quinta-feira, 15 de maio de 2025

O enigma Trump e as teses do fim do mundo - Nelson Niero

Valor Econômico

Mais que uma guerra de tarifas, há quem veja um colapso do modelo de comércio entre países que prevalece desde o fim da Segunda Guerra Mundial e que exportou a produção para países do então Terceiro Mundo

A guerra das tarifas, além do rebuliço espetacular no mercado financeiro, foi responsável por alguns efeitos colaterais curiosos, como a reabilitação do termo “livre-comércio”, que até há pouco tempo só podia ser usado em contextos pejorativos entre os bem-pensantes.

Nestas poucas semanas desde o “Dia da Libertação”, quando Donald Trump, qual um Moisés da avenida Pensilvânia, apresentou as tábuas dos novos mandamentos do comércio mundial, keynesianos radicais foram buscar argumentos com Milton Friedman e a Escola de Chicago tomou o lugar da sua congênere de Frankfurt nos debates de progressistas que anunciam o fim do mundo como conhecemos.

Em dois artigos, publicados no mesmo dia por este jornal, dois professores de Harvard - instituição que trava uma guerra particular com o governo por causa de subsídios - criticaram duramente Trump. O primeiro pediu ajuda a Adam Smith para fustigar o “mercantilismo” do presidente enquanto o segundo declarava que a democracia estava condenada nos EUA.

Mas entre todos os muitos profetas do apocalipse trumpiano nenhum ousou tanto quanto um líder sul-americano que, entre uma reunião e outra com autocratas amigos em Moscou, disse a seguinte pérola à revista “The New Yorker”, queridíssima da elite radical chique: “Sou de uma geração que aprendeu na década de 1980, por meio de Reagan e Margaret Thatcher, que a melhor coisa para o mundo era a globalização e o livre-comércio. Os produtos deveriam circular livremente pelo mundo. O dinheiro deveria circular livremente pelo mundo”. Não resta dúvida de que o planeta está mesmo de ponta-cabeça, como mostra fidedignamente o mapa do presidente do IBGE.

O fogo não veio só dos inimigos declarados. O investidor Bill Ackman, que apoiou ativamente Trump na campanha presidencial, foi um crítico contundente de primeira hora das medidas antiliberais. Dias depois, quando o governo americano anunciou uma pausa de 90 dias para países que não retaliaram, Ackman disse que era preciso fazer a mesma coisa com a China.

Foi exatamente o que aconteceu no último fim de semana, com o início das negociações entre os dois países em Genebra e anúncio na segunda-feira de um acordo para reduzir as tarifas por um período inicial de 90 dias. Os mercados globais comemoraram, os preços voltaram para onde estavam antes da hecatombe e os investidores já começam a olhar para aquele dia fatídico como um “ponto de entrada” perdido para quem não teve sangue frio e fugiu com a manada, o que fez o “índice do medo”, o VIX, da bolsa de Chicago passar dos 30% de alta. Já seguidores da máxima “compre aos som dos canhões e venda ao som dos violinos”, atribuída sem confirmação ao banqueiro Nathan Mayer Rothschild, fizeram fortuna. A ação da Nvidia, que seria uma das maiores vítimas do tarifaço, atingiram o pior preço em vários meses, US$ 94, dias depois do anúncio. Ontem, a fabricante de chips estava no patamar de US$ 134, novamente a segunda maior empresa dos Estados Unidos por valor de mercado depois de superar a Apple no dia anterior.

Goldman Sachs e J.P. Morgan, que previram alta de inflação e economia em marcha à ré na esteira do anúncio da tarifas, vieram a público ontem dizer que as chances de recessão diminuíram consideravelmente. Não que agora tudo faça sentido e que a vida tenha voltado ao seu ramerrão habitual. Não com Donald no comando.

Haveria método por trás dessa “loucura”, mesmo que ninguém tenha conseguido descobrir qual? Sem dúvida, as tarifas fazem muito mais sentido em comparação com essa conversa de golfo da América e de anexação da Groenlândia e do Canadá - que parecia ser só uma piada e acabou provocando uma reviravolta na eleição a favor do candidato de esquerda.

Mais que uma guerra de tarifas, há quem veja um colapso do modelo de comércio entre países que prevalece desde o fim da Segunda Guerra Mundial e que exportou a produção para países do então Terceiro Mundo que, hoje, são potências, especialmente a China. Trump quer suas indústrias e empregos de volta, mas todos sabem, inclusive ele, que isso não acontece de uma hora para outra.

Quem correu para ler o livro “A Arte da Negociação” (Citadel, 1987), escrito por Trump e Tony Schwartz, sabe que uma das suas estratégias é fazer um pedido que beira o absurdo para iniciar a negociação com uma margem de manobra alta. “Às vezes vale a pena ser um pouco descontrolado”, diz em um trecho em que ameaça processar um banco que iria executar a hipoteca da fazenda de uma viúva. Mas ele também diz que “às vezes - não frequentemente, mas às vezes - menos é mais”. No caso, o tema era a decoração de Natal do Trump Tower.

Não será fácil desvendar esse enigma, é certo, e diante da velocidade dos fatos que estamos presenciando é uma boa hora de escutar quem tem “skin in the game”, como o investidor Ray Dalio, autor do presciente “Princípios para a ordem mundial em transformação” (Intrínseca, 2022).

“Não cometa o erro de pensar que o que está acontecendo agora tem a ver principalmente com tarifas”, escreveu num texto no X. Para ele, estamos no limiar de grandes mudanças das ordens monetária, política e geopolítica, o que ocorre apenas uma vez na vida. E no que isso tudo vai dar? Ele também não sabe. “Essa é a grande questão.”

 

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