Mas, o discurso analítico não afasta a realidade dos fatos. O modelo mental que dirige Bolsonaro é o do golpe clássico. O novo modelo, ele tentar executar, como cópia, sem originalidade. Mas, nada impede que Bolsonaro tente os dois e termine executando um híbrido. Bolsonaro tem apoio militar, exibido, a cada dia, de modo mais ostensivo e amplo. Mas, ele não tem maioria no Congresso, especialmente para fazer o principal, que seria mudar as regras do jogo a seu favor. Por que devemos considerar o que dizem os generais em off, ou os políticos que aderiram ao seu projeto de poder e desconsiderar os vários discursos que fez, como deputado, elogiando o golpe de 1964, a ditadura militar e a tortura? Prefiro acreditar que ele continua a desejar o retorno a este passado que idealiza e que produziu os seus heróis, como o coronel Ulstra, a cujo fantasma recorreu para ferir Dilma Rousseff mais fundo, ao votar a favor de seu impeachment.
Não creio que estejamos diante de duas vias
excludentes para o autoritarismo. Vamos chamar a primeira via para a
transformação autoritária, a que tem prevalecido no século 21, de estratégia do
cavalo de Tróia. O candidato a ditador — ou liderança autoritária, se vale nas
regras da democracia para chegar ao poder. Ao golpe clássico, vamos chamar de
apelo aos tanques, mesmo que estes nem possam desferir um tiro, mas simbolizam
a força militar e policial de prontidão.
Na estratégia cavalo de Tróia, o dirigente
consegue se eleger e fazer a maioria no Congresso, da qual precisa para operar
as mudanças necessárias a fim de neutralizar os mecanismos de freios e
contrapesos da democracia e pôr em recesso os direitos individuais. Na Venezuela,
Chávez fez assim para implantar o populismo autoritário e Maduro consegue se
manter no poder usando o Legislativo e o Judiciário adestrados para seguir seus
comandos. Viktor Orbán executou, com sucesso esta estratégia na Hungria. No
Brasil, há um obstáculo importante a impedir esta via. O presidencialismo de
coalizão, que praticamente impossibilita a um presidente controlar a maioria do
Congresso, por meio de comandos hierárquicos. Para fazer a maioria, tem que
negociar e, ao negociar, transfere poder. Para executar seu projeto a contento,
Bolsonaro precisa de um recurso extra-parlamentar que, inclusive lhe permita
domesticar o parlamento e, a partir deste, também enquadrar o Judiciário.
Não é que Bolsonaro deixe de tentar fazê-lo
e superar o obstáculo da maioria que lhe falta. Ele e seus acólitos tentam com
afinco. Conseguiu, por exemplo, aprovar na Câmara um código eleitoral que
deveria ser batizado de código antieleitoral, pois reduzem a quase nada os
crimes eleitorais, retiram poderes da justiça eleitoral e os transfere àqueles a
quem ela deve regular, abrem a possibilidade de fraudes eleitorais que já
infelicitaram a democracia brasileira. Bolsonaro quer que se possa fraudar as
eleições, só não deseja que se possa fazê-lo contra ele.
A ameaça de pedir ao Senado o impeachment
de dois ministros do Supremo Tribunal Federal que o têm incomodado faz parte da
tentativa de domar o Judiciário. Se tivesse sucesso, mas o STF não se deixasse
intimidar, repetiria o expediente, até assumir o inteiro controle da Corte
Suprema. A nomeação de Augusto Aras, procurador geral da República, foi outro
movimento típico da estratégia cavalo de Tróia. Como o Ministério Público tem
muito poder de inciativa, usou um procurador de carreira, para desmontar a
autonomia e o poder de agência da instituição. O poder de agência se expressa
no controle da iniciativa judicial e na faculdade que cada procurador tem de
iniciar procedimentos investigatórios para cumprir a missão constitucional do
MP. Aras centralizou os procedimentos na PGR para manejar como quiser a
iniciativa e o poder de agência. Oriundo da fase anterior de organização do
ministério público, que permitia, inclusive exercer a advocacia em simultâneo
ao cargo, não tem lealdades na carreira.
Ao mesmo tempo, Bolsonaro trabalha na
operacionalização da estratégia de apelo aos tanques. Demitiu os comandantes
militares porque não lhe prestavam a deferência e não se aproximavam do governo
na medida em que ele desejava. Nomeou três comandantes dóceis, que lhe prestam
toda a deferência e se alinham a seu projeto político. Este desvio para a
política é que não desejavam os comandantes anteriores, ciosos da distância que
as Forças Armadas, como instituições do Estado, deveriam guardar do governo.
Transferiu para o ministério da Defesa, o general Braga Neto que já desmontrara
perfeito alinhamento aos objetivos do chefe. Este, recentemente, forçou o
retorno a Brasília, de blindados que esperavam em Formosa, para um exercício
padrão, para que fizessem parada na Praça dos Três Poderes, de modo que
Bolsonaro demonstrasse ao Congresso e ao Judiciário que ele mandava no
"seu exército". Vai, desde modo, acumulando recursos para o golpe
clássico.
Nenhum golpe acontece de repente. Ele pode
ser finalizado numa madrugada, porém após bastante tempo de conspiração,
seguida da implementação de suas várias etapas. Entre as etapas de preparação e
operacionalização da tomada ilegítima do poder, estão: a disseminação de
mentiras e teses conspiratórias para criar o clima de tensão e confronto que
justifique uma intervenção; a conspiração nos bastidores, buscando aliados e
apoios; a intimidação da oposição para neutralizar moderados e radicalizar
setores de posições mais extremadas; ações concretas de agitação e provocação
de confrontos de rua para criar o pretexto da desordem civil ou convulsão
social que justifiquem uma intervenção mais definitiva; a tomada final do
poder, seja por eleições controladas, seja pela força com apoio dos militares e
de milícias. Várias dessas fases preparatórias podem ocorrer em simultâneo, não
há, necessariamente, uma sequência temporal determinada, exceto entre as fases
preparatórias e a de execução final.
Se, ao final, Bolsonaro terminar como
protagonista de um golpe híbrido, combinando as estragégias do cavalo de Tróia
e do apelo aos tanques, não se poderá alegar surpresa ou imprevisto. Não terá
sido por falta de indícios e de pistas ao longo do trajeto. Só não vê, quem não
quer.
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