O Globo
É muito provável que a visão dominante entre
as big techs conte com uma futura impossibilidade da vida na Terra
A coalizão das big techs com o governo Trump
é um tema inesgotável. Estava precisamente pensando nelas quando estourou o
caso da DeepSeek, startup chinesa que fez as empresas de tecnologia dos Estados Unidos e
da Europa perderem US$ 1 trilhão em valor de mercado porque demonstrou que pode
fazer mais na inteligência artificial com menos dinheiro.
A empresa chinesa tem seus pontos
vulneráveis, e um deles é não responder a questões políticas proibidas pelo
Partido Comunista. Mas não deixa de ser um incentivo para os que têm condições
de buscar um caminho autônomo.
Quando aconteceu esse pequeno terremoto no Vale do Silício, eu refletia sobre uma frase enigmática de Elon Musk na posse de Donald Trump. Ele disse que a conquista de Marte salvaria a civilização. Já mencionei o desejo de Trump pela Groenlândia e cheguei à conclusão de que talvez ele não seja tão negacionista assim. Musk, que produz carros elétricos, conta com a colonização do espaço como alternativa ao nosso planeta.
É muito provável que a visão dominante entre
as big techs conte com a futura impossibilidade da vida na Terra e pense uma
fuga para a frente em duas direções: a colonização do espaço ou um avanço
tecnológico que reformule completamente o planeta e o torne habitável, apesar
de toda a destruição.
Em ambos os casos, os ecologistas que propõem
uma revisão da forma de consumir e produzir são vistos como nostálgicos
retrógrados. Há até intelectuais que consideram a ecologia o novo ópio do povo.
Nessa formulação meio science fiction, não só
o mundo será remodelado pela tecnologia. Ela também ampliará a vida dos seres
humanos e mais adiante os imortalizará, codificando a consciência em
aplicativos para uma eventual reencarnação em corpos sintéticos.
O sonho de recriar um planeta por meio da
tecnologia já foi mencionado por John Gray como uma espécie de solidão radical.
Um exemplo do que nos espera pode ser encontrado no livro de Rachel Carson
“Primavera silenciosa”. Inspirador de muitos ambientalistas, fala da
desaparição dos pássaros numa área contaminada por agrotóxicos.
Claro que a tecnologia pode reproduzir o
canto dos pássaros, o barulho da chuva e outros artifícios que já existem nos
nossos telefones. Mas alguns problemas decorrem dessa fuga adiante, a produção
desenfreada que esses teóricos veem não só como destino humano, mas também como
base da felicidade.
Um deles é o tempo. A multiplicação de
eventos extremos, o crescente número de refugiados do clima, os problemas de
saúde e alimentação que decorrem do aquecimento — tudo isso não pode esperar
uma utopia duvidosa do sonho de consumo ilimitado. Estou apenas alinhando a
existência dessas posições para acentuar que nem sempre estamos lidando com
negacionistas do tipo Jair Bolsonaro.
Muito possivelmente, os ventos do Norte nos
trazem uma nova concepção a discutir, segundo a qual o aquecimento existe, mas
é preciso produzir e esgotar os recursos planetários porque a tecnologia
encontrará resposta, e uma fração da humanidade sobreviverá não só para
desfrutar esse futuro solitário ou, como alternativa, se mudar para Marte.
É importante registrar que um setor da
esquerda também adota uma teoria da aceleração. Ele combate os ambientalistas
com o argumento de que é preciso acelerar o capitalismo em busca de uma
alternativa. Frear a desgovernada máquina do crescimento econômico apenas nos
prenderia ao passado, fantasioso e injusto.
Minha intuição a partir da frase de Musk e do
interesse de Trump pela Groenlândia é que estamos diante de políticas que, de
certa forma, foram antecipadas pela teoria, sobretudo nos Estados Unidos.
*Uma análise brilhante dessas correntes de
pensamento encontra-se no livro dos brasileiros Déborah Danowski e Eduardo
Viveiros de Castro “Há mundo por vir?”
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