segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Chuvas revelam despreparo de SP para alagamentos

O Globo

A outrora terra da garoa virou cidade das enchentes. Obras preventivas e planejamento são urgentes

Outrora chamada terra da garoa, São Paulo se transformou numa cidade de alagamentos. A qualquer chuva mais forte, surgem inundações com vítimas e perdas materiais. Entre dezembro e janeiro, os temporais mataram 17 pessoas. A cidade é repleta de encostas e ocupações irregulares à margem de rios, córregos e represas, áreas mais atingidas nas enxurradas.

O perigo não está apenas na periferia. O temporal que desabou sobre São Paulo dias atrás matou o pintor Rodolpho Tamanini Netto em sua casa na Vila Madalena, bairro nobre, quando um carro levado pela enxurrada destruiu uma porta de contenção, e a água subiu 2 metros dentro da casa. Por uma trágica ironia, uma das obras de Tamanini é “A enchente”, quadro pintado com cenas que ele presenciava da janela. Além dele, morreram uma criança de 7 anos, arrastada quando brincava na rua noutro bairro, e o motociclista Bruno Anselmo Santana, ao cair num córrego.

A excessiva impermeabilização do solo e a canalização de rios fazem a água da chuva correr com velocidade sobre o asfalto ou sobre o concreto. Em algum lugar, a enxurrada causará inundação. “O centro está todo impermeabilizado”, diz Ivan Whately, vice-presidente de Atividades Técnicas do Instituto de Engenharia. Contra isso, há técnicas que deixam áreas livres para a água infiltrar-se no solo, em localidades conhecidas como cidades-esponja. São Paulo e outras cidades fariam bem em buscar inspiração nesses exemplos.

Em sua rápida expansão, a metrópole paulistana ocupou as várzeas dos rios. Chuvas fortes inevitavelmente alagam áreas que no passado eram livres. O Rio Tietê, quando enche demais, inunda as galerias e ressurge distante de suas margens, impedindo o escoamento da chuva. Situação parecida acontece no Rio de Janeiro quando temporais coincidem com a maré cheia. As águas não têm para onde escoar e inundam bairros próximos.

Há 30 anos várias prefeituras construíram piscinões, grandes reservatórios subterrâneos para armazenar a água da chuva. Passado o temporal, ela é liberada aos poucos. Foi assim que acabaram as inundações outrora frequentes na Avenida Pacaembu, área nobre da cidade. Há um piscinão debaixo da Praça Charles Miller, em frente ao estádio. Piscinões ajudam, mas deveriam ser acompanhados por medidas para controlar a urbanização, sem esquecer espaços para escoar as cheias, diz Liliane Frosini Armelin, professora da Universidade Mackenzie e doutora em engenharia hidráulica e saneamento pela USP. As soluções são conhecidas. A maior dificuldade está na gestão, que precisa fazer as escolhas certas e investir antes das tragédias.

Em tempos de eventos climáticos extremos, São Paulo e todas as grandes cidades brasileiras carecem de planejamento e obras preventivas. Não adianta tomar medidas apenas depois que ocorre alguma catástrofe. Todo administrador regional sabe quais são os pontos críticos de seu bairro. Uma governança municipal integrada seria capaz de definir as prioridades. Há muito a fazer em cidades que cresceram sem uma visão mais ampla da ocupação do terreno e da necessidade de infraestrutura, incluindo obras para facilitar o escoamento de águas pluviais. São Paulo, Rio e outros centros urbanos precisam correr contra o tempo perdido.

Febre das armas de gel impõe desafio a legisladores e reguladores

O Globo

Elas não são brinquedo. Podem atingir os olhos, e seu uso frequente já é sentido nos consultórios

Impulsionadas pelas redes sociais, batalhas com armas de gel se espalharam pelo Brasil. Deveriam preocupar as autoridades pelos danos que podem causar, principalmente aos olhos. Aparentemente inofensivas, usam bolinhas de gel como munição. São facilmente encontradas à venda nas cidades brasileiras. Não se trata de simples brinquedo. Segundo o Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro), essas armas não podem ser classificadas assim. Embora não sejam baratas — na região da Saara, comércio popular no Centro do Rio, são vendidas em bancas de ambulantes por preços entre R$ 150 e R$ 210 —, elas têm atraído compradores de diferentes idades, em especial crianças, adolescentes e jovens.

