sexta-feira, 22 de julho de 2011

O "estilo D" :: Cláudio Gonçalves Couto


Nos idos de 2003, o falecido ex-presidente argentino, Néstor Kirchner, iniciou seu governo com um estilo de ação política que marcaria sua gestão, assim como a de sua sucessora e esposa, Cristina. Tal modus operandi, logo apelidado de "estilo K", caracterizava-se pelo conflito constante e pela grandiloquência dos gestos. Para o analista político Jorge Giacobbe, era uma forma do presidente patagônico livrar-se de um conjunto de pesados fardos com que iniciou seu governo: o fato de ser um novato na política nacional, eleito com apenas 24% dos votos; a percepção de que era um títere do ex-presidente interino Eduardo Duhalde, um então poderoso cacique de uma das facções do justicialismo; a lembrança da pusilânime presidência de Fernando de la Rúa.

Logo ficou claro que Kirchner se autonomizaria de seu mentor (com o qual acabou rompendo), construiria uma nova coalizão de apoios (mediante uma estratégia denominada "transversalidade") e auferiria uma grande popularidade em decorrência dos ganhos simbólicos do estilo K (como afrontar os militares envolvidos na guerra suja) e de ganhos materiais bastante palpáveis (o grande crescimento da economia argentina).

Mas o estilo K tinha também seus custos, pois acirrava os conflitos no interior do sistema político, alienando potenciais aliados e exacerbando o oposicionismo de alguns setores. Não por acaso o casal Kirchner se ressentiu da severa queda de popularidade do governo Cristina, refletida eloquentemente nas eleições legislativas de 2009, quando uma sonora derrota fez com que alguns vaticinassem o fim do estilo K e a derrota nas eleições presidenciais de 2011. Todavia, ao estilo de um tango a morte de Néstor deflagrou uma melodramática virada nos humores nacionais, catapultando a popularidade da presidenta e, consequentemente, sua candidatura à reeleição, agora francamente favorita. O estilo K retorna reformulado, em roupagens enlutadas e amenizadas.

Algo que esse capítulo da história argentina ensina é que estilos conflitivos de ação política podem render popularidade, mas apresentam riscos e custos elevados, requerendo a construção de novas coalizões de apoio e beneficiando-se dos bafejos da fortuna, quando esses porventura ocorrerem (afinal, malgrado os custos pessoais e afetivos, a morte de Néstor favoreceu a Cristina politicamente). A efetividade de um tal estilo é maior em contextos políticos mais frágeis institucional e economicamente, nos quais a intervenção de uma liderança agressiva (como Menem ou Kirchner) parece restabelecer a ordem e, portanto, encontra aceitação. O difícil é manter tal modus operandi por um longo período e, principalmente, após o atingimento de uma certa estabilidade, quando aparecem os sinais de fastio nos humores populares.

No contexto nacional brasileiro, estilos agressivos de fazer política ocorreram com maior sucesso, vez ou outra, no plano regional, sempre vinculados a lideranças de tipo carismático - como Leonel Brizola, Antônio Carlos Magalhães e Roberto Requião. Mas tal agressividade sempre tinha como foco a oposição (fosse ela social ou política), não segmentos da base aliada. O estilo tratorista, quando funcionou direcionado para correligionários, geralmente se deu para o interior de uma mesma agremiação, nas lutas entre facções - como nos casos de José Serra ou José Dirceu, dentro de seus partidos. Ao se direcionar para fora, inclusive para aliados numa coalizão de governo, tende a gerar reações mais iradas e pouco controláveis - como pôde experimentar o mesmo José Dirceu ao abandonar ao léu seu então aliado de governo, Roberto Jefferson. Já no caso de um presidente, o estilo marcial de Fernando Collor o levou ao isolamento e à queda.

Embora ainda seja cedo para afirmar categoricamente, a atual investida da presidenta Dilma Rousseff contra os descalabros do "republicano" Ministério dos Transportes parece acrescentar um novo modus operandi à coleção de maneiras agressivas de fazer política: o "estilo D". Este se caracterizaria pela imposição de severas restrições de ordem técnica a aliados políticos com relevância institucional e interessados em sorver recursos públicos em benefício privado; à partidocracia corrupta se contraporia uma tecnocracia, habitualmente, também partidária.

Assim, onde a presidenta consegue identificar (seja por seus próprios meios, seja pelas denúncias da imprensa) desarranjos administrativos, legais e morais, promove a degola dos direta ou diretamente envolvidos, substituindo-lhes por técnicos de sua confiança, preferencialmente aqueles que tenham algum tipo de respaldo partidário. O problema para a gestão da coalizão é que tal amparo partidário tem sido, na esmagadora maioria das vezes, unicamente do PT, o que exacerba ressentimentos e o estreitamento dos apoios que a degola por si só já promoveria.

Há um agravante. Dilma vem contrariando o ensinamento maquiavélico (já mencionado por mim neste espaço) de que "as ofensas devem ser feitas todas de uma só vez, a fim de que, pouco degustadas, ofendam menos, ao passo que os benefícios devem ser feitos aos poucos, para que sejam melhor apreciados". As demissões a conta-gotas no Ministério dos Transportes expõem o PR a uma longa e dolorosa humilhação pública, que tem levado alguns de seus membros a brandir ameaças de abandono da coalizão. Claro que para levar a sério tais ameaças seria preciso descobrir o que pode fazer uma agremiação como o PR fora do governo, já que não dispõe de qualquer outra substância que não seja a troca do apoio parlamentar por benesses. Embora também se possa perguntar que sentido tem para um partido como esses seguir num governo em que não puder se locupletar.

De qualquer forma, o "estilo D" apenas poderia ser implementado mesmo no início da gestão, quando o mero abandono do barco não é a melhor opção para partidos de adesão. O que ainda não é possível afirmar com certeza é o quanto esse modo de proceder será sustentável para um governo que, mais cedo o mais tarde, terá votações difíceis no Congresso.

Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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