O Globo
Em novo livro, professor da USP relembra
marcha autoritária e critica longa inércia dos democratas diante dos ataques do
capitão: "O pior negacionismo não era o dele"
Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial
da Saúde declarou o início da pandemia e instou todos os países a fazerem o
possível para conter o coronavírus e salvar vidas. Quatro dias depois, o
presidente do Brasil deu uma banana para as recomendações sanitárias e
confraternizou com apoiadores que urravam por “intervenção militar”.
Sem máscara e de camisa da seleção, Jair Bolsonaro apertou as mãos de seguidores aglomerados em frente ao Planalto. “O presidente em pessoa extrapolava seus limites funcionais, quebrava o decoro e instava o povo a atacar o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal”, escreve Eugênio Bucci em “Que Não Se Repita: A Quase Morte da Democracia Brasileira”.
Enquanto o resto do mundo tentava combater a
doença, o chefe do governo brasileiro convocava passeatas para enxovalhar os
outros poderes da República. “A intenção manifesta dos organizadores era
desacreditar o Estado e pavimentar o caminho para uma ditadura”, anota Bucci no
novo livro, redigido com base em artigos publicados entre 2018 e 2023 no jornal
O Estado de S. Paulo.
Professor da Escola de Comunicação e Artes da
USP, o autor mostra como o plano golpista era nítido desde a campanha que alçou
o capitão ao poder. “O candidato falava a favor da ditadura militar a todo
momento”, observa, logo no primeiro capítulo. “O cenário era insólito: pelas
vias asseguradas pelo regime democrático, um líder de extrema direita atentava
contra os fundamentos desse mesmo regime.”
No quinto mês do governo, o autor já notava
semelhanças entre a corte bolsonarista e a Itália de Mussolini. O presidente
queria “transformar a escola em extensão dos quartéis e reescrever a história
da ditadura nos livros escolares”, relembra. “O governo criava facilidade para
as armas, fazia apologia da violência e abria os caminhos para as milícias,
enquanto levantava obstáculos para os livros, a ciência e as universidades.”
Por muito tempo, o establishment fechou os
olhos para os riscos que o país corria. Os ataques às instituições eram
menosprezados como se fossem arroubos retóricos. A militarização do governo era
naturalizada como se não ameaçasse o poder civil. Alarmado, Bucci se indignava
com a inércia diante de Bolsonaro. “O pior negacionismo não era o dele, que
rejeitava a ciência, os fatos, o saber e o diálogo, mas o daqueles que se
negavam a ver que estávamos diante de um agente obcecado em preparar um golpe
de Estado”, critica.
Em abril de 2021, quando muitos ainda
repetiam que as instituições funcionavam normalmente, o professor escreveu que
o país vivia um “golpe em gerúndio”. “A democracia deste cemitério
congestionado chamado Brasil não está mais sob ameaça: já está em pleno
desmanche, só estão ficando de pé as fachadas. Por enquanto”, alertou.
Na parte final do livro, Bucci comenta as
investigações que mandaram Bolsonaro para o banco dos réus após o fiasco da
trama golpista. “Por pouco, o pior não se consumou. Escapamos por um triz”,
anota. Para ele, o fato de o capitão ter se cercado de outros personagens
“ineptos, limítrofes, desmiolados e incompetentes” ajudou a livrar o país de
uma nova quartelada. “Por um golpe de sorte, não fomos abatidos por um golpe de
Estado”, conclui.
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