O resultado de seu uso, cada vez mais comum, tem sido observado em consultórios. Em Pernambuco, onde viraram febre, dezenas já procuraram atendimento médico por problemas nos olhos, segundo a Fundação Altino Ventura, referência em tratamento oftalmológico no estado. Médicos dizem que as bolinhas de gel podem causar lesões na córnea, sangramentos internos, inflamações, dor e deficiências visuais. Em novembro, um menino de 8 anos, morador de Paulista (PE), precisou operar um dos olhos depois de alvejado. Posteriormente, a cidade sancionou lei proibindo armas de gel.

O risco de danos aos olhos não é o único problema. Em cidades acossadas pela violência, armas de gel podem assustar moradores, como sugere um vídeo que viralizou. “E nós que saímos de carro na nossa cidade com a arminha de gel, e o povo pensando que era de verdade kkk?”, diz o autor da peça. Em Volta Redonda, interior do Rio, policiais repreenderam jovens que “brincavam de arrastão” com essas pistolas. Os próprios usuários se colocam em risco. “No Rio, a polícia já matou quem portava objetos como furadeiras e outros itens confundidos com arma de fogo. Em certos territórios, isso é extremamente perigoso, principalmente à noite”, disse ao GLOBO o sociólogo Inácio Cano, coordenador do Laboratório de Análise da Violência (LAV), da Uerj. “Um segundo efeito é a contribuição para a expansão da cultura das armas.”

Não se pode dizer que a polícia faça vista grossa. Em Pernambuco, uma operação da Polícia Civil apreendeu mais de 3.500 armas de gel de origem ilícita e certificação irregular. Algumas ostentavam selo falso de segurança do Inmetro. A julgar pela profusão delas, a repressão não tem surtido efeito. Na falta de legislação específica, uma vez que elas não se enquadram noutras categorias, os parlamentares de pelo menos sete estados já preparam Projetos de Lei para proibi-las. Inúmeras cidades seguem pelo mesmo caminho. Se não houver fiscalização, só a lei não bastará.

Com receitas em alta, Estados gastam mais que arrecadam

Valor Econômico

A história se repetiu no acordo feito por Lula e se repetirá mais à frente. Com despesas estaduais crescendo acima das receitas, haverá déficits no futuro, com dívida maior e nova renegociação no horizonte

A expansão dos gastos da União aqueceu a economia, elevou a dívida pública, ampliou sua fragilidade fiscal e aumentou a inflação. O desequilíbrio decorre da orientação do governo Lula de estimular o crescimento com base nas despesas do Estado, mas a responsabilidade pela expansão além do potencial não é só do governo federal. Em 2023 e parte de 2024, os governos estaduais, sobre os quais a vigilância das contas é menos rigorosa, aumentaram mais seus gastos que a União, em termos reais e nominais.

Após a pandemia, os governos estaduais acumularam enorme caixa - receberam cerca de R$ 100 bilhões a mais do que perderam em receitas. Os repasses para enfrentar a covid-19 foram volumosos, e, embalados por transferências generosas da União, verbas crescentes de emendas parlamentares e crédito oficial, os Estados investiram mais, assim como ampliaram gastos com pessoal. Nos dois primeiros anos de mandato dos governadores, as receitas cresceram mais que as despesas no conjunto do período, tendência que a persistir trará déficits preocupantes no futuro. Na comparação entre 2022 e 2024, os dois primeiros anos dos novos governadores, os gastos correntes de 26 Estados e Distrito Federal subiram 8,7%, e as receitas correntes cresceram 2,1%, já descontada a inflação entre janeiro e outubro de 2024.

A nova rodada de gastos coincide com mais um programa de renegociação das dívidas dos Estados, feita para trazer de volta à adimplência os maiores devedores, como Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, que estavam no anterior Regime de Recuperação Fiscal, Minas Gerais, que não aderiu a ele, e São Paulo, que paga seus débitos em dia. Os quatro compõem 90% do total devido, de R$ 765 bilhões.

