segunda-feira, 8 de março de 2010

Fábio Wanderley Reis:: Conciliação, Tancredo e briga

DEU NO VALOR ECONÔMICO

No jogo em torno da composição da chapa oposicionista para a eleição presidencial deste ano, temos visto Aécio Neves a reivindicar a característica de "conciliador", com evocações de Tancredo Neves, a quem, como sempre, a característica foi insistentemente atribuída nas homenagens por seu centenário, que a inauguração do novo conjunto arquitetônico do governo mineiro transformou em episódio daquele jogo. Há no ar a sugestão de que temos tido menos políticos conciliadores, e menos conciliação, do que seria desejável ou necessário para o país. Examinemos um pouco a ideia.

Para começar, há um uso da expressão de conotações claramente negativas, em que "conciliação" aponta, especialmente no contexto brasileiro, para a acomodação dos interesses das elites cuja contrapartida seria a preservação da exclusão social (veja-se o volume de 1983 de Michel Debrun, "A ´conciliação´ e outras estratégias"). Mas há também, em perspectiva internacional, a contraposição entre categorias que descreveriam "estilos" de fazer política, ou "sistemas" políticos, distinguidos por traços mais intensamente "adversariais" ou mais propensos a composições e convergências. Um exemplo destacado é o contraste, elaborado em particular por Arend Lijphart, entre modelos majoritários e "consociacionais" (ou "consociativos").

Estes últimos se empenhariam em garantir a "autonomia segmentar" de grupos ou categorias capazes de condicionar com vigor a própria identidade das pessoas (religião, etnia) e em representar esses grupos como tal, em vez de diluí-los, e aos seus interesses, com o recurso à simples regra da maioria, eventualmente colocando duradouramente em minoria valores percebidos, pelas partes interessadas, como não podendo ser objeto de um mero exercício de contar cabeças no processo de tomada de decisões relevantes. E um desdobramento crucial é o de que também os fatores associados à estratificação socioeconômica (independentemente de circunstâncias, como as nossas, em que fatores como etnia e religião tenham menor presença política) podem chegar a assumir importância na definição da identidade pessoal e a projetar-se com força na esfera política sob a forma de pressões redistributivas - precisamente na medida em que a mobilização sociopsicológica resultante da transformação social venha a neutralizar os efeitos da conciliação elitista e oligárquica.

Considerado na ótica desses problemas, o tema geral da "conciliação" ou do papel de políticos "conciliadores" revela matizes significativos. Não se trata, nessa ótica, de "estilos", sem mais, de fazer política, que só serão aceitáveis como meras variações estilísticas depois que densos problemas "constitucionais" de plena incorporação sociopolítica tenham sido resolvidos. A trajetória dos partidos socialdemocráticos ilustra os matizes: vistos por alguns como traidores de seus objetivos revolucionários originais e como agentes de uma manipulação "conciliadora" produzida pela inserção no jogo político-eleitoral, uma questão crucial foi a de que como situar-se diante de tal denúncia dada a observação de que a socialdemocracia, transformada em sinônimo de moderação, de fato produziu redistribuição em larga escala nos países europeus. E mesmo quando, a propósito da recente ofensiva neoliberal que parecia irresistível, Perry Anderson pôde descrever a socialdemocracia como "a política das expectativas em permanente diminuição", as crises econômicas, conjugadas com a derrocada do socialismo "real", vieram logo mostrar outra vez que não há alternativas verdadeiras a ela.

No Brasil do momento, o tema da conciliação refere-se principalmente ao ocasional azedume do enfrentamento governo-oposição, com o protagonismo, em termos partidários, de PT e PSDB, acolitados por parceiros secundários que são às vezes os azedos por excelência.

Contudo, como José Serra apontava em ponderado artigo recente sobre a Nova República na "Veja" de 24 de fevereiro, de que se valeu de novo em discurso na sessão solene do Congresso dedicada a Tancredo em 3 de março, a história dos últimos 25 anos (como eu mesmo também assinalava em coluna recente) é uma história de relevantes avanços, marcados por clara convergência rumo à moderação socialdemocrática - e que acaba, além do mais, produzindo redistribuição e incorporação. Assim como a consideração de diferentes sistemas como meros "estilos" variados de fazer política depende de que seja possível apontar uma mescla anterior de enfrentamento social e aprendizado de convivência socioeconômica e institucional, assim também, no plano das características pessoais, o desejável talvez seja o equilíbrio ou a combinação adequada da disposição à briga com a disposição conciliadora. Equilíbrio do qual o próprio Tancredo, em suas complicadas relações com os mentores da ditadura que ele ajudou a superar, será talvez o melhor exemplo.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

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