César Felício / Valor Econômico
Para Maria Hermínia Tavares de Almeida, falta
marca administrativa para a gestão Lula
As vitórias retumbantes de Hugo Motta
(Republicanos-PB) e Davi Alcolumbre (União Brasil-AP) para as presidências da
Câmara e do Senado não representam ameaça à governabilidade do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva na etapa final de seu mandato, na visão da cientista
política Maria Hermínia Tavares de Almeida.
“O Centrão é conservador. Sempre esteve no
governo, qualquer governo, de Sarney até agora. Então não tem problema de
governabilidade, tem problema de capacidade de negociação”, diz a professora
emérita da USP e pesquisadora do Cebrap.
Maria Hermínia vê no próprio Palácio do
Planalto o principal desafio político de Lula no momento. “O problema do
governo, a meu juízo, é menos o fato de o Congresso ser majoritariamente de
direita. O problema do governo é que eu acho que ele não tem foco”, afirma.
Maria Hermínia diz que a negociação com o
Congresso Nacional seria mais fácil se o governo tivesse prioridades claras. A
impositividade do Orçamento e o crescimento do peso das emendas parlamentares,
por si só, não comprometem a ação do governo. “Eu acho que há sim espaço para
negociar, desde que o governo tenha clareza em relação ao que quer”, comenta.
O Centrão sempre esteve no governo. Não tem
problema de governabilidade, tem problema de capacidade de negociação”
Para a cientista política, falta uma marca
administrativa para a gestão de Lula, que classificou como “morna”. “O governo
é muito titubeante. Ele quer falar para uma faixa de brasileiros que está um
pouco acima da pobreza extrema, mas o que ele está dizendo de fato?”, indagou.
A seguir, os principais trechos da entrevista ao Valor:
Valor: Quais são as perspectivas de governabilidade do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva neste fim de mandato, com o Legislativo
sob novo comando?
Maria Hermínia Tavares de
Almeida: Não
é de hoje que a que a direita predomina no Congresso Nacional. Ela sempre
predominou ali, desde a redemocratização. A maioria dos deputados sempre esteve
do centro para a direita, mesmo no segundo mandato do Lula, quando a esquerda
cresceu um pouco mais. A direita sempre foi muito pragmática, ou seja,
adaptou-se e negociou com diferentes tipos de governo. O que aconteceu a partir
de 2018 é que uma parte da direita ficou mais rígida, mais ideológica, mais
extremada. Essa parte, embora muito significativa, não é a maioria da direita.
O Congresso, continua sendo pragmático e disposto a negociar com o governo. Eu
acho que o problema de governabilidade não existe. Existe o problema de que a
possibilidade de o governo fazer políticas mais avançadas está limitada pelo
fato de que a maioria do Congresso é de direita, porque o país é
majoritariamente de direita. Mas, o problema do governo, a meu juízo, é menos o
fato de o Congresso ser majoritariamente de direita. O problema do governo é
que eu acho que ele não tem foco.
Valor: De que modo isto se evidencia?
Maria Hermínia: Ele não tem
clareza com relação a suas prioridades, as prioridades que podem ser negociadas
nesse contexto. O presidente Lula foi eleito com uma plataforma que estava
voltada para o passado, para as coisas que o PT tinha feito. Em 2022, não houve
espaço, não houve energia, não houve disposição de discutir uma agenda nova.
Ele se elegeu com uma agenda velha e com pouca clareza com relação ao que podia
fazer. O Congresso, tem uma ala mais dura, mais extremada, mas que é minoria
também. O resto está disposto a negociar. Para negociar é melhor ter as
prioridades claras. Tem que ter hierarquia do que se quer e do que não se quer
fazer. E tem que ter disposição para ir negociando na medida do possível,
sabendo que coisas muito arrojadas não passarão
Valor: O controle do Orçamento por parte do Congresso
nos últimos dez anos não é um limitador grave para o governo estabelecer suas
prioridades?