Os Estados que mantiveram seus compromissos em ordem receberão, como prêmio, recursos advindos de um fundo composto por depósitos dos governos regionais, criado para receber parte do dinheiro que será usado em contrapartida do abatimento de juros. O plano, o Programa de Pleno Pagamento de Dívida dos Estados (Propag), é generoso e foi sancionado com vetos que atingiram os governos que não estão pagando dívidas, como Rio e Minas, ou que estavam momentaneamente dispensados de fazê-lo, como o Rio Grande do Sul.

O Propag foi uma iniciativa do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que almeja o governo de Minas, com o apoio de Lula. As condições são benevolentes a ponto de o presidente, contestando críticas dos governadores de Minas, Rio e Rio Grande do Sul, dizer que nem Jesus Cristo faria algo parecido. Ao propiciar a eliminação dos juros em troca de os Estados investirem, o governo abre mão de receitas, pois paga agora 13,25% para emitir títulos indexados à Selic (metade de sua dívida acompanha os juros) enquanto os Estados terão apenas a correção pelo IPCA.

A enxurrada de despesas propiciada pela PEC da Transição no primeiro ano do mandato de Lula foi coadjuvada por gastança maior nos governos regionais, de acordo com estatísticas coletadas por Manoel Pires, do Centro de Política Fiscal do FGV Ibre. O gasto federal real acumulado no último trimestre - deflacionado pelo IPCA, dessazonalizado e excluindo todas as transferências para Estados e municípios - cresceu de R$ 466 bilhões (até dezembro de 2022) para R$ 626 bilhões (até dezembro de 2023). As despesas públicas reais saltaram de R$ 475 bilhões na média dos quatro trimestres de 2019 para os R$ 540 bilhões no terceiro trimestre de 2024, 13,8% de aumento. No mesmo período, o gasto real dos governos subnacionais foi de R$ 458 bilhões para R$ 630 bilhões, ou alta de 38%.

O governo freou parcialmente a gastança porque tem metas fiscais a cumprir, ao passo que nos Estados não há controle fora os determinados pela Lei de Responsabilidade Fiscal, negligenciados pelos maiores devedores (exceto São Paulo). A disponibilidade de dinheiro para os Estados acompanhou a alta das transferências da União para eles. Pelos cálculos de Pires e Braulio Borges, da LCA Consultores, as transferências reais - deflacionadas pelo IPCA, a preços constantes de setembro por meio dos Fundos de Participação dos Estados (FPE) e municípios (FPM) - aumentou de R$ 329,5 bilhões em 2017 para R$ 474,8 bilhões nos 12 meses até setembro de 2024, com 44% de aumento real. Quando a eles se somam outras transferências, como as do Fundeb e do Fundo Constitucional do Distrito Federal, emendas Pix e Lei Kandir, seu total aumenta de R$ 350 bilhões em 2017 para R$ 591 bilhões nos 12 meses até setembro de 2024, avanço real de quase 70%.

O governo federal também suavizou as classificações para obtenção de crédito aos entes federativos, que cresceu. Não haveria motivo para que Estados deixassem de pagar dívidas, especialmente Rio e Minas, que estão, ao lado de São Paulo e Rio Grande do Sul, entre os mais ricos do país. Eles querem mais: queixam-se de que não poderão usar para abater dívidas o Fundo de Desenvolvimento Regional, criado pela reforma tributária e que nem existe ainda. A leniência ocorreu também nos governos petistas anteriores, que incentivaram crédito aos Estados e renegociaram suas dívidas. A história se repetiu no acordo feito por Lula e se repetirá mais à frente. Com despesas crescendo acima das receitas, haverá déficits no futuro, com dívida maior e nova renegociação no horizonte.

Todos perdem com guerra comercial de Trump

Folha de S. Paulo

Medida que aumenta tarifas sobre importações de Canadá, México e China pode impactar mercado de trabalho e inflação

Com sua retórica beligerante costumeira, Donald Trump instituiu a primeira medida que pode gerar uma guerra comercial com grande impacto para a economia mundial.

