O Globo
Faltam três semanas para o vigésimo
aniversário do 11 de Setembro de 2001. O ataque terrorista daquele dia foi o
mais ousado da História moderna. Deixou os Estados Unidos de joelhos por várias
horas e, de certa forma, sem rumo desde então. Data sombria, portanto,
indelével da memória coletiva deste milênio, assim como o 22 de novembro de
1963 (assassinato de John F. Kennedy), marcou fundo quem viveu a segunda metade
do século XX. Distintos em quase tudo — escopo, duração, vítimas anônimas x
alvo único, consequências históricas —, os dois acontecimentos têm em comum um
tripé capaz de minar qualquer sociedade: medo, insegurança coletiva e teorias
conspiratórias. A morte violenta de Kennedy deixou o país em orfandade
sentimental. Os suicidas islâmicos do 11 de Setembro, que reduziram a escombros
as orgulhosas Torres Gêmeas do capitalismo e racharam a fortaleza militar do
Pentágono, expuseram ao mundo a vulnerabilidade da superpotência. Foi um choque
e um luto cataclísmicos.
O atual presidente, Joe Biden, assumiu a Casa Branca decidido a acabar com a guerra que os EUA travam no Afeganistão há 20 anos. Ela fora desencadeada por George W. Bush, com apoio maciço do Congresso e recurso à tortura, para castigar o país que dera abrigo ao grupo jihadista al-Qaeda, responsável pela matança do 11 de Setembro. Está agora em seus estertores, mas não da forma desejada por Washington.
O Afeganistão nunca deixou de ser um
exasperante atoleiro militar para as Forças Armadas e os ocupantes da Casa
Branca. A imposição de sucessivos governos pró-Ocidente e a exclusão do Talibã
nunca conseguiram pacificar o país, repetindo o fiasco tentado meio século
antes no Vietnã. O envio de mais de 100 mil soldados à terra estrangeira e a
realização de eleições tampouco conseguiram emplacar a nação afegã idealizada.
Bush saiu da Casa Branca e deixou o caos sem olhar para trás. Entre promessas
de retirada total e o envio de mais reforços, seus sucessores Barack Obama e
Donald Trump também ali atolaram.
Biden agora cravou a saída definitiva até o
31 de agosto próximo. Talvez pretendesse fazer dessa promessa um motivo de
alívio nacional, justamente às vésperas do sempre traumático aniversário do
11/9. A ver. Até porque as forças do arqui-inimigo Talibã já percorrem o solo
afegão com aisance feroz e anunciam que o governo local apoiado pelos
americanos não ficará de pé. Planejam concluir seu arrojado assalto ao poder em
semanas e refazer do Afeganistão um Emirado Islâmico. Sobretudo, querem
celebrar o seu próprio 11 de Setembro, obrigando os EUA a sair pela porta dos
fundos, às pressas, sem prometer nem concessões nem pacificação com adversários
internos.
Para o povo afegão, derrotar potências
estrangeiras é parte da história nacional — já enxotaram os ingleses em três
guerras, expulsaram e fizeram sangrar os soviéticos e agora despacham o colosso
americano sem maiores cerimônias. Ainda ficarão com um bom butim militar.
Estima-se que as Forças Armadas dos EUA tinham em território afegão 65 mil
contêineres de 10m x 3m x 3m só de material bélico (sem contar veículos,
blindados, aviões, é claro). Parte desse maná terá de ser deixada para trás.
Não é de hoje que conflitos globais
desembocam em cemitérios imperiais. A Primeira Grande Guerra, sozinha, gerou a
dissolução de três deles — o Império Russo, o Austro-Húngaro e o Otomano. Finda
a Segunda Guerra Mundial, o próprio Império Britânico achou melhor cuidar de
seu Serviço Nacional de Saúde do que persistir sine die em sua vocação
imperial. Fez bem. Os Estados Unidos, por sua história e fundamentos, sempre
preferiram o papel de xerife, seja para invadir, ocupar, desestabilizar, trocar
de regime , “democratizar”. Das guerras sem fim mais recentes, acabam sobrando
mausoléus em forma de embaixadas.
Às margens do Rio Tigre jaz um desses
mastodontes. Foi fincado no perímetro mais protegido da capital do Iraque, país
também invadido por Bush na Guerra ao Terror deslanchada após o 11 de Setembro.
É formado por 21 edificações, se estende por uma área maior que o Vaticano e
foi planejado para abrigar até 16 mil pessoas. Na verdade, uma cidade-bunker
dentro de um bunker. Apenas 10% da ocupação seria destinada a diplomatas,
outros 10% a administradores. Os restantes 30% caberiam a pessoal terceirizado
e 50% a forças de segurança. À época da inauguração, um integrante do
Departamento de Estado descreveu o complexo como “fortaleza destinada a manter
o povo e a realidade do lado de fora”. Cabul, a capital do Afeganistão, também
tem uma dessas embaixadas-mamutes. Um dia parecerá sítio arqueológico de uma
era pouco edificante.
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