Maria Hermínia: Eu acho que as
condições em que o sistema presidencialista funcionou até meados da década
passada não existem mais. O Congresso foi ganhando espaço, poder através das
emendas. Mas essas são circunstâncias em que qualquer governo vai governar
daqui para diante. A política está aí para resolver dificuldades. Eu acho que
isso não impede o governo de estabelecer as suas prioridades. Eu acho que temos
uma visão muito estilizada das emendas. Sabemos que elas são importantes para
os parlamentares, que vão para os redutos políticos, mas agora o que se faz com
elas não se sabe direito. Não conheço nenhum estudo bom sobre a destinação das
emendas. Uma parte das emendas é para a saúde. E não dá para fazer política
nesta área porque os parlamentares fazem emenda? Não dá para conversar, não dá
para negociar? Não sei, talvez dê. Eu tenho a suspeita de que nem tudo é para
fazer fonte luminosa ou irrigar o bolso dos cabos eleitorais. Tem uma parte
disso que é política pública feita pelo Congresso. O que sai no jornal,
naturalmente, é o que é ruim; a lógica do noticiário é monitorar os desvios.
Mas nem toda a emenda é desvio. Lógico que maior autonomia do Congresso indica
a necessidade de uma nova maneira de o Executivo se relacionar com o
Legislativo. Isso não necessariamente cria problemas de governabilidade. Eu
acho que há sim espaço para negociar, desde que o governo tenha clareza com
relação ao que quer, senão fica tudo meio solto. Veja a questão da Segurança
Pública, um tema importante para a população. O Ministério da Justiça
apresentou uma proposta. O governo fala disso? Não. Isso saiu um dia no jornal,
mas onde é que está a construção dessa política? Isso é prioridade do governo
Lula ou não é prioridade? Quais são as prioridades do governo Lula? Eu não sei.
Valor: Falta uma marca ao governo?
Maria Hermínia: Falta uma
marca. Não é uma marca publicitária, falta uma marca de política pública, falta
uma agenda. O que o governo está oferecendo para a grande maioria da população?
No passado o Bolsa Família, o Luz para Todos, o Prouni foram programas grandes
que beneficiaram segmentos importantes da população. Onde é que estão programas
equivalentes aqui neste governo? Não estão. Você vê um governo morno. Faz
algumas coisas, não está fazendo nada fundamentalmente errado, mas não tem
fisionomia própria.
Valor: E qual o motivo para este governo Lula ser tão
diferente do anterior?
Maria Hermínia: Eu acho que as
condições nas quais se deu a campanha eleitoral, de confronto com um governo de
extrema direita, de uma certa forma facilitou a vida do PT. Ele pôde fazer uma
campanha vitoriosa, apesar de ter ganho por margem muito estreita, dizendo que
ia fazer uma reconstrução e acenando com os feitos do passado. Mas se
reconstrói fazendo coisas novas ou não. E para coisas novas tem que ter alguma
ideia do que fazer, de que públicos que se quer atingir. O governo é muito
titubeante. Ele quer falar para uma faixa de brasileiros que está um pouco
acima da pobreza extrema, mas o que ele está dizendo de fato? Me espanta muito
que a saúde seja a primeira preocupação da população em todas as pesquisas e
que neste governo, apesar da competência instalada no ministério, a saúde seja
um setor apagado. Outro tema é a segurança, que exige muita coordenação
federativa. O governo veio achando que podia continuar fazendo o que fez o
passado, mas o país mudou por conta do que foi feito no passado. O que precisa
agora são coisas diferentes, mais avançadas. Há limitações fiscais, mas de toda
maneira, você não vê as pessoas sequer pensando, tentando formular coisas
novas, com raras exceções -- na Fazenda, no Meio Ambiente.
Valor: A senhora acha que existe uma percepção
equivocada sobre o Centrão?
