sexta-feira, 22 de julho de 2011

O general vermelho::Ivan Alves Filho


O historiador Nelson Werneck Sodré e meu pai, jornalista Ivan Alves, foram grandes amigos. Mais do que isso, até: foram companheiros de lutas partidárias, uma vez que ambos pertenceram os quadros do Partido Comunista Brasileiro. Vivenciaram juntos os embates pela nacionalização do petróleo e ajudaram a organizar a resistência democrática ao Golpe de 64. Apesar da grande amizade existente entre eles, eu mesmo só travei conhecimento pessoal com Nelson Werneck em Paris, em meados da década de 70. Soube por sua filha, Olga, da estadia dele na cidade e fui ao seu encontro.
Fui muito bem recebido e logo começamos a conversar. Aproveitei para agradecer a ele a remessa de algumas obras sobre o Quilombo dos Palmares (sobretudo um livro editado pela Biblioteca do Exército, O Reino negro de Palmares). Eu estava pesquisando o célebre quilombo alagoano na França e em Portugal e o Nelson, generosamente, resolvera me apoiar nisso. Seu ato comoveu o historiador-aprendiz que eu era. Nelson Werneck Sodré entendera perfeitamente as dificuldades com que eu me deparava para encontrar certos livros no exterior - e sabia, por meu pai, que eu havia sido preso no Brasil e não poderia retornar tão cedo ao Brasil.
Muito tempo depois desse episódio, mais precisamente em 1988, quando lancei o livro Memorial dos Palmares, desloquei-me até sua casa para lhe presentear com um exemplar da obra. Não poderia mesmo deixar de fazê-lo.
Democrata exemplar, Nelson sabia conviver com o contraditório e as diferenças, reconhecendo a pluralidade presente nas sociedade humanas. Eu me lembro que me aconselhou a ler, por exemplo,O índio brasileiro e a Revolução Francesa, de Afonso Arinos de Melo Franco. E mais de uma vez confessou para mim sua admiração pela obra monumental de Hélio Silva, um historiador de orientação católica. Nelson pertenceu à primeira geração que se debruçou conceitualmente sobre os rumos da nossa História, após o extraordinário trabalho de garimpagem realizado por pesquisadores como Varnhagen e Taunay nos arquivos brasileiros e estrangeiros, algumas décadas antes. Ou seja, ele foi um dos promotores da primeira grande síntese da História brasileira, entre os anos 30 e 60, juntamente com Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de Holanda. E isso não é pouco.
Humanista, professor de lógica, militar nacionalista, Nelson Werneck Sodré encarava o marxismo como um humanismo também, advindo daí sua identificação com a contribuição de teóricos como György Lukács e Antonio Gramsci. A base da sua disciplina intelectual se deu por intermédio da imprensa, já que Nelson Werneck colaborou com alguns dos maiores jornais brasileiros durante seis décadas, ininterruptamente. Posso escrever isso no Jornal da ABI - dirigido pelo meu querido amigo Maurício Azêdo - sem medo de errar: o historiador Nelson Werneck Sodré não existiria sem a disciplina que adquiriu em leituras voltadas para a elaboração de textos críticos posteriormente publicados na nossa imprensa. Ele mesmo reconhecia isso em algumas conversas que manteve comigo.
Aprendi muito com Nelson Werneck Sodré, ao longo de mais de 20 anos de convivência com ele. Para minha honra e alegria, chegamos a lançar uma obra juntos, Tudo é política, em mais uma prova da imensa generosidade dele. Com Nelson, eu sempre me senti inteiramente livre para emitir opiniões acerca do processo histórico brasileiro. Eu me recordo que debatia com ele questões um tanto quanto complicadas, que tinham que ver com a natureza do modo de produção em vigor no Brasil Colônia, e ele me escutava com infinita paciência. E, por vezes, até concordava comigo...
O trecho reproduzido abaixo traduz bem meu sentimento em relação a esse posicionamento de Nelson Werneck Sodré:
