domingo, 22 de junho de 2025

Golpe em gerúndio - Bernardo Mello Franco

O Globo

Em novo livro, professor da USP relembra marcha autoritária e critica longa inércia dos democratas diante dos ataques do capitão: "O pior negacionismo não era o dele"

Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde declarou o início da pandemia e instou todos os países a fazerem o possível para conter o coronavírus e salvar vidas. Quatro dias depois, o presidente do Brasil deu uma banana para as recomendações sanitárias e confraternizou com apoiadores que urravam por “intervenção militar”.

Sem máscara e de camisa da seleção, Jair Bolsonaro apertou as mãos de seguidores aglomerados em frente ao Planalto. “O presidente em pessoa extrapolava seus limites funcionais, quebrava o decoro e instava o povo a atacar o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal”, escreve Eugênio Bucci em “Que Não Se Repita: A Quase Morte da Democracia Brasileira”.

Enquanto o resto do mundo tentava combater a doença, o chefe do governo brasileiro convocava passeatas para enxovalhar os outros poderes da República. “A intenção manifesta dos organizadores era desacreditar o Estado e pavimentar o caminho para uma ditadura”, anota Bucci no novo livro, redigido com base em artigos publicados entre 2018 e 2023 no jornal O Estado de S. Paulo.

Professor da Escola de Comunicação e Artes da USP, o autor mostra como o plano golpista era nítido desde a campanha que alçou o capitão ao poder. “O candidato falava a favor da ditadura militar a todo momento”, observa, logo no primeiro capítulo. “O cenário era insólito: pelas vias asseguradas pelo regime democrático, um líder de extrema direita atentava contra os fundamentos desse mesmo regime.”

No quinto mês do governo, o autor já notava semelhanças entre a corte bolsonarista e a Itália de Mussolini. O presidente queria “transformar a escola em extensão dos quartéis e reescrever a história da ditadura nos livros escolares”, relembra. “O governo criava facilidade para as armas, fazia apologia da violência e abria os caminhos para as milícias, enquanto levantava obstáculos para os livros, a ciência e as universidades.”

Por muito tempo, o establishment fechou os olhos para os riscos que o país corria. Os ataques às instituições eram menosprezados como se fossem arroubos retóricos. A militarização do governo era naturalizada como se não ameaçasse o poder civil. Alarmado, Bucci se indignava com a inércia diante de Bolsonaro. “O pior negacionismo não era o dele, que rejeitava a ciência, os fatos, o saber e o diálogo, mas o daqueles que se negavam a ver que estávamos diante de um agente obcecado em preparar um golpe de Estado”, critica.

Em abril de 2021, quando muitos ainda repetiam que as instituições funcionavam normalmente, o professor escreveu que o país vivia um “golpe em gerúndio”. “A democracia deste cemitério congestionado chamado Brasil não está mais sob ameaça: já está em pleno desmanche, só estão ficando de pé as fachadas. Por enquanto”, alertou.

Na parte final do livro, Bucci comenta as investigações que mandaram Bolsonaro para o banco dos réus após o fiasco da trama golpista. “Por pouco, o pior não se consumou. Escapamos por um triz”, anota. Para ele, o fato de o capitão ter se cercado de outros personagens “ineptos, limítrofes, desmiolados e incompetentes” ajudou a livrar o país de uma nova quartelada. “Por um golpe de sorte, não fomos abatidos por um golpe de Estado”, conclui.


Nenhum comentário: