Por Helena Celestino | Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
A Anistia ainda é uma obra em construção. Após 40 anos de aprovada a lei que abriu as portas da cadeia para a maioria dos presos políticos e permitiu a volta de exilados ou banidos pela ditadura militar, duas narrativas ainda marcam o debate político sobre a herança dos anos de ditadura. Desde que o então presidente João Figueiredo (1918-1999) enviou o projeto de Lei da Anistia em 1979 para o Congresso, numa tentativa de garantir uma transição segura do regime militar para um governo civil, acirrou nas ruas e nos corredores do poder o enfrentamento entre duas visões de futuro.
Para construir uma sociedade democrática, a Anistia deveria levar ao perdão e ao esquecimento do passado ou teria de estar associada à justiça e à memória? "Esta divisão está relacionada com a maneira que a sociedade brasileira lidou e ainda lida com as feridas da ditadura", diz Carla Simone Rodeghero, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Nada mais atual. Há duas semanas, o embate estava mais uma vez estampado nos jornais. A ministra Damares Alves proibiu a finalização de um dos poucos lugares de memória desse passado, um prédio do Memorial da Anistia, em Belo Horizonte, que começou a ser construído há dez anos, já custou R$ 12 milhões, mas, por decisão do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, terá outro destino. "Não temos dinheiro para isso. Com o acervo e a memória a gente vê depois o que fazer", disse, ao inspecionar a obra.
No dia seguinte, pela primeira vez, um agente da ditadura virou réu por estupro e violências contra a ex-presa política Inês Etienne Romeu: dois desembargadores consideraram que o sargento reformado do Exército Antonio Waneir Pinheiro Lima cometeu crimes contra a humanidade, não abrangidos pela Anistia. Inês morreu, aos 72 anos, em 2015.
Tão perto e tão longe. No longínquo 1975, ainda no governo de Ernesto Geisel (1907-1996), os círculos do poder começavam a discutir a Anistia, mesmo ano em que um grupo de mães e mulheres dos punidos pela ditadura, liderado por Therezinha Zerbini (1928-2015), levantou a bandeira da "conciliação nacional". Foi o primeiro movimento civil institucionalizado na época do regime militar, logo seguido pelos Comitês Brasileiros de Anistia (CBAs): mais politizados, os CBAs começaram timidamente, mas em 1979 já estavam espalhados por todos os Estados brasileiros e por cidades onde viviam exilados na Europa e nos EUA.
Ao aprovar a Anistia, após 14 anos de ditadura, o regime militar cassara o mandato ou suspendera os direitos políticos de 1.088 cidadãos, incluindo três ex-presidentes da República; afastara do serviço público 3.215 civis, entre eles três ministros do Supremo Tribunal Federal e um do Superior Tribunal Federal. Excluíra do serviço ativo 1.387 militares; condenara 11 mil pessoas - 82 com penas superiores a dez anos por assaltos com motivação política -; pusera na cadeia dezenas de milhares de cidadãos. As contas são do Palácio do Planalto e foram citadas em "A Ditadura Acabada", de Elio Gaspari.
A suspensão em 1969 do habeas corpus, princípio do direito para proteção do cidadão contra as arbitrariedades do Estado, devastou uma geração de brasileiros: deixou 434 mortos ou desaparecidos, 7 mil exilados e 20 mil torturados, relatou a Comissão da Verdade em 2014. "Os anos de chumbo foram abafados pelo milagre econômico - crescimento de 11,4% entre 68 e 73 - e pela censura. Já no início do governo Figueiredo, a expectativa da Anistia e da abertura política disfarçaram o desastre econômico", escreveu Gaspari. Em 1979, a discussão era em torno da abrangência do "perdão".
Os chamados terroristas, envolvidos em crimes de sangue ou sequestros, estariam fora. A ação de militares e agentes civis do Estado nos porões da ditadura ficaria coberta pela Anistia. Chamava-se isso de reciprocidade. A sociedade rachou: "Não podemos recusar o bom em nome do ótimo", dizia Therezinha Zerbini, a ala conservadora da igreja, os políticos da Arena e do Partido Comunista Brasileiro. "Anistia, ampla, geral e irrestrita", gritavam exilados, ex-presos políticos, dissidentes da Arena, o MDB e sua área de influência.
