terça-feira, 17 de agosto de 2021

Sérgio Abranches* - O golpe híbrido de Bolsonaro

Há um golpe em curso no país. Ele está em processo de execução. Bolsonaro coleta pretextos e provoca reações que deseja ver escalar até o que poderia classificar como desordem civil ou convulsão social. Não vejo porque a realidade deva se ater aos discursos, sejam eles para esconder as intenções dos atores da cena política, sejam eles para explicar situações concretas recentes. Bolsonaro e os comandantes militares negam a intenção ou a execução do golpe. Mas importam suas atitudes e não suas palavras. Os analistas descartam o golpe clássico, escorado em um pronunciamento militar, porque as transformações recentes de regimes democráticos em autoritários se deram por desmonte interno dos regimes. Mentalidades autoritárias eleitas em pleitos abertos e competitivos usam a maioria obtida para desmontar as instituiçoes que sustentam a democracia.

Mas, o discurso analítico não afasta a realidade dos fatos. O modelo mental que dirige Bolsonaro é o do golpe clássico. O novo modelo, ele tentar executar, como cópia, sem originalidade. Mas, nada impede que Bolsonaro tente os dois e termine executando um híbrido. Bolsonaro tem apoio militar, exibido, a cada dia, de modo mais ostensivo e amplo. Mas, ele não tem maioria no Congresso, especialmente para fazer o principal, que seria mudar as regras do jogo a seu favor. Por que devemos considerar o que dizem os generais em off, ou os políticos que aderiram ao seu projeto de poder e desconsiderar os vários discursos que fez, como deputado, elogiando o golpe de 1964, a ditadura militar e a tortura? Prefiro acreditar que ele continua a desejar o retorno a este passado que idealiza e que produziu os seus heróis, como o coronel Ulstra, a cujo fantasma recorreu para ferir Dilma Rousseff mais fundo, ao votar a favor de seu impeachment.

Não creio que estejamos diante de duas vias excludentes para o autoritarismo. Vamos chamar a primeira via para a transformação autoritária, a que tem prevalecido no século 21, de estratégia do cavalo de Tróia. O candidato a ditador — ou liderança autoritária, se vale nas regras da democracia para chegar ao poder. Ao golpe clássico, vamos chamar de apelo aos tanques, mesmo que estes nem possam desferir um tiro, mas simbolizam a força militar e policial de prontidão.

Na estratégia cavalo de Tróia, o dirigente consegue se eleger e fazer a maioria no Congresso, da qual precisa para operar as mudanças necessárias a fim de neutralizar os mecanismos de freios e contrapesos da democracia e pôr em recesso os direitos individuais. Na Venezuela, Chávez fez assim para implantar o populismo autoritário e Maduro consegue se manter no poder usando o Legislativo e o Judiciário adestrados para seguir seus comandos. Viktor Orbán executou, com sucesso esta estratégia na Hungria. No Brasil, há um obstáculo importante a impedir esta via. O presidencialismo de coalizão, que praticamente impossibilita a um presidente controlar a maioria do Congresso, por meio de comandos hierárquicos. Para fazer a maioria, tem que negociar e, ao negociar, transfere poder. Para executar seu projeto a contento, Bolsonaro precisa de um recurso extra-parlamentar que, inclusive lhe permita domesticar o parlamento e, a partir deste, também enquadrar o Judiciário.

Não é que Bolsonaro deixe de tentar fazê-lo e superar o obstáculo da maioria que lhe falta. Ele e seus acólitos tentam com afinco. Conseguiu, por exemplo, aprovar na Câmara um código eleitoral que deveria ser batizado de código antieleitoral, pois reduzem a quase nada os crimes eleitorais, retiram poderes da justiça eleitoral e os transfere àqueles a quem ela deve regular, abrem a possibilidade de fraudes eleitorais que já infelicitaram a democracia brasileira. Bolsonaro quer que se possa fraudar as eleições, só não deseja que se possa fazê-lo contra ele.

A ameaça de pedir ao Senado o impeachment de dois ministros do Supremo Tribunal Federal que o têm incomodado faz parte da tentativa de domar o Judiciário. Se tivesse sucesso, mas o STF não se deixasse intimidar, repetiria o expediente, até assumir o inteiro controle da Corte Suprema. A nomeação de Augusto Aras, procurador geral da República, foi outro movimento típico da estratégia cavalo de Tróia. Como o Ministério Público tem muito poder de inciativa, usou um procurador de carreira, para desmontar a autonomia e o poder de agência da instituição. O poder de agência se expressa no controle da iniciativa judicial e na faculdade que cada procurador tem de iniciar procedimentos investigatórios para cumprir a missão constitucional do MP. Aras centralizou os procedimentos na PGR para manejar como quiser a iniciativa e o poder de agência. Oriundo da fase anterior de organização do ministério público, que permitia, inclusive exercer a advocacia em simultâneo ao cargo, não tem lealdades na carreira.

Ao mesmo tempo, Bolsonaro trabalha na operacionalização da estratégia de apelo aos tanques. Demitiu os comandantes militares porque não lhe prestavam a deferência e não se aproximavam do governo na medida em que ele desejava. Nomeou três comandantes dóceis, que lhe prestam toda a deferência e se alinham a seu projeto político. Este desvio para a política é que não desejavam os comandantes anteriores, ciosos da distância que as Forças Armadas, como instituições do Estado, deveriam guardar do governo. Transferiu para o ministério da Defesa, o general Braga Neto que já desmontrara perfeito alinhamento aos objetivos do chefe. Este, recentemente, forçou o retorno a Brasília, de blindados que esperavam em Formosa, para um exercício padrão, para que fizessem parada na Praça dos Três Poderes, de modo que Bolsonaro demonstrasse ao Congresso e ao Judiciário que ele mandava no "seu exército". Vai, desde modo, acumulando recursos para o golpe clássico.

Nenhum golpe acontece de repente. Ele pode ser finalizado numa madrugada, porém após bastante tempo de conspiração, seguida da implementação de suas várias etapas. Entre as etapas de preparação e operacionalização da tomada ilegítima do poder, estão: a disseminação de mentiras e teses conspiratórias para criar o clima de tensão e confronto que justifique uma intervenção; a conspiração nos bastidores, buscando aliados e apoios; a intimidação da oposição para neutralizar moderados e radicalizar setores de posições mais extremadas; ações concretas de agitação e provocação de confrontos de rua para criar o pretexto da desordem civil ou convulsão social que justifiquem uma intervenção mais definitiva; a tomada final do poder, seja por eleições controladas, seja pela força com apoio dos militares e de milícias. Várias dessas fases preparatórias podem ocorrer em simultâneo, não há, necessariamente, uma sequência temporal determinada, exceto entre as fases preparatórias e a de execução final.

Se, ao final, Bolsonaro terminar como protagonista de um golpe híbrido, combinando as estragégias do cavalo de Tróia e do apelo aos tanques, não se poderá alegar surpresa ou imprevisto. Não terá sido por falta de indícios e de pistas ao longo do trajeto. Só não vê, quem não quer.

 *Cientista Político 

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