segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Coronelismo, trator e voto na nova República - Bruno Carazza

Valor Econômico

Davi Alcolumbre e Hugo Motta são a nova geração do velho coronelismo brasileiro

Às margens da rodovia Josmar Chaves Pinto, que liga a capital Macapá ao balneário de Fazendinha e ao movimentado porto de Santana, situa-se a sede da superintendência da Codevasf no Estado do Amapá.

Sim, a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco tem uma de suas “filiais” a mais de 3.100 km da nascente do rio, localizada na Serra da Canastra, em Minas Gerais, e 2.600 km distante da sua foz, na divisa entre Alagoas e Sergipe.

Um dos primeiros experimentos brasileiros de desenvolvimento regional, a Codevasf foi concebida na Constituição de 1946 tendo como inspiração a Tennessee Valley Authority, uma das prioridades do New Deal do presidente americano Franklin Delano Roosevelt para levar infraestrutura e fomentar a economia da região mais pobre dos Estados Unidos. A ideia era reproduzir no Nordeste brasileiro a estratégia de, a partir de uma hidrelétrica (a usina de Paulo Afonso, na Bahia), prover energia, irrigação e navegabilidade para uma das áreas mais atrasadas do país na época.

Nascida como Comissão do Vale do São Francisco em 1948, a Codevasf virou estatal em 1974 e desde então vem ampliando os seus domínios geográficos. Se o São Francisco era conhecido nos livros escolares de antigamente como o “rio da integração nacional”, a Codevasf foi agregando novos territórios às suas competências para muito além do seu leito principal e afluentes, movida não pelos propósitos do planejamento regional, mas em função dos interesses políticos.

Em 2000 a Codevasf chegou ao Maranhão e ao Piauí, acrescentando o “Parnaíba” ao seu nome. Em 2009 anexou o Ceará e em 2018 ampliou sua área para o Tocantins e o Pará. A chegada ao Amapá deu-se em 2020, por influência direta do senador Davi Alcolumbre, então presidente do Senado, que voltou ao cargo no fim de semana.

O jurista mineiro Victor Nunes Leal (1914-1985), em seu clássico “Coronelismo, Enxada e Voto”, expõe como as relações de poder se articulam do plano federal às oligarquias municipais. Utilizando dados estatísticos e informações legislativas, trata-se de uma das primeiras obras da ciência política moderna no Brasil, revelando como o sistema eleitoral conecta, pelo voto de uma população carente das necessidades mais básicas, os interesses das elites nacionais com o poder dos líderes políticos locais.

Na visão de Nunes Leal, essas relações eram alimentadas, pelo alto, com a distribuição de recursos do erário, de empregos públicos e de outros tipos de favores, enquanto na base imperavam o filhotismo e o mandonismo - ou seja, a promoção dos vínculos de parentesco e amizade, de um lado, e as perseguições, muitas vezes violentas, aos adversários políticos, de outro.

Publicada em 1948 como fruto de sua tese para ingressar como professor na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (atual UFRJ), a obra de Nunes Leal está longe de ser uma reflexão sobre a política brasileira da primeira metade do século XX.

Davi Alcolumbre e Hugo Motta detêm o título de parlamentares mais jovens a ocupar as presidências do Senado e da Câmara, respectivamente. A ascensão de ambos, porém, está diretamente ligada ao velho do coronelismo brasileiro, atualizado a cada geração.

Hugo Motta descende, tanto pelo lado materno quanto paterno, de famílias de políticos que dominam a região de Patos, no sertão da Paraíba, desde o final do século XIX. Já Davi Alcolumbre, embora seja proveniente de um Estado jovem - o Amapá foi território federal de 1943 a 1988 -, não deixa de possuir laços com uma longa tradição oligárquica. O novo presidente do Senado entrou na política tendo como padrinho José Sarney, que foi senador pelo seu Estado de 1991 a 2015 e teve como suplente durante dois mandatos Salomão Alcolumbre, tio de Davi.

As vitórias esmagadoras de Motta e Alcolumbre, com o apoio de praticamente todos os partidos e votos de mais de 85% dos parlamentares de cada Casa, representam a defesa da mais poderosa arma à disposição do coronelismo brasileiro: as emendas parlamentares.

Apesar da pouca idade, Motta ganhou espaço na Câmara ao se aliar a Eduardo Cunha, um dos artífices da imposição ao Executivo da obrigatoriedade de aplicar os recursos segundo a indicação dos parlamentares. Já Davi Alcolumbre, na sua primeira passagem pelo posto mais importante do Senado, foi um dos cocriadores do orçamento secreto no governo Bolsonaro, ao lado de Arthur Lira, padrinho de Motta.

Os muitos milhões de reais destinados a cada deputado e senador via emendas se materializam em obras, tratores, caminhões de lixo e outros equipamentos nos seus redutos eleitorais.

Não é por outro motivo que o rio São Francisco foi desviado até o Amapá. Com regras mais flexíveis de aquisição e contando com a complacência dos órgãos que deveriam fiscalizar seus recursos, a Codevasf tornou-se uma das principais ferramentas para os políticos angariarem o apoio dos velhos e novos coronéis de Norte a Sul do país.

No lugar da enxada, o trator. De resto, com as emendas de Orçamento e estatais como a Codevasf, a conexão entre o coronelismo e o voto está ainda mais forte no Brasil.

 

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