Muitas pessoas afirmam que a corrupção chegou a níveis intoleráveis. E algumas, como Juan Arias, editor do El País, perguntam por que os brasileiros não se indignam. Em vez de buscar as causas sociológicas e econômicas, tão debatidas nos artigos sobre o tema, procuro utilizar também a memória.
Os governos Juscelino Kubitschek e João Goulart eram acusados de corrupção. É possível até dizer que os oficiais da Aeronáutica que promoveram a Revolta de Aragarças achavam a corrupção intolerável e não entendiam por que os brasileiros não se indignavam. No período Goulart havia uma forte ligação entre sindicatos e governos. Movimentos independentes no setor só surgiram no fim da década de 1960, com as greves de Osasco e Contagem. Na época anterior à ditadura, como agora, as denúncias de corrupção parecem ser apenas um contraponto oposicionista e figuram como um episódio lateral ao impulso desenvolvimentista de JK ou ao projeto de reformas de base de Goulart.
O pensamento da esquerda no poder é semelhante. Para ela, a floresta é o desenvolvimento com distribuição de renda. A corrupção é apenas uma árvore torta que insistimos em denunciar. Nesse quadro, a História do Brasil contemporâneo seria circular, com as realizações se desdobrando e algumas forças, à margem, gritando contra a corrupção.
Muita coisa mudou. O projeto de desenvolvimento recheado de corrupção não é sustentável. Novos e poderosos instrumentos estão à disposição de brasileiros muito mais bem informados que no passado. Nem sempre é preciso ir às ruas: 50 pessoas em Nova Friburgo conseguiram se organizar para pressionar a Câmara por uma CPI independente. O governo tinha maioria, mas elas venceram. Minúscula exceção, numa cidade atingida pela tragédia.
Mas a verdade é que em outros campos há também resistência. É o caso da resistência contra o mais importante ator econômico do momento: a associação do governo com alguns empresários, fundos de pensão e o BNDES. Esse grande ator é percebido de forma fragmentária. Ora se esforçando para tornar viável a usina de Belo Monte, ora no varejo tentando fundir Pão de Açúcar e Carrefour, ora sendo rejeitado no seu progressismo ingênuo, como no projeto do trem-bala. Sua ação articulada nem sempre é percebida como a de um novo ator. Exceto pelos vizinhos latino-americanos, que o consideram - a julgar pelo seminário internacional realizado no iFHC - um elemento singular do capitalismo brasileiro. Apoiadas no BNDES, as empresas brasileiras tornam-se mais competitivas no exterior. Mas trazem a desconfiança como um efeito colateral.
Cheguei, num certo momento, a comparar Lula-Dilma com Putin-Medvedev. E o capitalismo dirigido pelo Estado como fator que aproximava as experiências de Brasil e Rússia. Mas o desenrolar da crise de 2008 foi diferente para os dois. A Rússia sofreu mais que o Brasil e a interpretou como sinal para modernizar algumas áreas, privatizando-as. O Brasil, como uma oportunidade para ampliar o papel do Estado.
Pode-se compreender a demanda de indignação. Mas o sistema político está dominado, há um ator econômico poderoso e o governo emergiu vitorioso das eleições. Não há desemprego de 40% entre os jovens, como na Espanha. Ainda assim, houve indignação em Teresópolis, revelada em inúmeras manifestações. O movimento esbarrou no próprio processo político, pois conseguiu uma CPI e ela foi controlada pelo governo. O que as pessoas decidiram? Continuar manifestando indignação ou voltar à carga no momento eleitoral, quando o sistema fica mais vulnerável? Optaram pela última alternativa. Na Espanha foi a proximidade das eleições que permitiu o avanço dos indignados, mesmo sem a pretensão de disputar cargos.
Parte dos brasileiros acha que a corrupção é um preço que se paga ao desenvolvimento. Um setor da esquerda não somente acha isso, como confere uma qualidade especial ao desvio de dinheiro para causas políticas: os fins justificando os meios. Não se pode esquecer que 45 milhões votaram na oposição depois de oito anos do mesmo governo. Não eram da UNE nem da CUT.
A corrupção no Ministério dos Transportes é bastante antiga. Às vezes ele muda de mãos, passa de um partido a outro. Para os que conhecem o processo político brasileiro, a notícia não foi surpresa. As denúncias de corrupção sucedem-se diariamente e não se resolvem dentro dos canais parlamentares. Se os eleitores se indignarem, ostensivamente, podem se transformar numa indignação ambulante. As próprias pessoas que pedem hoje que se indignem vão achá-las monótonas e repetitivas. Para que os que têm o potencial de se indignar, coloca-se a questão da oportunidade exata, do preciso emprego da energia. Navega-se num sistema político cada vez mais distante, tripulado por um gigantesco ator econômico e um crescimento com viés inclusivo. Quando o adversário é ao mesmo tempo indiferente, opaco e poderoso, a indignação social tem hora.
É um problema deixar de se indignar com uma corrupção que mata, como na saúde e nos transportes, e aniquila sonhos, como na educação. Mas também é um problema indignar-se e voltar para casa de mãos vazias.
A indignação na Espanha ocorreu num momento em que poderia crescer. Ainda assim, como não se voltou para a ocupação de espaço institucional na política, seus resultados estão em aberto. O caso de Teresópolis mostrou que sem uma contrapartida institucional as melhores aspirações se afogam no pântano do próprio sistema político. O que torna a questão mais complicada do que pura e simplesmente se indignar às vésperas das eleições. É necessário vencê-las ou, no mínimo, eleger uma oposição de verdade.
A pergunta de Juan Arias é legítima. Mas seria ilusório pensar numa resposta simples, como se houvesse no enigma uma espécie de bala de prata, uma descoberta que pusesse a indignação em movimento. Em processos complicados, uma das respostas mais sábias é a do comercial de televisão: Keep walking.
Jornalista
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
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