Horizontes Democráticos
Duas hipóteses sobre a conjuntura
política brasileira, ao que tudo indica, não deverão ser confirmadas: o
impeachment de Bolsonaro e a formação de uma “frente democrática”
eleitoralmente estruturada e com expectativa de poder. O movimento pelo
impeachment não produziu, até o momento, combustão suficiente para ganhar a
sociedade e impor-se institucionalmente. A proposta de “frente democrática”
contra Bolsonaro não se conectou com o movimento do impeachment e tampouco
parece contar com atores inclinados a apoia-la, capazes de lhe dar potência
política e eleitoral. Ambas hipóteses parecem, enfim, não terem capacidade nem
circunstância para se tornarem efetivas. Quiçá possam ser mantidas em seu
espírito fundante, animando ações imediatas e expectativas de médio prazo.
A inviabilização do impeachment ficou explicita na rejeição à emenda do voto impresso, expressando a capacidade do governo em angariar apoio na Câmara dos Deputados, locus de origem institucional de um processo de impeachment do presidente da República. O impeachment não tem como ser instalado com a base de apoio que o presidente demonstrou poder contar. O que especialistas e políticos experientes já divisavam acaba de ser comprovado e o impeachment só passará em função de uma improvável hecatombe no cenário político. A oposição estará obrigada doravante a compreender que só poderá chegar à próxima estação e desembarcar se tiver muito sentido de finalidade para superar o desastre em que o País se meteu.
O que nos leva à segunda hipótese delineada acima. A proposição, concretização
e mobilização de uma “frente democrática” contra um governo ou regime
autoritário é uma fórmula política que tem
história, razões e justificativas[1]. Ela foi
originalmente pensada tendo em vista o estabelecimento de regimes fascistas ou
autoritários nos quais as forças democráticas foram derrotadas e colocadas na
defensiva. O reconhecimento de tal condição acabou por impor a aceitação da
formação de algum organismo, oficial ou não, orgânico ou não, que pudesse
agregar forças políticas contra a violência, a repressão, a agressão e a ameaça
impostas por tais regimes. A origem dessa fórmula política está
no combate ao fascismo em meados dos anos 30, com a organização das “frentes
populares”, mas foi reelaborada na luta contra os regimes autoritários, em
especial os latino-americanos. O Brasil é um case dessa
estratégia no contexto de luta contra o regime ditatorial imposto em 1964.
Recolocar a estratégia de “frente democrática” nos dias de hoje,
repondo, de certa maneira, os termos do enfrentamento virtuoso contra a
ditadura militar nas décadas de 1970 e 1980, pode ser vista como uma proposição
mais realista do que uma “frente de esquerda” – que busca a afirmação de
identidades e de projetos alternativos de sociedade – porque carrega uma
memória positiva e pode ser mais produtiva na luta política. Mas deve-se
reconhecer também que é uma proposta que apresenta uma certa coloração
passadista de difícil aplicabilidade num contexto político e institucional
completamente diferente de pluralismo competitivo e de consolidação da chamada
“democracia de audiência”[2]. O cenário
político hoje é, portanto, muito mais complexo e difuso do que o de
contraposição a um regime de espaços políticos fechados e de repressão aberta.
O pluralismo competitivo, uma vez instalado, não é terreno favorável à
proposta de “frente democrática”. Os atores políticos, coletivos ou
individuais, veem nele um ambiente político no qual podem disputar e vencer,
carreando para seus apoiadores e para os projetos estruturais que defendem os
institutos de poder e a máquina do Estado. A “democracia de audiência”
tornou-se, por sua vez, a forma e o método pela qual a política se conecta com
a sociedade por meio de vias comunicacionais que vão da TV às redes midiáticas,
especialmente estas últimas. Isso produziu uma “metamorfose” na prática da
política nas sociedades hodiernas. Nessa nova morfologia, importa mais a
afirmação da imagem e/ou linguagem de um ator político (aferidas por pesquisas
diárias) do que os partidos políticos ou qualquer projeto de sociedade[3].
O resultado é que pluralismo
competitivo e “democracia de audiência” induzem mais à competição, disputa e
dispersão de forças políticas, que se entendem vocacionadas à conquista do
poder, do que à disposição para a unidade política de atores de coloração
ideológica diferente visando retirar as forças democráticas da situação
defensiva em que se encontram e leva-las a posições de poder por vias
democráticas.
Não é casual, portanto, que ao invés
de se caminhar para a unidade das oposições, uma vez que quase a totalidade
delas julga o governo Bolsonaro como autoritário ou mesmo fascista, ampliou-se
o número de postulantes à sucessão de Bolsonaro. Os apelos à formação de uma
“frente democrática” parecem ser apenas retóricos e, na melhor das hipóteses,
considerados para o embate do segundo turno em 2022, admitindo-se que Bolsonaro
ainda se manterá competitivo até 2022. A proposta de “frente democrática”, com
o passar do tempo, ficou visivelmente sem articuladores e perdeu substância
como uma possível estratégia operacional, fazendo com que os principais
postulantes contra Bolsonaro passassem a se movimentar a partir de cálculos e
lógicas independentes entre si.
Mesmo nessa situação, não há outro
caminho para o conjunto da sociedade senão isolar Bolsonaro como o candidato a
ser batido. Isso é importante, inclusive para impedir as permanentes ameaças
antidemocráticas ao processo de sucessão acionadas pelo presidente da República
e assegurar a legitimidade do pleito. As forças democráticas terão que se
tratar nas condições que estão dispostas, com as responsabilidades e os
cuidados necessários diante dessas circunstâncias. Como haverá um candidato que
postulará a reeleição, há uma dimensão plebiscitária na eleição para presidente
da República. Para além dos nomes em disputa, há que se ultrapassar as ameaças
de cancelamento da democracia e parar o processo de destruição institucional
que se impôs nos últimos anos.
*Professor Titular de História da
UNESP-Franca-SP
Notas
[1] Problematizei
esse tema em alguns artigos, a saber, AGGIO, A., “Aporias da ‘frente
democrática’” in O Estado de São Paulo,
17.11.2019: https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,aporias-da-frente-democratica,70003091839;
AGGIO. A. “O fim da guerra e a antecipação da batalha por 2022”: https://horizontesdemocraticos.com.br/o-fim-da-guerra-e-a-antecipacao-da-batalha-por-2022/.
Ambos podem ser acessados em https://horizontesdemocraticos.com.br/.
[2] MANIN,
Bernard. The Principles
of Representative Government. New York: Cambridge University Press, 1997. Especialistas que lidaram com essa referência em traduções diversas para
o português utilizam-se também as expressões “democracia de plateia” ou
“democracia de público”; aqui mantivemos uma proximidade maior com a expressão
original “audiency democracy”.
[3] DIAMANTI,
Ivo. Democrazia ibrida. Roma: Laterza, 2014. Diamanti
examina a transição na Itália para a “democracia de audiência”, considerando
ainda as sobreposições com a situação anterior de “democracia de partidos”, daí
a noção de “democracia híbrida”. A situação brasileira é, em nosso
entendimento, distinta, especialmente pela fragilidade dos partidos.
(Publicado simultaneamente em Estado da Arte em
16 de agosto de 2021;
https://estadodaarte.estadao.com.br/aggio-realismo-horizontes-democraticos/)
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