Sem distinguir entre aliados e adversários, o presidente dos Estados Unidos decidiu impor tarifas de 25% sobre as importações do México e do Canadá —com exceção de energia, que será taxada em 10%.

Também haverá tarifas de 10% para importações da China, em adição às cobranças já vigentes, que abrangem certas categorias de produtos.

Juntos, os três perfazem 43% das importações americanas, o equivalente a US$ 1,3 trilhão (em torno de 4,8% do PIB).

A alta das taxas com essa abrangência fará com que a cobrança média sobre todas as importações passe de cerca de 3% para quase 11%, acima da tarifa linear de 10% proposta por Trump durante sua campanha eleitoral.

As justificativas alegadas não são apenas econômicas. Ao invocar poderes emergenciais, Trump mencionou o fluxo ilegal de imigrantes e drogas, em especial os opioides traficados por cartéis mexicanos com componentes obtidos na China. No caso do Canada, haveria evidência de aumento do tráfico pela maior fronteira não vigiada do mundo.

Trump faz valer, assim, sua obsessão com tarifas, que prometeu usar mais amplamente como arma, e não somente para conter o déficit comercial do país, de quase US$ 1 trilhão anual. Na melhor das hipóteses, as medidas podem ser revertidas após negociações, mas os riscos são grandes.

No caso dos vizinhos, há gigantesca assimetria. Ambos destinam quase 80% de suas exportações aos EUA, o que representa 22% do PIB do Canadá e 35% do PIB do México. Já as compras feitas pelos EUA dos dois países somam 4% do PIB americano.

Mesmo assim, o Canadá já anunciou a mesma cobrança sobre cerca de US$ 106 bilhões em bens que importa dos EUA. A China foi mais contida, prometendo levar o caso à Organização Mundial do Comércio, mas não se descarta uma reação mais dura. O México tem a posição mais frágil.

De todo modo, também haverá custos para os EUA. Mesmo com diminuta representação no PIB, as compras americanas são grandes em setores considerados críticos, como o automotivo.

A inviabilização de um pedaço da cadeia produtiva é capaz de produzir reação cumulativa que custará empregos para a população americana. Não se devem descartar efeitos recessivos.

Projeta-se ainda um impacto inflacionário, algo que pode ser contraproducente para Trump. A alta nos preços de alimentos e gasolina, afinal, foi uma das explicações para a derrota eleitoral do Partido Democrata.

Por ora, o republicano não parece se importar e acredita que seu método agressivo pode trazer vitórias imediatas. Mas o uso repetido de tarifas e da coerção pode afastar aliados e, ao longo do tempo, enfraquecer a liderança global já combalida dos EUA.

Uma saída política para a polêmica previdência do Chile

Folha de S. Paulo

Após protestos de 2019 e tentativa frustrada de mudar Constituição, governo de esquerda consegue acordo para uma reforma

O governo de Gabriel Boric, presidente do Chile, parece enfim ter encontrado uma saída para atenuar as tensões em torno do sistema previdenciário do país —que desde os anos 1980 se tornou objeto de debate político e econômico que transcende as fronteiras chilenas.

Por meio de um entendimento com a oposição à direita, foi possível aprovar, na semana passada, uma reforma do regime legado pela ditadura de Augusto Pinochet, que se estendeu de 1973 a 1990. A dez meses das eleições presidenciais e legislativas, a mudança pode ser um trunfo para a esquerda alinhada a Boric.

Para o país, trata-se de um caminho mais sensato depois de tentativas frustradas de mudar todo o seu ordenamento jurídico.

Com políticas liberais —entre elas a previdência privatizada, em que cada pessoa poupa para sua aposentadoria— mantidas pela democracia, o Chile ostentou por décadas o melhor desempenho econômico da região.

Sua renda per capita era inferior à brasileira em 1984 (US$ 9.000 ante US$ 12,3 mil, segundo o cálculo do Fundo Monetário Internacional que leva em conta o poder de compra das moedas). Hoje, ela se aproxima do padrão rico, com US$ 29,5 mil, bem acima dos US$ 19,5 mil no Brasil.