No dia 28 de agosto de 1979, Figueiredo sancionou a lei, com validade a partir do dia 1º de setembro. Os aeroportos viraram uma festa permanente, com amigos e militantes recebendo os recém-anistiados. O jornalista Fernando Gabeira foi o primeiro a desembarcar. Nas semanas seguintes chegaram os governadores Leonel Brizola (1922-2004) e Miguel Arraes (1916-2005), o secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro, Luís Carlos Prestes (1898-1990), e sucessivamente voltaram os exilados, o sucesso daquele "verão da Anistia".
"Apesar de restrita, a Anistia acabou ampla. Combinada com as reduções de pena da Lei de Segurança Nacional, no fim daquele ano não restavam presos políticos no Brasil, com exceção de Teodomiro dos Santos, condenado à morte", diz o historiador e escritor Daniel Aarão Reis, naquela época um anistiado de volta ao Rio.
A euforia tomou conta de parte da sociedade, apesar da ruína econômica. As grandes lideranças da oposição e o governo, num pacto silencioso, embargaram a memória. "Brizola cunhou a frase: 'Não vamos olhar pelo espelho retrovisor. Até Lula, que viria a ser preso depois, dizia: 'A abertura está acelerada, não vamos ficar ruminando'", lembra Aarão Reis. "Quando você tem 30 anos, quer olhar para a frente, a criação do PT animava as pessoas e, mesmo os mais experientes como o crítico de arte Mário Pedrosa e o historiador Sérgio Buarque de Holanda, foram participar da criação do partido. Era o novo", diz Jorge Eduardo Saavedra Durão, pesquisador da Fase e na época vice-presidente do CBA do Rio.
Começou assim a transição para a democracia, com revogação do Ato Institucional nº 5 (fase mais dura da ditadura), o fim da censura à imprensa, a reforma partidária, com velhos e novos atores integrados no cenário politico. Só que o "grande acordo nacional" e a pacificação não se consolidaram. "As greves do ABC, a campanha pelas Diretas descarrilaram os planos de Geisel, do [general] Golbery [do Couto e Silva] e de Figueiredo, mas a transição foi feita em ordem, e os militares salvaram a pele", afirma Aarão Reis.
A "tigrada", como Gaspari define a turma do porão na época da ditadura, atacou: bombas destruíram cem bancas de jornal, cartas com explosivos mataram Lyda Monteiro da Silva (1920-1980), secretária da OAB. A véspera do 1º de maio de 1981 ficou marcada pelo atentado frustrado do Riocentro, onde se realizava show lotado em homenagem ao Dia do Trabalho e uma das bombas explodiu antecipadamente no colo de um militar, matando-o. O ato terrorista só começou a ser esclarecido 34 anos depois.
"O clima era de medo e violência. Havia prisão de líderes sindicais, em 1982 aconteceu a Proconsult [fraude na contagem de votos para tentar impedir a eleição de Brizola a governador do Rio]. Estamos pagando até hoje o preço das insuficiências da transição democrática no Brasil", diz Saavedra Durão.
O encontro com passados traumáticos é difícil, mesmo em sociedades cuja história é celebrada e preservada. A França levou 30 anos para reabrir o capítulo da colaboração de franceses com os nazistas, e nas três décadas só narrou o heroísmo da resistência à ocupação alemã na Segunda Guerra. "Precisou de um historiador americano, Robert Paxton, para falar sobre isso. Foi um choque, mas depois vieram aqueles filmes maravilhosos, 'Chagrin et Pitié' e 'Lacombe Lucien'", diz Aarão Reis. Na Alemanha, o nazismo foi tabu até 1968 e analistas políticos creditam a essa recuperação da memória, contada em centros culturais e numa imensa produção cultural, o emparedamento da extrema-direita em pequenos distritos do lado oriental do país.
No Brasil, a Anistia como justiça e memória criou tensão e polêmica, jamais esteve na agenda política da maioria da sociedade como nos vizinhos latino-americanos. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso contou recentemente que um dos momentos delicados de sua relação com os militares foi ao criar a Comissão da Anistia e a Comissão de Mortos e Desaparecidos, em que o Estado assumia a responsabilidade por violações dos direitos humanos e começava a pagar reparações às vítimas da ditadura.
