- Valor Econômico
No Chile, o resultado final foi uma maioria da população revoltada com a forma inábil com que a crise foi administrada
Esses movimentos de protesto nas ruas, como recentemente no Chile ou no Brasil de 2013, geram muitos questionamentos sobre qual seria realmente a mensagem das ruas. Como interpretar o que estão dizendo sobre a situação política e econômica do país? Só que o sociólogo Mark Granovetter (American Journal of Sociology, maio 1978) demonstrou que muitas vezes esses protestos não têm mensagem alguma.
Para explicar esta surpreendente conclusão Granovetter considera o caso hipotético de duas pequenas cidades muito semelhantes. Ambas têm um grupo de cem estudantes reunidos na praça principal para reclamar da decisão do prefeito de aumentar o custo do transporte. Jovens naturalmente tendem a estar sempre insatisfeitos com o mundo e cheios de ideias românticas sobre como transformar a realidade. No caso específico, os estudantes estão zangados com o novo preço da passagem e frustrados por não participarem diretamente do processo político.
Pode-se sentir no ar que existe a possibilidade da situação sair do controle. Não obstante, os estudantes são em geral pessoas civilizadas que entendem que o diálogo é sempre melhor que a violência. Podemos imaginar que cada um deles se encontra dividido, de forma consciente ou não, entre dois comportamentos: ou ficar furioso e demonstrar sua revolta destruindo tudo que estiver à frente ou ficar calmo e protestar pacificamente.
Há que se notar, porém, que a decisão de cada um será pelo menos em parte uma resposta ao que os outros estiverem fazendo. De fato a escolha entre partir para a violência ou ficar calmo obedece a uma regra geral de que quanto maior for o número de pessoas fazendo arruaça, maior será a probabilidade de que outra pessoa também faça. Num movimento de protesto que descamba para violência, até pessoas sensatas podem ficar doidas. Nesse caso o protesto parece ganhar uma energia primitiva própria, que pode minar mesmo convicções fortemente estabelecidas contra gestos de destruição física, além de distorcer as estimativas individuais dos riscos envolvidos.
Podemos supor que para cada estudante existe uma espécie de gatilho comportamental, que será acionado se um determinado número de outros estudantes tiver partido para a violência. Os dois comportamentos extremos seriam o do tipo “maluquinho”, que parte para a arruaça mesmo que ninguém mais acompanhe e o do tipo “Gandhi” que não participa mesmo que todos os outros o façam. Vamos supor de forma bem simplificada que os cem estudantes estão ordenados numa distribuição linear de modo que para o enésimo indivíduo o gatilho é acionado quando um número N menos um de outros estudantes tiver optado pela violência.
Nesse caso é fácil ver como um protesto que começa com um comportamento raivoso de um maluquinho evolui para uma arruaça generalizada com a totalidade dos estudantes destruindo veículos, propriedades e tudo mais. Considere que o maluquinho ocupa a primeira posição na distribuição dos gatilhos. Então sua arruaça inicial induz a participação do segundo estudante da distribuição, o que por sua vez induz a participação do terceiro, e do quarto, e do quinto e assim por diante até a explosão catártica de todos os estudantes.
Granovetter sugere agora que consideremos outra cidade que supomos ser praticamente igual, com a única diferença de um pequeno detalhe na distribuição dos gatilhos. Nesta cidade o estudante na sétima posição na estrutura de gatilhos é igual ao oitavo, ou seja, só adere à violência se outros sete estudantes também aderirem. É fácil checar que nesse caso o processo colocado em marcha pela arruaça inicial só vai prosseguir até a sexta posição na estrutura de gatilhos.
A partir desse ponto o mecanismo deixa de funcionar e o resultado final será apenas um pequeno protesto de meia dúzia. Ou seja, o que determina como o processo de arruaça vai evoluir não tem nada a ver com qualquer diferença estrutural entre as duas cidades. Nesse modelo o protesto pode surgir e evoluir de forma quase fortuita, independente de qualquer consideração sobre ideologia, desigualdade, participação política, etc.
É claro que o modelo de Granovetter é muito simplista e no mundo real a distribuição dos gatilhos de violência em qualquer população deve ser extremamente complexa e instável ao longo do tempo. Ainda assim quem teve a curiosidade de caminhar pelas ruas brasileiras em 2013 observou como as manifestações tinham demandas incrivelmente variadas e frequentemente estapafúrdias.
Possivelmente tanto a reação muito dura da polícia nas fases iniciais quanto a participação perversa dos black bloks foram fatores importantes na dinâmica do processo. No mundo atual uma complicação adicional certamente resulta da expansão da internet e das redes sociais que podem amplificar e distorcer os mecanismos de propagação com resultados imprevisíveis.
Em relação ao caso chileno esta análise sugere que foram cometidos alguns erros graves. Primeiro a reação inicial do governo, com Piñera declarando estar “em guerra com um inimigo poderoso”, revelou uma crença ingênua de que as manifestações eram obra de alguma grande conspiração política ideológica. Isto levou naturalmente ao erro ainda mais sério de colocar o exército na rua, do que resultaram quase duas dúzias de mortes e dezenas de feridos com perda de visão.
O resultado final foi uma maioria da população revoltada com a forma inábil com que a crise foi administrada e um movimento de indignação e protesto que agora vai muito além dos estudantes. Isto pode trazer danos políticos irreparáveis para o país a despeito do sucesso incontestável da politica econômica nos últimos anos. O que nos faz pensar que o principal ensinamento a se extrair da crise chilena é uma regra simples: por pior que pareça a situação, nunca coloque o exército na rua. Ele pode fazer missões especiais e de inteligência (para combater black blocs, por exemplo), mas ordem pública deve ser apenas questão de polícia. Você não quer terminar usando força excessiva para reprimir um movimento fortuito de protesto que pode ter começado com um mero ataque de raiva de um maluquinho.
*Francisco Lafaiete Lopes, PhD por Harvard, é sócio da consultoria Macrométrica e ex-presidente do Banco Central.
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