Isso não impediu, porém, uma onda de protestos populares em 2019, que suscitou comparações com o que já ocorrera aqui em 2013. Os motivos eram difusos, mas a insatisfação de idosos de baixa renda com as aposentadorias estava entre os principais. Daí decorreram a eleição de Boric e propostas desencontradas para uma nova Constituiçãoque não obtiveram apoio na sociedade.

A reforma ora aprovada, longe de desmontar completamente o modelo de capitalização, preserva os fundos de pensão como o motor do sistema e a idade mínima de 65 anos para a aposentadoria de homens e mulheres.

A mudança chilena está assentada especialmente na obrigatoriedade de aportes de empresas públicas e privadas. Essa arrecadação adicional será destinada a elevar benefícios e corrigir disparidades, inclusive de gênero.

Em princípio, espera-se que as novas regras sejam capazes de elevar os valores recebidos por cerca de 20% da população até o fim desta década. Deseja-se, ademais, a inclusão de jovens e trabalhadores informais.

É cedo para dizer se a reforma atingirá seus propósitos e será sustentável. Em todo o mundo, sistemas previdenciários precisam ser ajustados de tempos em tempos. O Chile acerta ao fazê-lo de modo racional, não à base de comoção e reviravoltas.

A quadratura do círculo da reforma ministerial

O Estado de S. Paulo

A alta desaprovação popular de Lula pode contaminar ainda mais a prometida reforma ministerial e se tornar um perigo adicional para um governo já marcado pela disfuncionalidade

Além do risco de acelerar a adoção de medidas demagógicas e ampliar o arsenal de bobagens produzidas pelo governo, o derretimento da aprovação ao presidente Lula da Silva, radiografado pelas últimas pesquisas, tem pelo menos mais um efeito colateral significativo: fragilizar ainda mais a base de apoio do Executivo no Congresso e, consequentemente, contaminar a prometida reforma ministerial.

A tradicional cartilha que rege as relações em Brasília sugere que, com a popularidade em baixa, crescem as dúvidas sobre a musculatura política do presidente, sobretudo quando se olha para a sua sucessão em 2026, e sobem os custos da preservação de alianças, especialmente dos partidos de centro que compõem a coalizão governista. Mas o atual estágio da política brasileira não é regido apenas pelos códigos tradicionais. Se a disfuncionalidade do governo (com sua ineficiência crônica), da coalizão governista (ampla, heterogênea e fragmentada demais) e das relações com os demais Poderes (um Executivo enfraquecido, um Legislativo opaco e com poderes exacerbados pelo controle do Orçamento e um Judiciário politizado em demasia) já deixa mais penosa a vida de Lula, esse problema fica ainda mais sério diante da sua impopularidade.

Há a expectativa de que Lula faça mudanças tanto para trocar ministros com trabalho mal avaliado – e não são poucos, num governo cuja marca maior, até aqui, é a ausência de grandes marcas – quanto para reorganizar seus partidos aliados. Em outras palavras, como muitas reformas promovidas por Lula e seus antecessores, o manejo da coalizão multipartidária ancora as mudanças, pois é um modo de acomodar novos aliados, redistribuir cargos e orçamentos, fortalecer a base para aprovar agendas de interesse do Executivo, repactuar acordos ou preparar a coalizão para a próxima eleição. É do jogo. Mas essa reforma, se houver, terá também outra motivação: a ineficiência e mediocridade do ministério atual.

Como hábil prestidigitador, capaz de artimanhas para se manter no centro do universo e deliberar ao seu tempo e preferência, o presidente tem emitido sinais diversos ao sabor de suas conveniências: ora sugere que fará uma reforma ampla, ora diz que planeja mudanças pontuais. Como bom demagogo, Lula não vive sem ter a plena convicção de que é amado. Obcecado com a popularidade, inconformado com a maior desaprovação ao seu governo e ansioso pela eleição em 2026, o presidente parece escolher o caminho errado, ao intuir que precisa acelerar as pautas da esquerda.

