Correio Braziliense
As cenas dos afegãos despencando do avião
da USAF durante a decolagem são piores do que as da retirada dos funcionários
da Embaixada dos Estados Unidos em Saigon
Alexander Burnes, agente da Companhia
Britânica das Índias, em 1838, recebeu de Lord Auckland, o governador-geral de
Calcutá, a missão de negociar com Dost Mohammed, o Emir do Afeganistão, um
pacto com o Império Britânico. Ao chegar em Cabul, lá estava o Conde
Vitkevitch, representante da Rússia. Era o “Grande Jogo” da Ásia, no qual a
Rainha Vitória disputava com o Czar Nicolau I o controle da Eurásia. O
pedregoso território afegão, entre o Cáucaso e a Índia, separando o Irã da
Turcomênia, era estratégico para as duas potências. No ano seguinte, 16,5 mil
ingleses, indianos e dissidentes afegãos da Army of the Hindus tomaram Cabul.
Dost Mohammed rendeu-se em novembro de 1840 e foi encarcerado na Índia.
Burnes transformou sua residência oficial num harém, enquanto os demais invasores profanavam os lares afegãos. Em 1841, os humilhados afegãos se revoltaram, invadiram a casa de Burnes e o esquartejaram. Veterano das Guerras Napoleônicas, o general Elphinston negociou com Akbar, o filho de Dost Mohammed, em 2 de janeiro de 1842, a retirada das tropas britânicas, que estavam sitiadas. Ao atravessarem o passo de Khoord-Cabool, a montanha desabou: pedras em avalanches, tiros de jezails (o fuzil de cano longo afegão), flechas e lanças dizimaram as tropas britânicas. Somente restou vivo o Dr. Brydon, o médico, que escapou a cavalo dos altos do Hindu Kush.
Na Terceira Guerra Anglo-Afegã, em 1919,
num acordo com os ingleses, o Afeganistão tornou-se um Estado-tampão na
fronteira da Índia. A partir de 1926, uma monarquia sobreviveu até 1973, quando
o rei Zair foi derrubado pelos republicanos. Em 1978, com apoio de tropas
soviéticas, um golpe de Estado implantou um regime socialista, sob forte
resistência dos rebeldes mujahedins, armados e financiados pelos EUA. Em 27 de
setembro de 1996, as forças talibãs, constituídas de ex-estudantes
fundamentalistas, derrubaram o presidente, capturaram Cabul e passaram a
controlar grande parte do país, formando um governo de coalizão.
Mas houve o atentado da Al-Qaeda às Torres
Gêmeas, os EUA invadiram o Afeganistão e retiraram os talibans do poder. Hamid
Karzai foi escolhido presidente por George W. Bush. Nas eleições de 2004,
a maioria dos 17 candidatos da oposição alegou fraude e não reconheceu o
governo de Karzai, que incluía membros da Aliança do Norte, um grupo político
formado pela majoritária etnia Pashtun. Em 2014, Asharaf Ghani foi eleito e
empossado presidente do país no lugar do corrupto Karzai, mas seu destino já
estava traçado. O governo Trump decidiria retirar as tropas norte-americanas do
país. O novo presidente, Joe Biden, manteve a decisão e ordenou a saída até
setembro, uma de suas promessas de campanha. Houve o desastre: o Talibã avançou
rapidamente, as tropas governistas não resistiram e abandonaram Cabul. Ghani
escafedeu-se.
Rota da Seda
A história se repete como tragédia. A Casa
Branca nega comparações com a retirada do Vietnã, mas as cenas dos afegãos
despencando do avião da USAF durante a decolagem, ontem, são piores do que as
da dramática retirada dos funcionários da embaixada norte-americana em Saigon.
Essa conta ficou para Biden. Entretanto, no “Grande Jogo” da Eurásia, não é a
Rússia que leva vantagem. A China tem 80 quilômetros de fronteira com o
Afeganistão e contratos bilionários, que já negocia com o Emirado Islâmico do
Afeganistão. Com 38 milhões de pessoas, o país possui reservas de minérios
avaliadas entre US$ 1 trilhão e US$ 3 trilhões, incluindo o segundo maior
depósito inexplorado de cobre do mundo.
Em julho, o ministro de relações internacionais da China, Wan Yi, recebeu a comissão de assuntos externos do Talibã, liderada por Abdul Ghani Baradar, na cidade chinesa de Tianjim. O resultado parece ter sido positivo para a China. Além de cobre, o Afeganistão tem reservas de ferro estimadas em US$ 420 bilhões e US$ 81 bilhões de nióbio, cruciais para a indústria chinesa. Em troca, Pequim oferece a infraestrutura necessária para o Afeganistão entrar na Nova Rota da Seda, megaprojeto mundial de construção de portos, estradas e ferrovias ligando três continentes: Ásia, África e Europa, bancado pelo governo chinês. O problema será estabilizar o país e moderar o fundamentalismo islâmico talibã.
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