O Estado de S. Paulo
Corruptos são viciados nesse tipo de consumo. Nunca se ouviu dizer de um que investisse o butim para arrematar um livro raro ou para ouvir uma sinfonia em Viena
No rescaldo da fraude do INSS, as personagens
mais interessantes não são os abutres que desviaram R$ 6,3 bilhões da
Previdência, não é o ministro que caiu fazendo poses macambúzias, não é
tampouco o ministro que entrou, adornado por um sorriso lívido. Todos esses aí
são tipos inócuos; do respeitável público só merecem a indiferença.
Dentro da mais nova cloaca de corrupção, as únicas figuras com algum carisma não vestem paletó e gravata, não pigarreiam, não caminham sobre duas pernas e nem sequer respiram. Os verdadeiros astros do imbróglio, dignos da curiosidade popular, são os veículos automotivos apreendidos. Naquelas fuselagens constrangidas e lustrosas, ainda mora um resquício de dramaticidade. Sobre aqueles pneus ociosos, pulsa uma nesga de sentimento trágico.
Os “carros de luxo” são o saldo mais vistoso
das buscas policiais nos endereços dos acusados. Um ou outro vale milhões de
reais e, somados, já batem os R$ 34 milhões.
Vê-los assim, rendidos, dá na gente um
desânimo sem fim. Nas imagens da imprensa, os modelos reluzem como espelhos
ondulados, em planos aerodinamicamente sinuosos.
Nas latarias que ondulam em planos ora
côncavos, ora convexos, como na canção de Roberto Carlos, os contornos líquidos
avançam em polimento impecável. Mas o fausto suntuoso sobre quatro rodas não
encanta, só deprime: foi arrancado a golpes de velhacaria de idosos indefesos.
A descrição apressada no parágrafo anterior
vale mais para alguns dos detidos – sim, detidos, pois a polícia os carrega
para os pátios da lei. Não vale para todos eles. De fato, os exemplares da
Porsche parecem gotas de viscosidade mutante, como bolas de árvore de Natal
artificialmente esticadas. Também os contornos das Ferrari se liquefizeram,
perdendo um pouco das quinas. Mas alguns dos carrões retidos não seguem o mesmo
estilo.
As Lamborghini, por exemplo, guardam uma
conformação díspar, com um jeitão de cunha afiada ceifando o ar em seus
deslocamentos na Rodovia Ayrton Senna, rumo ao Vale do Paraíba. Bem sei que, ao
que consta, nenhuma Lamborghini foi conduzida ao xilindró nas diligências da
fraude do INSS, mas a marca italiana é assídua nessas ocorrências.
Faz uns três anos, uma dessas roubou a cena
(e não vai aqui nenhuma ironia no verbo “roubar”): virou assunto porque
acumulava uma dívida portentosa de IPVA e pertencia ao ex-presidente Fernando
Collor de Mello, atualmente às voltas com uma tornozeleira.
Há ainda as ocasiões em que os possantes
importados atropelam gente inocente e depois se deixam fotografar com um
arranhão no para-choques ou com um retrovisor a menos.
Em formatos angulosos ou arredondados, o
filme se repete sem descanso.
Voltando à frota dos ladrões do INSS, as
estrelas velozes foram clicadas pelos fotojornalistas em humilhantes poses
estacionárias. Não foram vistas em disparada.
Quando muito, apenas se arrastaram em marcha
lenta e fila comportada sob a escolta dos agentes de óculos escuros. Nessas
cenas, as máquinas parecem ter passado por um tipo estranho de emasculação: não
poderão mais rasgar a noite com seu zumbido inconveniente e estúpido.
Pausa para a literatura. Num conto de
Bernardo Ajzenberg, um ronco de escapamento entra no enredo infernizando a
madrugada, para irritação do protagonista insone. “Veio de novo o estrondo do
motor daquele carro tipo esportivo – Porsche, Ferrari, Lamborghini – cujo
motorista conduz com espalhafato dia sim dia não nessa mesma hora pelas
avenidas próximas.” O homem se corrói em paixões baixas. “Não é do carro que
tem inveja, é do barulho que ele produz rasgando o silêncio da cidade.” O nome
do conto diz tudo: Inveja.
Os ladrões do INSS não leem nada, não leem
nem intimação judicial, mas também se moem de inveja – não dos carros, mas das
celebridades que rimam convexo com sexo, como na canção de Roberto. Tomam
dinheiro das velhinhas para depois gastá-lo em todos aqueles cavalos
comprimidos sob o capô.
Corruptos são viciados nesse tipo de consumo.
Nunca se ouviu dizer de um que investisse o butim para arrematar um livro raro
ou para ouvir uma sinfonia em Viena.
Bem se sabe que há fãs de música clássica que
são mafiosos, mas não se conhece quem tungue aposentadorias para comprar
ingressos do Musikverein. Isso, não. Bandidos compram lanchas, colares de
brilhante, charutos, deputados, conhaque engarrafado em vasilhames de cristal,
ilhas que ficam pra lá do Rio de Janeiro e, claro, Porsches. Na desolação de
sua miséria d’alma, impera impiedoso o sol fake da mercadoria.
No mais, os criminosos custam a ser presos.
Seus conversíveis vão antes. É como se, a cada nova bandalheira, o Capitão
Renault do filme Casablanca ressuscitasse e, em vez de dizer “prendam os
suspeitos de sempre”, dissesse “prendam os automóveis de sempre”.
Pepe Mujica, o ex-presidente do Uruguai que
morreu anteontem, aos 89 anos, tinha um Fusca azul. Não cobiçava nada mais. Meu
pai também foi dono de um Fusca azul. Foi feliz naquele carrinho. Hoje, na
eternidade em que se encontra, é dono do mesmo Fusca azul. Nenhum espertalhão
poderá roubá-lo.
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