"Eu me lembro que tive algumas conversas com o Nelson sobre esse problema do uso dos conceitos e das categorias históricas. Elas muito me fortaleceram a prosseguir em minhas próprias inquietações. Explico. No cerne do problema, estava a noção marxista de modo de produção e a sua aplicação à realidade brasileira, mais exatamente ao período colonial. Havia o conceito criado por Karl Marx, mas havia, igualmente, a vida concreta. Era preciso estabelecer um vaivém entre o conceito e o real. Eu concordava com ele quando definia o período colonial à luz das estruturas escravistas. Como ele, também, eu pensava que não havia modo de produção era historicamente novo. “Onde estão as suas leis próprias”? , interrogava-se Nelson. Ou seja, não bastava adjetivar o suposto modo de produção, acrescentar a ele o qualificativo colonial para que se tornasse um modo de produção historicamente novo. Essas conversas nós as mantínhamos aí por volta de 1986, 1987. Eu disse em determinada ocasião ao Nelson que, a meu juízo, o conceito de modo de produção colonial revelava uma contradição embutida nos seus próprios termos. Pois modo de produção, no sentido concreto da expressão, implicava, forçosamente – esta era minha alegação -, que uma determinada realidade estivesse em condições de se auto-reproduzir, de forjar as suas próprias bases materiais, adequando-as a relações de produção também determinadas, que lhes correspondessem. Ocorre que o próprio do estatuto de colônia era a sua dependência diante do exterior, da Metrópole. Uma colônia vive para satisfazer demandas externas –e o Brasil não seria muito diferente disso. Vale dizer, não existe modo de produção dependente – ao contrário, a independência é uma condição do próprio modo de produção. Assim, o que era específico do escravismo brasileiro – o seu traço colonial, forjado pela submissão formal da nova área sul-americana ao capital em expansão na Europa –, ao invés de apontar para a formação de um modo de produção historicamente novo, invalidava, muito pelo contrário, a própria aplicação do conceito aos primórdios da nossa História. Defendi mais tarde no Memorial dos Palmares – e o Nelson não estava longe de concordar comigo – que no Brasil colonial vigorava uma forma social escravista de produção (afinal, o caráter da existência social da força de trabalho repousava na atividade compulsória). E que essa forma empalmava relações de erguidas sobre uma base material que dependia de uma outra realidade para se reproduzir (força de trabalho africana trazida pelo tráfico de escravos; existência de capitais, mercados e técnicas de trabalho inteiramente dependente da Europa etc. “Sem Angola não há Brasil”, já vaticinava Padre Antônio Vieira ). Posto nesses termos, o conceito de modo de produção não nos servia."
Escrevi isso há dez anos, creio eu. E ao reler essa passagem, não posso deixar de me emocionar. Com ele e outros velhos lutadores do Partido, aprendi a importância de pesquisar a realidade brasileira, para efetivamente transformá-la. Mais: aprendi que o sonho de um Brasil melhor para todos foi o grande motor de sua obra.
Meu último contato pessoal com Nelson Werneck Sodré ocorreu por ocasião do lançamento de Tudo é Política, no Paço Imperial, em 1998. Palco memorável das lutas pela Independência brasileira, impossível haver local mais adequado para se propagar a obra de Nelson Werneck Sodré. No dia seguinte, eu embarcava para a França e ele ainda me pediu para que transmitisse seu abraço ao grande historiador marxista Pierre Vilar. Apenas três meses depois, Nelson faleceria, em Itu, no interior de São Paulo.
Muito obrigado por tudo, Nelson. Sinto sua falta ainda hoje. E sei que interpreto o sentimento de centenas de amigos e admiradores de sua obra - absolutamente inseparável de sua extraordinária trajetória.
Ivan Alves Filho, jornalista e historiador.
FONTE: JORNAL DA ABI

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