Com uma agenda mais à esquerda do que deveria, e com a qual não foi eleito, Lula busca mirar tanto a disputa presidencial quanto moldar o seu legado – afinal, está perto dos 80 anos e não raro tem se mostrado inquieto sobre o seu futuro político. A aceleração de uma agenda de esquerda em prol de um legado lulista, contudo, tornará muito mais difícil para os partidos de centro aderirem, se não for por um preço muito mais alto do que o habitual. Na cosmologia do poder, isso significa mais recursos orçamentários e mais cargos para aliados – e maior prejuízo ao País. Vale tanto para as legendas centristas tradicionais, como MDB e PSD, quanto para o chamado Centrão, liderado pelo PP de Arthur Lira.

Se o apetite dos partidos é um fator de instabilidade adicional para o atual mandato, a concentração de poderes no PT vira um problema ainda mais grave na discussão de uma reforma ministerial. A coalizão de Lula tem hoje 18 partidos, e petistas dominam quase metade das pastas, incluindo os ministérios que funcionam perto do presidente, no Palácio do Planalto. É uma evidência da dificuldade crônica do PT de dividir o poder com aliados e da incapacidade do lulopetismo de aceitar que a volta ao poder, sacramentada com a eleição de 2022, não foi fruto das suas virtudes nem de sua agenda, mas de uma frente ampla temerosa dos riscos democráticos representados pelo bolsonarismo.

Lula precisará conciliar essas premissas aparentemente inconciliáveis. É a quadratura do círculo da sua reforma ministerial: um Executivo enfraquecido e impopular que espera agradar a aliados centristas enquanto deseja acelerar uma agenda de esquerda e resiste a dividir o poder. Não tem como dar certo.

O pacotinho fiscal

O Estado de S. Paulo

Se o ajuste já não enfrentava as disfunções estruturais que degradam as contas públicas, mesmo seus arremedos de contenção serão anulados pelos gastos a serem incorporados ao Orçamento

É sintomático que, ao anunciar em cadeia nacional, no final de novembro, o pacote de “corte de gastos” do governo, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, não tenha pronunciado uma única vez a palavra “corte”. Deliberadamente ou não, foi sincero. Mesmo em sua idealização original, o pacote não trazia nenhuma redução nas despesas totais da União. Na melhor das hipóteses, desaceleraria o seu crescimento na expectativa de que ele não superasse o crescimento da economia. Como essa expectativa não era sólida, os agentes de mercado se refugiaram no dólar. Agora, o que já não era sólido se desmanchou no ar. À época se dizia que a montanha pariu um rato. Mas até o rato era ilusão de ótica.

O Orçamento de 2025 foi enviado pelo governo ao Congresso em agosto, mas sua aprovação foi adiada e deve acontecer só neste mês. Conforme apurado pelo Estadão, os gastos que precisarão ser incluídos praticamente empatam com os “cortes” projetados no pacote fiscal. Isso porque algumas despesas crescerão mais que o previsto e programas que foram surrupiados da proposta orçamentária original precisarão ser incorporados.

Segundo consultores do Congresso, só o impacto da inflação sobre o reajuste do salário mínimo, que forma a base de cálculo da Previdência Social, deve elevar os gastos com os benefícios em R$ 14 bilhões. As maracutaias do governo para excluir do Orçamento os gastos do Auxílio Gás (R$ 2,8 bilhões) e das bolsas estudantis do programa Pé-de-Meia (R$ 3,6 bilhões) foram desarmadas, e eles também precisarão entrar na conta. Além disso, há os R$ 8 bilhões para o Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais, criado pela reforma tributária para compensar empresas que perderão benefícios concedidos pelos Estados, que também não constavam da proposta orçamentária original. Tudo somado, são pelo menos R$ 28 bilhões, o que absorve praticamente todo o ajuste de R$ 29,4 bilhões estimado pela equipe econômica no pacote fiscal.

Para piorar, o aumento dos gastos pode ser ainda maior, porque a economia projetada pelo governo depende, entre outras coisas, de medidas ainda não aprovadas, como a mudança no regime de aposentadoria dos militares, e medidas administrativas que podem não ser consideradas na proposta orçamentária, como o pente-fino em benefícios sociais.

