Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Estamos vendo mudanças na concepção de economia e nas leis que definem o trabalho desencarnado: Máquinas que funcionam sozinhas para produzir o pão que não terá quem o coma
Karl Marx, que atormenta os poderosos que não o leram ou os que, simplesmente a culpa social os faz odiá-lo, foi poeta. Um vitoriano, de culta família israelita, convertida ao protestantismo, batizado na Igreja Luterana. Em face dos poemas de qualidade aquém do poético, seu pai sugeriu-lhe que desistisse dos versos.
Tornou-se, porém, um dos fundadores da ciência social, a da corrente poética da utopia. Desenvolveu um método científico. Descobriu e expôs que o movimento da sociedade contemporânea se caracteriza pela contradição de se tornar cada vez mais rica e mais pobre. É crescentemente calculista e antipoética e, ao mesmo tempo, cada vez mais carente de poesia.
Descobriu e explicou que o afã do ganho sem limite tem uma fragilidade: a mercantilização da vida não consegue subjugar a poesia na lógica perversa, irracional, alienante do mercado e do consumismo. Toda poesia vivencial é resistência e rebelião.
Um dos aspectos fascinantes dessa ciência singular é o da redescoberta da poesia nos nichos da opressão, da pobreza de espírito e da alienação que nos obrigam a mentir para nós mesmos para que a sociedade se reproduza. A poesia abrigada no campo do possível e no desafio político de libertá-la. A poesia dos pequenos poemas, como o de Giuseppe Ungaretti, que foi professor de literatura italiana na USP: "A imensidão me ilumina", traduzo livremente. Ou o primeiro poema espacial, o do russo Yuri Gagarin: "A terra é azul!".
Em seu livro "O 18 de Brumário de Luís Bonaparte", fez Marx esta menção utópica à poesia: "A revolução social do século XIX não pode tomar sua poesia do passado, mas apenas do futuro". Não pode haver poesia em sociedades de carências e de degradação humana. É o ocultado possível que desafia os humanos a transformá-las.
Em outro livro, "A Ideologia Alemã", em parceria com Friedrich Engels, protestante e empresário industrial em Manchester, Marx dá conteúdo histórico a esse futurismo poético, o da sociedade que, ao realizar a superação das necessidades sociais, possibilitará a cada um "fazer hoje uma coisa, amanhã outra, caçar de manhã, pescar à tarde, pastorear à noite, fazer crítica depois da refeição, e tudo isto a meu bel-prazer, sem por isso me tornar exclusivamente caçador, pescador ou crítico."
Seria a poesia do homem emancipado das necessidades decorrentes do trabalho alienante. A poesia do trabalho só carece da práxis criativa e transformadora que a liberte para a vida, pois já se antecipa nas brechas cotidianas do vivido.
Em países como o nosso, numa hora de encolhimento das condições sociais para a poesia das superações, cabe a dúvida que Vera Zasúlich, militante populista russa, apresentou ao mesmo Marx, em carta famosa. Queria saber se era possível a revolução social numa sociedade atrasada, como a russa, que ainda não fora transformada pela industrialização. Marx respondeu com um talvez, que vale também para nós, modernos e atrasados, na sociedade, na economia e até na política.
As fantasias dos agentes e políticos da economia do finalmente da produção, sem as cautelas do entretanto da distribuição, respondem pelas ciladas que nos põem todo o tempo à beira do abismo. No desemprego e no subemprego do nosso subcapitalismo está a contrapartida suicida dessa desatenção.
Os cursos de economia poderiam tratar da verdadeira história econômica, não só a das grandes e criadoras iniciativas econômicas e tecnológicas de aumento de produção e lucro. Mas também a do trabalho humano que a ciência e a tecnologia dispensam. E ensinar que é esse o abismo que separa o capitalismo não integrativo de si mesmo.
A esquerda já deitou e rolou com discursos sobre a extração da mais-valia, o trabalho que parece pago mas não o é, enquanto fonte da acumulação de capital. Mas se omite sobre outra noção contida em "O Capital", de Marx: menos-valia, a desacumulação. É o fracasso do capital sem responsabilidade social e de dirigentes sem consciência científica das contradições sociais que os empreendimentos geram, como essa. É que ignoram que o mero crescimento econômico sem desenvolvimento econômico e social é o da economia que cresce encolhendo. Cresce para alguns e encolhe para outros. Há até mesmo uma territorialidade desse duplo movimento, que lhes dá o alerta da visibilidade: centro e periferia, regiões ricas e regiões pobres.
Estamos vendo aqui, nestes dias, mudanças na concepção de economia e nas leis que definem uma nova concepção de trabalho: a do trabalho desencarnado, o trabalho sem corpo, a produção sem gente. Máquinas que funcionam sozinhas para produzir o pão que não terá quem o coma. O impoético que se apossa de corações e mentes, a pátria de poesia expatriada.
*José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê Editorial).
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