segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Ideologia, item de luxo?


Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Nancy Koehn, da Harvard Business School, falando sobre governos que se tornam acionistas de bancos, declara que "ideologia é um item de luxo em tempos de crise" - na linha, aliás, de muita gente mais, incluindo "The Economist", que, em matéria sob o título de "Capitalism at bay", diz na edição desta semana que o resgate global com dinheiro dos contribuintes "é pragmático, não ideológico".

Dada a identificação perversa entre o interesse público e o dos financistas privados diante da catástrofe iminente, é preciso conceder, como fiz aqui mesmo há algumas semanas, o caráter imperioso do socorro público. Daí não se segue, porém, que seja preciso confundir as coisas quanto a ideologia e pragmatismo.

A declaração de Koehn transforma "ideologia" numa espécie de adereço sem importância real: se se trata de idéias sem serventia em momentos de crise, como pensar em adesão efetiva a elas ou compromisso com elas? Já "The Economist" sugere a assimilação de "ideologia" ao apego firme a uma posição pró-Estado ou anti-Estado, e as contorções de que cerca, na matéria citada, seu reconhecimento da necessidade da intervenção estatal redundam em reafirmar os méritos do liberalismo como ideologia. É claro, isso aponta para a possibilidade do apego igualmente firme a uma posição contrária, que conte com a atuação do Estado, e temos aí, naturalmente, o cerne de muitas das mais importantes disputas políticas dos tempos modernos.

A experiência recente, especialmente com a derrocada do socialismo, a globalização e a nova dinâmica econômica, já vem impondo há tempos a um dos lados do enfrentamento envolvido o reconhecimento, de bom ou mau grado, de que sem mercado não há solução: se se preza o valor democrático da autonomia dos cidadãos, não cabe começar por negá-lo na decisiva esfera econômica. Mas não parece menos difícil o aprendizado, do outro lado, de que tampouco cabe abrir mão de um Estado democraticamente sensível ao interesse público, com suas muitas faces, e disposto à ação que não se limite, sob condições de chantagem "pragmática", a fazer abortar as catástrofes.

Os processos eleitorais que se desenvolvem no momento nos Estados Unidos e no Brasil permitem apreciar a relevância de aspectos diversos da questão da ideologia. A campanha presidencial nos Estados Unidos nos mostra, de mais de uma forma, as distorções e os traços negativos que podem marcar a ideologia como compromisso e engajamento - e é notável que isso ocorra no país visto até algum tempo atrás como a terra do pragmatismo e de partidos desprovidos de ideologia. Assim, temos pesquisas em que os Republicanos de McCain surgem apegados à religião e a posturas moralistas, aos temas da força militar e segurança e à disposição do país a enfrentar-se com outros e fazer inimigos, enquanto os apoiadores de Obama favorecem a diplomacia e os direitos civis, querem a separação entre política e religião e vêem a afirmação nacional relacionada à idéia de justiça.

Mas outro aspecto é talvez mais revelador. Se vimos McCain apoiar, como Obama, a ação governamental de resgate financeiro, vimo-lo também, no último debate, denunciar como "estatismo" os gastos sociais propostos por Obama. E essa postura sem dúvida se ajusta a algo que, como salientam A. Alesina e E. Glaeser, singulariza os Estados Unidos e permite há muito falar do "excepcionalismo" americano: sua desigualdade maior do que a dos países europeus e o fato de nunca se ter desenvolvido lá um "welfare state" de dimensões comparáveis às encontradas na Europa. No volume "Fighting Poverty in the U.S. and Europe", de 2004, os autores mostram as idéias associadas com isso: 60% dos estadunidenses acreditam que os pobres são preguiçosos, contra 26% dos europeus com a mesma opinião, enquanto 60% dos europeus vêem os pobres como vítimas de armadilhas sociais, contra apenas 29% dos americanos, que acreditam majoritariamente viver numa sociedade aberta e de grande mobilidade - o que estudos comparativos rigorosos mostram ser simplesmente falso há algum tempo, como o relatado em artigo de 2002 de P. Gottschalk e E. Spolaore ("On the Evaluation of Income Mobility"). Mas Alesina e Glaeser apontam também as causas dessas idéias na heterogeneidade étnica e racial (entre os próprios estados americanos, há forte correlação negativa entre a proporção de negros e a generosidade dos mecanismos de "welfare") e nas instituições políticas (a falha dos menos favorecidos em conquistar a representação proporcional, a atuação restritiva, tudo somado, da Suprema Corte etc.).

A idéia geral a destacar surge com clareza: se a ideologia como ideário a envolver engajamento rígido pode ser crucialmente importante de modo negativo (e conter assimetrias equívocas quanto a aspectos importantes da luta política), torna-se também crucial que haja a possibilidade do esclarecedor embate de idéias que a candidatura de Barack Obama, em particular, representa no caso dos Estados Unidos - e que faz dos componentes intelectuais da ideologia tudo menos o adereço irrelevante que Nancy Koehn assinala. Já no Brasil, temos tido grandes equívocos em torno da adesão ingênua a um modelo idealizado de "política ideológica", que se dispensa de atentar para as limitações das condições do confronto político-partidário no país e seu substrato de deficiências sociais. De qualquer modo, vemos agora, no segundo turno das eleições municipais, além da evidência renovada da inconsistência partidária que os jornais apontam insistentemente em vários casos, que não cabe senão lamentar a indigência intelectual e ideológica talvez melhor ilustrada pelo exemplo belo-horizontino da demagogia eficiente, e provavelmente vitoriosa, de Leonardo Quintão.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

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