• Conferências abordam dificuldades de se recuperar a esperança em um mundo dominado pelo individualismo
Por Adauto Novaes – O Globo / Prosa
RIO — No ensaio para o ciclo de conferências “O novo espírito utópico”, o filósofo Francis Wolff começa com uma afirmação: nós precisamos de utopias, elas são para a comunidade aquilo que os sonhos são para os indivíduos. “Cada comunidade, cada época, cada geração precisa de utopias”, escreve ele. Recorremos às utopias quando a realidade torna-se insuportável. Estamos vivendo no melhor dos mundos a ponto de abolirmos as utopias de nossas vidas? Eis o real: nunca vivemos tanto a repressão em nós mesmos e em torno de nós, mas ainda assim somos incapazes de imaginar utopias. O silêncio encobre nosso desejo de emancipação e isso é uma grande novidade. Muitas são as causas deste silêncio, mas uma delas predomina: vivemos uma mutação em todos os domínios da atividade humana, verdadeira revolução produzida pela tecnocientífica, pela biotecnológica e pelo digital. A atual mutação resulta, pois, não das grandes promessas utópicas dos ideais humanistas e isso explica, em parte, porque ela se dá no vazio do pensamento e no vazio das utopias; ora, “a ciência não pensa” (diz Heidegger) e nem deseja a utopia. Falo aqui da ciência-poder e não da ciência-saber.
No mundo dominado pela racionalidade técnica, pensar torna-se, pois, a grande utopia quando se sabe que o espírito (ou inteligência) está ameaçado de se transformar em coisa supérflua.
Outra razão do silêncio é o desaparecimento eventual do elemento utópico no espaço político. A triste realidade da política — escreve Wolff — pôs fim às esperanças do político: a vida política real trabalha contra o sentimento de pertencimento a uma coletividade: A “política” perdeu os ideais utópicos e transformou-se em simples estratégias de conquista e exercício de poder. Vale citar Robert Musil: a política em nossos dias é o contrário absoluto do idealismo, quase sua perversão, e “temos nela todas as desvantagens de uma democracia de fatos”. “O homem que especula por baixo sobre seu semelhante e o político que se diz realista só têm por reais as baixezas humanas, única coisa que ele considera confiável”. Aqui, a ordem instituída e a desordem social andam juntas, e este laço precisa ser desfeito pela utopia para criar no imaginário e no pensamento um mundo da ordem social e política absolutamente diferente. Se utopia é sonho, de que os políticos têm medo, então? Eles temem o “despertar no sonho e não o despertar do sonho”, como escreveu Alain.
Mas, afinal, de que utopia os conferencistas do ciclo “Mutações — O novo espírito utópico” vão falar? Durante meio milênio, esta bela palavra, utopia (o célebre livro homônimo de Thomas Morus foi publicado em 1561), que quer dizer não lugar mas que também se pode traduzir por eutopia — lugar da felicidade —, fez um longo percurso cheio de enigmas. Promessa, esperança, simulação antecipadora, horizonte de nossos desejos, a utopia tem um destino comum: a “severa e lúcida crítica da realidade”. O fundamento da utopia é, pois, a crítica do presente. Mas vemos hoje a construção de certo silêncio não só sobre o desejo utópico como também em torno do seu pensamento. É como nos adverte o filósofo Miguel Abensour: um dos lugares comuns da nova opinião consiste em dizer que quem pensa a democracia deve fazer o luto da utopia; inversamente, quem insiste em pensar a utopia afasta-se da democracia: “Esta hipotética contradição entre o pensamento do político e o pensamento da utopia faz pouco caso de toda uma tradição da filosofia política moderna”, escreve Abensour. O ódio à utopia alimenta-se do ódio à emancipação. O pensamento conservador vai além e tenta justificar esse ódio de maneira sinuosa, desqualificando a utopia com mais um lugar comum: “a política é ação; a utopia, ilusão”. Pensando assim, utopia não pode, portanto, pertencer ao mundo do pensamento e muito menos ao mundo da política.
Mas o espírito utópico contemporâneo enfrenta um desafio maior: se é próprio da utopia pensar o social em toda a sua amplitude, criar o espírito de comunidade, como imaginá-la em um mundo no qual predomina o individualismo exacerbado, mundo descrito por Musil como o “egoísmo organizado”, ou mundo do “espírito de butique universalmente expandido”, como escreveu Engels sobre a utopia de Fourier no “Anti-Dühring”? Como pensar, enfim, a utopia quando vemos o predomínio de nova forma de determinismo expresso no controle e no autocontrole através dos novos meios eletrônicos que impedem o individuo de desenvolver sua singularidade e criar vínculos reais com o outro?
Fiquemos, enfim, com uma das melhores definições sobre a crise das utopias e a barbárie atual, escrita pelo poeta e ensaísta Paul Valéry: “a barbárie é a era do fato e é necessário que a era da ordem seja o império das ficções uma vez que não existe potência capaz de fundar a ordem apenas através da repressão dos corpos pelos corpos... A ordem exige, pois, a ação de presença de coisas ausentes. Tal sistema cria entre os homens vínculos e obstáculos imaginários cujos efeitos são muito reais. Eles são a essência da sociedade”.
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Adauto Novaes é criador e curador do ciclo Mutações, que em 2015 tem como tema a utopia. As conferências acontecerão entre os dias 11 de agosto e 7 de outubro no Rio de Janeiro e em São Paulo, Belo Horizonte e Brasília. Inscrições e informações: www.mutacoes.com.br
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