Para piorar ainda mais, as projeções de arrecadação do governo foram com toda certeza superestimadas. A única dúvida é quanto. Projetos como o do aumento das alíquotas da Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido ou o dos Juros Sobre Capital Próprio estão parados no Congresso, e suas receitas dificilmente se concretizarão. As receitas extraordinárias de R$ 28,5 bilhões projetadas para 2025 após a volta do voto de qualidade pró-Receita Federal no Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf) são pura miragem. Para dar uma ideia, dos R$ 55 bilhões que o governo esperava arrecadar em 2024, o Carf entregou só R$ 307 milhões, uma realidade 99,5% menor que a fantasia de Haddad.

Entre as receitas e despesas, a Instituição Fiscal Independente, vinculada ao Senado, calcula que o governo fechará 2025 com um resultado negativo nas contas públicas de 0,7% do PIB, léguas de distância dos 2% de superávit que seriam necessários para estabilizar a dívida pública.

O apetite arrecadatório do Planalto já atingiu o limite de suas possibilidades. De resto, da maneira como o arcabouço fiscal foi projetado, o aumento das receitas eleva automaticamente as despesas obrigatórias, criando um círculo vicioso. Se algum otimista nutria a esperança de que o governo enfrentaria seriamente reformas estruturais pelo lado das despesas, como a revisão da política de aumento real do salário mínimo ou novas regras para os reajustes dos benefícios previdenciários e dos gastos mínimos com saúde e educação, ela morreu em novembro com a apresentação do pacote fiscal. Se o pacote já era apenas um pacotinho em 2024, quem o abre no ano pré-eleitoral de 2025 vê que mesmo o pacotinho está vazio.

O presidente Lula gosta de dizer que, passada a primeira metade do governo, a segunda será dedicada à colheita. Mas na seara fiscal ele só semeou vento.

O segredo de Janja

O Estado de S. Paulo

A primeira-dama almeja os bônus da função pública sem o ônus da transparência

Não existe o cargo de “primeira-dama” na administração pública brasileira. Como se sabe, trata-se apenas de um título informal de designação do cônjuge do chefe do Poder Executivo. No entanto, o governo do presidente Lula da Silva tem atribuído à primeira-dama Rosângela da Silva, a Janja, um papel institucional que não tem lugar na estrutura formal do Estado. Em outras palavras: Lula posicionou sua mulher em uma espécie de limbo funcional, o que é muito conveniente para o governo e para a própria Janja.

Sempre que é questionado pela imprensa, não raro por meio da Lei de Acesso à Informação, sobre a agenda e as despesas públicas de Janja, o Palácio do Planalto, sistematicamente, as sonega sob a justificativa de que a primeira-dama “não exerce função pública” nos termos da Lei 8.112/90, razão pela qual ela estaria isenta de prestar contas à sociedade.

Contudo, quando interessa ao governo ou à própria Janja, a primeira-dama assume uma posição de destaque, quando não de protagonismo, em eventos oficiais no Brasil e no exterior, representando o governo do marido ou até mesmo o Estado em eventos e instâncias nos quais, a rigor, só servidores ou mandatários investidos do múnus público teriam legitimidade para atuar em nome do País.

Exemplos da atuação pública de Janja são abundantes. A primeira-dama representou o Brasil na cerimônia de abertura da Olimpíada de Paris, teve participação destacada nos eventos ligados à cúpula do G-20 no Rio, em novembro passado, e, em breve, deverá representar o País em um fórum em Roma sobre a Aliança Global de Combate à Fome, ao lado do ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, Wellington Dias. Na ausência de Lula, por que é Janja quem irá a Roma, e não o vice-presidente Geraldo Alckmin ou o embaixador do Brasil na Itália?

Como se vê, por um lado, Janja exerce atividades típicas de uma autoridade pública quando lhe convém, inclusive influenciando políticas e agendas do governo. Por outro, o Palácio do Planalto se recusa a prestar informações sobre o exercício dessas funções, eximindo-se da obrigação de prestar contas e divulgar detalhes da agenda oficial da primeira-dama. Essa contradição afronta o princípio da publicidade, estabelecido no art. 37 da Constituição, além de violar o direito constitucional da sociedade à informação, previsto no art. 5.º, inciso XXXIII, da Lei Maior.

