O Globo
Um balanço sincero conclui que o terceiro
mandato de Lula não tem senso de urgência, não articula relações com a
sociedade, com a nova economia
Num aparente paradoxo, o governo Lula apresenta
bons números na economia sem reciprocidade nas curvas de popularidade e
intenção de voto. A taxa de desemprego é a menor da história, 6,6% (IBGE); a
equivalência do salário mínimo em cestas básicas (1,79) é a melhor desde 2020.
Preocupante, a inflação de alimentos não supera a aceleração de preços no
governo anterior.
O crescimento anual, acima de 3%, é incomparável com a média da última década (0,3%). O resultado fiscal, responsabilidade também dos grupos de pressão, não foi, ao final, a tragédia anunciada. Aos poucos, o dólar volta a patamar razoável. Pela indesmentível trama de um golpe de estado, inelegível, o líder da oposição pode estar entre a fuga e a prisão.
Nada disso atinge percepções e altera expectativas: a desaprovação a Lula (49%) ultrapassa a aprovação (47%). Mês a mês, complicam-se as chances de reeleição — feita, aliás, para reeleger. Sob olhares do centrão, do centro e do empresariado, pressionada, a direita já discute o nome de seu candidato, antes que outro aventureiro ocupe o espaço.
Um diagnóstico simplista e pusilânime reduz
esse quadro à incapacidade de comunicação do governo, desnorteado com o poder
das redes sociais. Há dois anos, Lula cultiva um modelo de comunicação íntimo e
mais afeito ao conflito que à inteligência. A política pune esse tipo de
capricho. Igualmente falacioso, é culpar o ministro da Fazenda. Escorregões à
parte, é no governo e no PT que Fernando Haddad colhe os maiores conflitos e
tem o menor apoio.
A ferida é outra: não há poder de agenda,
ideias modernas e inovadoras capazes de despertar esperanças na sociedade. Para
além da mesmice de políticas bem-sucedidas no passado, no geral, não há visão
de futuro sintonizada com o presente em transformação. A compreensão da
realidade e a articulação do governo são lentas, frequentemente atropeladas
pelos tratores de um sistema político que se deteriora. Trata-se de um governo
navegado pelo mar.
Evidências? Aviltado pela dinâmica extorsiva
das emendas ao Orçamento, o Executivo deposita no Judiciário esperanças de
retomar a iniciativa. Observa (estimula?) a ação de Flávio Dino, que, no
Supremo, tenta asfixiar o patrimonialismo do centrão. Passageiro da agonia,
desculpando-se por, supostamente, estar de mãos atadas, não reordena o jogo —
seu papel, por tradição e cultura.
Há meses, uma ampla e profunda reforma
ministerial, feita com o Congresso e com a sociedade, já teria estabelecido
novo pacto majoritário. Os nomes das presidências do Senado e da Câmara são
conhecidos desde novembro, pelo menos. Mas nada foi apresentado até aqui. Em
janeiro, esse vazio de agenda gerou espaço para que uma flor do recesso
brotasse do esterco da desinformação: os vídeos de Nikolas Ferreira (PL-MG)
sobre o Pix enfeitiçaram o país, sangraram o governo e o presidente. “É sempre
bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar”.
Um balanço sincero conclui que o terceiro
mandato de Lula não tem senso de urgência, não articula relações com a
sociedade, com a nova economia. Não faz “Política com P de História”. Seus
agentes parecem, talvez, paralisados pela crença na infalibilidade do líder. O
temor reverencial ao presidente, que expressam, torna-o mais só, fleumático e
centralizador. Com menor disposição para operar e decidir.
O presidente não pediu nem quer conselhos em
artigos de jornal. Mas é preciso que saiba: o rei está nu. Falta-lhe a
cobertura de um núcleo capaz de governar de forma ágil e inovadora, com
autonomia para apontar e corrigir erros – os seus, inclusive. Um centro
decisório arejado, socialmente amplo e multipartidário; que expresse a frente
ampla que Lula está devendo desde antes da eleição. Não há paradoxo algum
quando é a falta do sal da política o que torna insossos números, em tese,
saborosos.
Carlos Melo, cientista político, é
professor senior fellow do Insper
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