Maria Hermínia: O que eu quero
dizer é que eles são políticos conservadores pragmáticos, não são
programáticos. Programática é essa direita em torno do Bolsonaro. O Centrão
não, é conservador. Sempre esteve no governo, qualquer governo, de Sarney até
agora. Então não tem problema de governabilidade, tem problema de capacidade de
negociação. Naturalmente, a negociação pragmática aumenta o risco do uso
indevido da máquina pública. Mas, para monitorar isso existe a imprensa, a
sociedade civil organizada. Eu acho que às vezes, parte da elite educada e mais
progressista têm dificuldade de reconhecer que o Centrão tem base social. Seus
deputados se elegem da mesma forma que a Érika Hilton do Psol, oferecendo
opções ao eleitorado.
Valor: O aumento do antagonismo entre o Judiciário e o
Congresso em função das emendas não pode ter consequências para a
governabilidade?
Maria Hermínia: O Judiciário
teve um papel na proteção das instituições e foi acionado com frequência pela
sociedade para bloquear certas decisões no Congresso. Acaba tendo um ativismo
maior. Eu acho que isso tem um limite. Não é possível imaginar que você vai conseguir,
via Judiciário, impor políticas que não sejam aceitas no Legislativo, sob risco
de criar atrito institucional. A alocação dos recursos orçamentários é decisão
política e tem que ser negociada. Mas o problema do Judiciário é que, por sua
natureza, ele não pode negociar. O Executivo e o Legislativo podem negociar, as
forças da sociedade civil podem negociar, mas o Judiciário tem que interpretar
e aplicar a lei, defender a Constituição; ele não pode negociar uma
interpretação da Constituição. Por isso não é bom quando ele entra em questões
de política substantiva. A alocação dos recursos orçamentários tem que ser
tratada entre o Executivo e o Legislativo.
Valor: O Judiciário não tem um papel?
Maria Hermínia: O Congresso
ganhou poder para fazer política pública, e é importante que isso seja feito
com maior transparência. Eu acho que o Supremo de preferência deve ficar na sua
posição de garantidor da Constituição, dos direitos, das instituições democráticas,
e de alguma maneira, moderar o seu impulso de arbitrar políticas. Essas têm de
ser negociadas entre Executivo e legislativo - e numa democracia como a nossa,
mais negociadas ainda.
Valor: Do contrário, não havendo essa negociação,
acontece o quê?
Maria Hermínia: Não me atrevo a
prever.
Valor: Por vezes fazem aproximações da situação atual
daquela vivida pelo governo Dilma. A senhora acha que essa comparação é
cabível?
Maria Hermínia: Não tem nenhuma
razão para imaginar que esse governo não chegue ao final. Ele tem dificuldades,
não parece saber bem o que quer, mas não tem gente na rua pedindo impeachment
do presidente. No caso da Dilma houve um processo de mobilização contra o governo
a partir de 2014 e um enfrentamento entre o Executivo e o Legislativo que se
manifestou no confronto entre Dilma e Eduardo Cunha. Eu não acho que o governo
de hoje esteja buscando o confronto. A literatura de ciência política sobre o
assunto diz que um governo está sujeito a impeachment - ou a golpes - quando
perde o escudo parlamentar e quando tem mobilização na rua pedindo sua
derrubada. Não vejo nem uma coisa nem outra. Eu vejo um governo apagado, apesar
dos êxitos que tem tido.
Valor: Que êxitos?
Maria Hermínia: Ele conseguiu aprovar a reforma tributária, que é um tema que está aí na agenda da década e ninguém consegue fazer. Ele teve duas vitórias difíceis, o arcabouço fiscal e a reforma tributária. São êxitos importantes mais a médio prazo, são mais estruturais. O governo fez alguns programas importantes, o como o Desenrola, e Pé de Meia. Eu não vejo uma situação como a da Dilma. Vejo um governo limitado pela configuração de forças no Congresso, por alguma perda de apoio na opinião pública e por suas fragilidades internas, localizadas no coração do governo, no Palácio do Planalto.
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