A transparência na administração pública é inegociável, pois se trata de uma das vigas mestras da democracia. Qualquer um que exerça função pública, de jure ou de facto, deve estar submetido aos mecanismos de controle exigidos pelo ordenamento jurídico pátrio. O status impreciso de Janja, portanto, além de suscitar sérias dúvidas quanto ao compromisso do governo de seu marido com a publicidade de seus atos, ainda se afigura como uma violação permanente da legislação brasileira.

Não se pode servir a dois senhores. Janja não pode usufruir dos bônus da função pública ao mesmo tempo que o governo manobra para evitar seus ônus a todo custo.

Trabalho escravo: vergonha que resiste

Correio Braziliense

Não são estados considerados menos desenvolvidos que lideram a vexatória lista da escravidão moderna. Nos primeiros lugares em total de flagrantes estão duas das mais prósperas unidades da federação: Minas Gerais e São Paulo

Em pleno século 21, quando se discutem avanços tecnológicos do porte da inteligência artificial ou questões de direito trabalhista, como a duração da jornada semanal, uma chaga teima em permanecer aberta no Brasil, degradando a dignidade de algumas das parcelas mais frágeis da população. O mais recente balanço do Ministério do Trabalho mostra que o trabalho escravo contemporâneo segue como prática disseminada pelo país e, embora seja mais comum em rincões remotos, não raro é flagrado em áreas urbanas e até mesmo em ambientes familiares.

Dados de 2024 apontam que, em 1.035 ações de fiscalização direcionadas especificamente a essa questão, nada menos que 2.004 trabalhadores foram identificados em condições semelhantes à escravidão. Chama a atenção o fato de que, embora as lavouras sejam, no conjunto, o ambiente em que mais foi flagrado esse tipo de exploração, a construção civil figure individualmente como setor com maior número de resgatados no ano passado: 293, segundo estatísticas oficiais.

Outro dado preocupante indica que não são estados considerados menos desenvolvidos que lideram a vexatória lista da escravidão moderna. Nos primeiros lugares em total de flagrantes, estão duas das mais prósperas unidades da federação e do Sudeste brasileiro: Minas Gerais e São Paulo.

No último ano, Minas repetiu a triste liderança nesse quesito, que ocupa desde 2013: nada menos que 500 trabalhadores foram resgatados no estado em condições semelhantes à escravidão. É como se uma a cada quatro pessoas identificadas em todo o país nessa condição sub-humana no ano passado estivesse em terras mineiras.

São Paulo, estado mais próspero do país e o que teve maior número de fiscalizações no período — foram 191, contra 136 em Minas Gerais — vem logo abaixo na lista, com 467 trabalhadores resgatados. Fecham o grupo dos 10 mais, com números consideravelmente menores, Bahia (198), Goiás (155), Pernambuco (137), Mato Grosso do Sul (105), Espírito Santo (59), Maranhão (57), Rio Grande do Sul (56) e Paraná (43).

Desde 1995, ano do reconhecimento oficial da existência de formas contemporâneas de escravidão no país, 65.598 pessoas foram salvas dessas condições por operações do poder público. Para efeito de comparação, se reunidos esses trabalhadores, somariam mais que a população individual estimada em mais de 5 mil dos 5.570 municípios brasileiros.

Entre 2003, quando começou a ser registrada a série histórica, e o ano passado, o Ministério do Trabalho contabiliza mais de R$ 155 milhões em verbas trabalhistas e rescisórias pagas por infratores às vítimas. Mas a punição, que inclui registro em cadastro negativo de empregadores e pena de até 8 anos de detenção — aumentada em 50% se a prática for motivada por etnia, cor, religião ou origem, ou se a vítima for criança ou adolescente —, não tem sido suficiente para erradicar esse tipo de crime.

Eliminar o trabalho escravo contemporâneo no país, como atesta o próprio governo, "depende de uma atuação abrangente do Estado, em constante articulação com a sociedade civil". Longe de ser tarefa apenas do poder público, denunciar situações do tipo e cobrar ações, fiscalizações e punições cada vez mais efetivas é papel das instituições e de cada cidadão, para identificar e responsabilizar exemplarmente os que seguem buscando enriquecer à custa do sofrimento e da dignidade de outros seres humanos.

 

 

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