O Estado de S. Paulo
Existe algo cultural que torna o estelionato
mais comum no Brasil do que em outros países?
O escândalo envolvendo descontos no salário
de 4 milhões de aposentados revelou apenas uma ponta do iceberg no Brasil. Por
meio dele, ficamos sabendo que os idosos no Brasil não são apenas roubados por
entidades fantasmas que os relacionam em suas listas, sem consentimento.
Outra modalidade de golpe se dá por meio do
crédito consignado. Sem que fosse consultada, uma mulher do Rio Grande do Sul
teve descontos em sua aposentadoria referentes a 45 empréstimos, um rombo de R$
170 mil.
O valor dos golpes dados pelas entidades
fantasmas ronda os R$ 6 bilhões. O crédito consignado em 2023 movimentou R$ 90
bilhões.
Para comprovar a tese de que os idosos, principalmente os que vivem no interior e não manejam bem as ferramentas digitais, são vítimas fáceis, surgiu um novo golpe: alistá-los para receber, hipoteticamente, o dinheiro roubado pelas entidades fantasmas.
O que se passa entre os aposentados é apenas
uma exacerbação do clima nacional.
Diariamente, recebemos chamadas de supostas
centrais do banco, com a voz de suas atendentes virtuais, comunicando uma
compra e pedindo que confirmemos ou não a autenticidade. São-nos dadas duas
opções: um para sim, dois para não. Como a compra não existe, a tendência é
apertar o dois para não e ter seus dados capturados pela quadrilha.
Há casos em que, além da atendente virtual,
aparecem vozes de falsos funcionários dos bancos alertando para trocar o
dinheiro da conta para um lugar mais seguro e esse novo lugar é apenas um
abismo de onde o dinheiro nunca mais voltará.
Os golpes desse gênero cruzam os ares com
grande intensidade. Há muitas quadrilhas trabalhando nesse campo. Mas eles não
significam tudo.
A indústria hoteleira revelou que os golpes
de falsas hospedagens chegaram a produzir um prejuízo às suas vítimas da ordem
de R$ 25 bilhões somente em São Paulo.
Não devem estar computados aí os prejuízos
causados pelas agências de viagem que vendem passagens baratas, mas não
entregam. Elas estão fechando, uma atrás da outra.
Na internet, há um ranking dos principais
golpes, uma variação extraordinária que vai da falsa central de atendimento ao
falso motoboy.
Isso sem contar as inúmeras empresas na
internet que se dispõem a vender, mas não entregam nunca. Eu mesmo já comprei
um tênis para presentear minha filha, mas ele jamais chegou.
Não é preciso muito argumento para convencer
que estamos cercados pelos estelionatários. Há quem considere que a lei deveria
ser mais pesada contra eles, pois raramente vão para a cadeia.
Minha indagação é diferente: existe algo
cultural que torna o estelionato mais comum no Brasil do que em outros países?
Não vou culpar de novo os degradados que
vieram nos colonizar nas caravanas portuguesas.
Minha pergunta é sobre a atmosfera brasileira
agora, na qual as próprias instituições são vistas como entidades que tiram
vantagens de suas prerrogativas e pouco devolvem. O Executivo é visto como
gastador, sobretudo em viagens internacionais com numerosas comitivas; o
Judiciário vive uma situação excepcional em que os salários acima do teto são
apenas uma parte do problema; e o Legislativo mobiliza R$ 50 bilhões em emendas
parlamentares, algumas delas ainda secretas.
Será que isso não influencia o comportamento
com a mensagem de que é importante garantir o melhor para si próprio,
independentemente das necessidades coletivas?
É claro que o comportamento das elites não
atenua o de milhares de estelionatários no País. Mas pode contribuir
indiretamente.
O Brasil, como outros países, sempre viveu o
problema desse tipo de golpe. Na era analógica, era muito comum uma modalidade
chamada conto do vigário, que aparecia com frequência nas páginas policiais.
Mas os golpes do passado quase sempre jogavam
com a ilusão da vítima de obter dinheiro fácil. Ela entregava pouco na
expectativa de ganhar muito.
As vítimas de hoje, sobretudo os aposentados,
são indefesas.
Grande parte dos golpes contra aposentados se
volta para o interior de Estados como Piauí e Maranhão, com baixo índice de
alfabetização digital.
Estamos preparados para esta guerrilha de
golpes? No INSS, ela aconteceu ao longo dos anos, sem que fosse debelada – ao
contrário, ela cresceu recentemente.
O índice de solução dos golpes aplicados, de
um modo geral, ainda é baixo. Eles se multiplicam porque representam também uma
boa parte de atividade no interior das cadeias, onde nunca foi possível,
efetivamente, controlar a entrada de celulares.
Os bancos, por sua vez, quase nunca restituem
o dinheiro perdido, embora muitas vezes os golpes sejam precedidos do uso de
vozes idênticas às que fazem comunicados oficiais. Tudo o que puderam oferecer
foram campanhas orientando seus clientes a não cair em golpes.
Diante disso, talvez fosse necessária uma
grande força-tarefa nacional destinada a reduzir drasticamente esta praga. Ela
precisa ser eficiente, bem equipada e também tomar cuidado para que não
falsifiquem suas coordenadas e se torne também o tema de um novo golpe.
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