"Sou da tese de que Anistia é esquecimento, mas só se esquece o que se sabe, a apuração dos fatos deveria ter acontecido logo depois do fim da ditadura, mas a Comissão da Verdade só veio em 2015, sob pressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Essa demora fez com que a tortura ainda exista de forma generalizada no sistema de segurança pública e que ainda se exalte a ditadura", diz o jurista e professor Pedro Dallari, coordenador da primeira Comissão da Verdade.
Para o ambientalista Jean Marc von der Weid, presidente do CBA na Europa até setembro de 1979, a esquerda criou grupos para preservar a memória, mas não soube levar à sociedade o significado da luta pela Anistia e ficou só falando dentro da bolha. Tentou-se três vezes tornar Anistia realmente irrestrita: na aprovação da emenda para criar a Assembleia Nacional Constituinte em 1985, durante a elaboração da nova Constituição, e em 2010, quando o Supremo Tribunal Federal julgou uma ação da OAB que pedia a reinterpretação da lei de 1979. Por 7 a 2, foi derrotada a tese de que era inconstitucional anistiar torturadores depois de a lei considerar em 1988 que crimes contra a humanidade não prescrevem nunca.
"Nos votos, os ministros argumentaram que a Anistia nos tirou da ditadura, foi a melhor possível nos idos de 79 e não adiantaria olhar o passado com olhos de 2010. Rever esse pacto seria desfazer a maneira como vivemos hoje", afirma a historiadora Carolina Cooper, autora de uma tese sobre o tema. Na época, só os ministros Ricardo Lewandowski e Ayres Britto votaram a favor da revisão da lei, mas todos os nove foram unânimes em defender o direito de conhecer a verdade e a obrigação do Estado de abrir os arquivos. "Lembrar para não esquecer, não esquecer para nunca mais acontecer", disse o relator do processo, Eros Grau.
Os 40 anos da Anistia ocorrem em meio a disputas historiográficas, e a desconstrução da história ganha espaço nos discursos oficiais: há os que negam a existência da ditadura - como o presidente Jair Bolsonaro (PSL) - e reforça-se a narrativa de que o regime salvou o país do comunismo. Para historiadores, o negacionismo está ligado à crise da democracia global, mas há particularidades em cada país. No Brasil as raízes do populismo estão no processo de retomada da democracia, com a cristalização de certos silêncios ou versões romantizadas do passado, dificultando o entendimento do presente. "Depois da redemocratização, as Forças Armadas tiveram uma conduta de acordo com a Constituição, mas ficaram reféns do passado não esclarecido. Há uma geração de jovens oficiais constrangida por esse legado", diz Dallari.
Para o escritor Frei Betto, a dor ninguém apaga e a memória vem sendo reconstituída em livros, filmes e peças de teatro. "Só eu escrevi cinco", diz ele. Uma viagem pela América Latina fez a cineasta Lucia Murat, diretora do clássico "Que Bom Te Ver Viva" (1989), repensar a relação dos países com o passado. Ao rodar um longa que mistura ficção e vida real, visitou na Argentina uma antiga escola da Marinha, usada como centro de tortura e preservado como era nos anos de chumbo, com catres e celas. Os pequenos prédios em volta foram cedidos a movimentos de direitos humanos, como as "abuelas de la Plaza de Mayo".
No Chile, os centros de tortura viraram lugares de memória, e a ex-presidente Michelle Bachelet construiu um museu. O Estádio Nacional, usado como prisão por três meses após o golpe contra o presidente Salvador Allende (1908-1973), está todo pintado de azul e vermelho, mas a galeria cinco manteve-se como no passado: cinza, de madeira, com grades. E uma grande faixa diz "povo sem memória é um povo morto". "Aqui se impediu de revelar a história. Essa juventude chilena que vai ao Estádio Nacional, onde uma mulher explica o que aconteceu e nomeia os responsáveis, é criada de uma maneira diferente do que a juventude brasileira que não tem acesso a essas informações", diz Lucia.
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