa renda.

A raiz principal da DEI encontra-se na noção de que as sociedades ocidentais são palco da opressão de homens brancos héteros sobre um extenso conjunto de vítimas, as “minorias”. (Disso, aliás, resulta a concorrência intraidentitária para determinar as “minorias” mais vitimizadas, as mais merecedoras de preferências.) A esquerda pós-moderna trocou o conceito de luta de classes pela doutrina da hegemonia identitária, convertendo os trabalhadores brancos numa seção do estamento opressor.

Após longa experiência, o fastio da maioria com a bíblia identitária tornou-se indignação explícita. A aversão chegou aos latinos e difunde-se entre parcela crescente dos jovens negros. Trump é inculto, mas sobra-lhe inteligência política. Ao detonar a DEI, captura o discurso sobre igualdade e oportunidade. Dias atrás, dobrou a provocação com sua irresponsável conexão entre a DEI e o acidente aéreo em Washington.

A militância acadêmica esculpiu um campo “progressista” hipnotizado pela noção de que o motor das sociedades democráticas é acionado pelas turbinas do racismo e do patriarcalismo. O delírio propicia ao líder da direita extremista a invocação eficaz de Martin Luther King e do sonho de uma nação “cega diante da cor”.

Os truques de Pavlov provocavam salivação canina. O truque de Trump tem o objetivo de causar reações histéricas entre os “progressistas”, prendendo-os às narrativas identitárias e à carcaça da DEI, enquanto seu governo concentra-se na xenofobia, no protecionismo e na retórica imperialista.

Kamala Harris evitou definir sua campanha presidencial pela simbologia da “mulher-negra-imigrante-asiática”. Trump almeja interromper o tardio ensaio de correção de rumo. Quer os democratas de volta ao padrão habitual, que lhes fecha o diálogo com o povo em geral. Estímulo e resposta.


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