Para Benjamin
Klein,
Naomi. Doppelgänger: Uma viagem através do Mundo-Espelho. Tradução
de Renato Marques. São Paulo: Carambaia, 2024. 480 págs.
Naomi
Klein fez novamente um esforço de síntese da política da direita contemporânea
que opera entre a radicalização e a institucionalização e o intercâmbio
possível dessas dinâmicas. Alguns de seus livros anteriores Sem logo: a
tirania das marcas em um planeta vendido (2002), Cercas e
janelas: na linha de frente do debate sobre globalização (2003), A
doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre (2008), Não
basta dizer não (2017), Em chamas: uma (ardente) busca por um
novo acordo ecológico (2021) e Como mudar tudo (2022),
onde sistematizaram características incipientes de nosso tempo em um todo
coerente, estão contidos no novo volume. Um exemplo claro é Sem logo,
onde ela sintetizou com exemplos concretos a maneira como as marcas se
alimentam de tudo o que é emocionante no mundo para dar vida aos seus produtos.
O resultado como ela mostra são os ressentimentos das marcas fracassadas.
Em A doutrina do choque, ela sintetizou como o sistema se aproveita
de sociedades abaladas por crises para avançar em seus negócios. É verdade:
ambas as ideias já existiam. A possibilidade de dar características a
diferentes produtos refere-se aos diversos tipos de fetichismos. A ideia de
crise como ferramenta de disciplina social e oportunidade para o sistema também
assombrou a muitos. Mas o mérito de Klein é aproveitar sua posição metamórfica
que combina ferramentas teóricas para se aprofundar com um jornalismo
investigativo que a leva a mergulhar naquelas realidades paralelas nem sempre
visitadas pelos acadêmicos.
Em seu novo livro, Doppelgänger, uma viagem através do mundo-espelho, ela mais uma vez consegue articular peças que pareciam soltas para formar uma figura mais clara neste presente colocado propositadamente na confusão. É o seu trabalho mais pessoal, no qual mais se expôs, possivelmente para ter mais empatia com os leitores que também estão preocupados e que têm batido a cabeça contra a realidade: como é possível que pessoas que se consideravam razoáveis agora acreditem em bizarrices como a de que o 5G vai nos matar com câncer ou eles vão colocar um microchip em nosso sangue?
Com
um esforço hercúlea, Klein leva a questão para outro ângulo evitando cair na
indignação e/ou na subestimação fácil. Para realizar sua tarefa, ela pega outro
personagem do mundo real com quem foi confundida ao longo de sua vida: Naomi
Wolf. Daí vem a ideia do doppelgänger, palavra que surgiu da
literatura alemã para descrever um duplo que nos obriga a olhar de fora.
Wolf
flertou com os feminismos alcançando alguma fama nos anos 1990 por seu
livro O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as
mulheres (1992). Como a própria Klein lembra de quando tinha 20 anos,
o livro não estava na vanguarda feminista (por exemplo, tratava apenas dos
efeitos do mandato da beleza nas mulheres), mas ela mesma tinha um carisma
enigmático capaz de expandir sua mensagem limitada em setores não preparados
para essa política.
Wolf
expôs sua reputação nos anos seguintes, criticando Israel do judaísmo por seus
ataques à população palestina, algo que lhe custou sua posição na universidade.
Mais tarde, sua falta de apego à pesquisa rigorosa a fez passar por uma
confusão na televisão que acabou colocando-a numa situação delicada naquele
mundo liberal progressista do qual ela aprendera a ser referência.
Desde
então, Wolf se dedicou a se juntar a todas as teorias da conspiração que
existiam. Tudo indicava que seu personagem definharia na irrelevância, mas com
a chegada da Covid-19 (a multiplicadora de ameaças) ela se colocou na vanguarda
de uma luta “heroica” contra uma doença que considerava inventada para instalar
o fascismo nos Estados Unidos da América e no mundo.
Foi
ela quem falou com as mães enlouquecidas e aterrorizadas com a obrigação de dar
a seus filhos (autistas ou não) uma vacina testada com métodos hodiernos. Steve
Bannon, que havia sido gerente de campanha de Donald Trump e é um dos
estrategistas da direita internacional, capturou aquela mulher para a Terra das
Sombras que ainda guardava uma aura de liberalismo feminista e a levou ao seu
programa para amplificar sua mensagem antivacina e contrária a Organização
Mundial da Saúde (OMS) que propugnou o distanciamento físico mantendo milhões
em suas casas.
Os
desentendimentos que Klein sofreu, especialmente por meio das redes, por causa
da sua homônima – também judia, também crítica das corporações e com um corte
de cabelo semelhante – a deixaram cada vez mais desconfortável. O assunto a
preocupava e ela se deu ao trabalho de entender melhor o que aquela outra Naomi
estava dizendo do outro lado do espelho e lá estava ela, consumindo horas
intermináveis do programa de Bannon e lendo suas entrevistas nas quais ela
pulava de uma teoria débil para a próxima sem olhar para trás.
A
virtude de Klein é que naquele momento ela não foi tranquilizada por uma
suposta superioridade moral do seu duplo. Além do mais, ela se permitiu
descobrir que muitos dos argumentos que usava começavam de maneira semelhante,
tal como Albert O. Hirschman (1915-2012) apontou no magnífico A
retórica da intransigência (1992): sim, era verdade que as empresas
farmacêuticas não se importavam com a saúde, mas apenas em ganhar dinheiro;
sim, ficou claro que as corporações de tecnologia usam nossos dados para nos
manipular; mas esses acordos por certos motivos terminaram quando Wolf concluiu
que as empresas farmacêuticas haviam inventado o Covid-19, que as corporações
de tecnologia queriam colocar um microchip em nosso sangue e/ou que Democratas
mantinham uma rede de pedofilia no porão de uma pizzaria de Nova York.
Naomi
Klein entendeu, assim como Wolf (mais intuitivamente) ou Bannon (mais
sistematicamente), que a direita pegou os grandes problemas do capitalismo que
a esquerda havia apontado por anos sem grandes resultados. Em seguida, ele
pegou essas questões, rearticulou-as em mensagens destinadas a indignar,
facilmente viralizar, entre pessoas que durante anos se sentiram abandonadas
pelo sistema, mas também pela incapacidade dos progressistas de fazer mais do
que diagnósticos. Onde a esquerda e não só havia falhado, se frustrando ou se
dividindo por discussões bizantinas sobre a linguagem inclusiva mais correta, a
direita reunia os feridos, as vítimas do sistema, para propor explicações mais
simples e compreensíveis para aqueles que chegavam em casa depois de 8 ou 10
horas de trabalho alheador.
Desnecessário
dizer que, quando a direita tinha o poder, ela apenas confrontava retoricamente
os poderes que havia denunciado com tanta veemência. Donald Trump não
desmantelou a especulação financeira de Wall Street nem colocou as corporações
de tecnologia em uma caixa para que parassem de brincar com o inconsciente
coletivo. Na verdade, ele e outros governantes de direita que florescem em todo
o mundo só podem permanecer no poder redobrando suas suspeitas sobre os outros.
No entanto, muitas vezes não é suficiente: é por isso que a indignação abre a
porta para versões ainda mais exacerbadas da loucura dominante.
O livro é extenso pois as maquinações delirantes possuem inúmeros desvios propositais. O que é certo é que Klein conseguiu algumas respostas a perguntas que flutuavam no ar e que nos permitirão repensar (a nós mesmos) neste clima global rarefeito.
*Ricardo
José de Azevedo Marinho é Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e
professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE, da Teia de Saberes e do
Instituto Devecchi.
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