• Publicado pela Biblioteca Nacional, livro mostra visão ampla mas nem sempre acurada do historiador sobre os dois escritores
Por Marília Rothier Cardoso - O Globo / Prosa
RIO - Os arquivos literários constituem um dos dispositivos mais eficazes tanto para o conhecimento dos modos peculiares de construção da escrita ficcional, quanto para a identificação dos critérios e tendências da crítica. Como informa a apresentação do livro “O pós-modernismo”, feita por Pedro Lapera, foi o acaso de uma consulta sua ao inventário do acervo documental de Nelson Werneck Sodré (1911-1999) o responsável pela recuperação deste estudo sobre o chamado “romance de trinta”, editado pela Biblioteca Nacional. Cabe esclarecer que o volume em questão deve ter sido escrito entre o final da década de 80 e o início da de 90.
No entanto — como o próprio autor deixa registrado —, apoia-se em trabalhos dos anos 30 e 40 que refunde, preservando o mesmo tipo de enfoque. Quando resgata, décadas depois, motivos literários de seu interesse, o crítico não leva em conta as novas perspectivas analítico-investigativas; ao contrário, reitera os julgamentos propostos nos seus tempos de militância jornalística. Participante ativo da mesma vida literária em que Lins do Rego e Graciliano (cada um à sua maneira) se destacaram, Werneck Sodré como que retorna aos debates do passado e reitera suas posições, citando contemporâneos e empregando o vocabulário crítico-historiográfico vigente àquela altura.
A primeira coisa que chama a atenção do leitor de hoje é a presença do termo “pós-modernismo” no título. Não se trata, evidentemente, do emprego relacionado ao panorama artístico internacional, que, considerando o ocaso das vanguardas e a crise das utopias progressistas, põe os valores da modernidade em discussão. No livro do autor da “História da literatura brasileira” (1938), essa referência temporal nem é definida, muito menos problematizada. O que importava ao autor, deduz-se, era situar seus escritores-objeto como afastados e desinteressados das vertentes artísticas desencadeadas pela Semana de 1922.
Autor de obras panorâmicas como “Orientações do pensamento brasileiro”, onde inclui os ficcionistas, “Ideologia do colonialismo” e “História da imprensa no Brasil”, Werneck Sodré, quando trata de literatura, não se comporta, em termos estritos, como um crítico. Suas observações se espraiam pelo ambiente histórico das obras, numa narrativa agradável e fluente. Neste estudo duplo, traça paralelos entre as trajetórias literárias de José Lins do Rego e Graciliano Ramos e os acontecimentos públicos de suas vidas, mais ou menos intensamente relacionados com episódios sociopolíticos marcantes para os rumos do país. Aproxima-se, assim, da tendência que, hoje, procura recuperar padrões da crítica biográfica, libertando-os tanto dos nexos de causalidade quanto das avaliações tendenciosas, comuns no século XIX.
No entanto, ao contrário dos seguidores atuais dessa tendência, pouco se serve do contraponto entre experiência vivida e criação artística para caracterizar os traços estilísticos que definiram, para a posteridade, o perfil dos romancistas considerados. O interesse de suas mais de 200 páginas concentra-se numa descrição animada da agitação política e cultural dos anos 30 e 40, onde se evidenciam as posições tomadas pelos escritores e diagnostica-se, na safra rica do romance nordestino, o impulso decisivo para formar um público leitor no Brasil.
Outro aspecto que chama a atenção na leitura é o uso da primeira pessoa, no comentário da matéria literária, não apenas testemunhando acontecimentos que presenciou como também demonstrando suas afinidades pessoais e preferências estético-políticas. Sem fingir completa imparcialidade, registra seus contatos sociais afáveis com Lins do Rego, mas reafirma sua simpatia e admiração por Graciliano e evoca, com frequência, seus laços de amizade.
Pouco afeito à análise textual, apenas observa a exuberância da narrativa de “Menino de engenho”, constante em todos os romances que se seguiram, e apressa-se em aproximá-la do temperamento do escritor. Tendo percebido, desde logo, a dívida — aliás, assumida — deste para com os contadores de histórias do sertão, é preciso no gesto de incluir sua obra na linhagem épica dos narradores da tradição oral. Mas sua tendência a generalizações parece impedi-lo de captar as peculiaridades sonoras e semânticas da escrita de Lins do Rego. Escapa-lhe o trabalho de reelaboração artística dos falares locais, por isso inclui todos os livros do autor na ampla safra nordestina que classifica como apenas documental.
Contraponto às tarefas do presente
Seguro na avaliação dos livros maduros de Graciliano Ramos como equivalentes ou superiores ao topo do cânone brasileiro, distancia-o, reiteradamente, da tendência documentarista de seus pares nordestinos. Ainda assim, não se interessa em atentar para a economia tensa da prosa do autor de “Vidas secas”. Apenas seleciona e cita amostras do que nomeia o “sarcasmo” com que este expõe seu “sentimento de revolta”. No caso de Graciliano, empenha-se, com dedicação a comentar, cronológica e paralelamente, a construção das obras e a movimentada trajetória de vida. Mesmo pondo em destaque sua competência literária em fixar ambientes sociais, denunciando-lhes as práticas violentas, escapa ao comentarista, na arte do escritor, a capacidade de transformar dor e agressividade em precisão de estilo.
Ao publicar o documento conservado em suas estantes, a Biblioteca Nacional tomou uma iniciativa acertada, pois, mais do que acrescentar outra ordem de observações à fortuna crítica dos dois romancistas, “O pós-modernismo” põe o leitor atual em contato com as maneiras como, antes da sistematização teórica exercida pela prática universitária, o conhecedor autodidata usava seu amplo horizonte de informações para tecer comentários avaliativos sobre a literatura. A curiosidade bibliográfica ganha, então, a função de evocar as práticas do passado em sua vivacidade, para fazer contraponto às expectativas e tarefas do presente.
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Marília Rothier Cardoso é professora do Departamento de Letras da PUC-Rio
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