Horizontes Democráticos / Estado da Arte
O presidente Jair Bolsonaro voltou a invocar o artigo 142 da Constituição, que trata da defesa do Estado e das instituições democráticas, afirmando que ele confere aos militares um “poder moderador” para repor a lei e a ordem quando houver conflito entre os Poderes. “Nas mãos das Forças Armadas, a certeza da nossa liberdade e do apoio total às decisões do presidente para o bem da sua nação. Obrigado por existirem. Nós sabemos o que é bom e o que é justo para o nosso povo”, disse ele no dia 12 de agosto, numa solenidade de promoção de generais.
Bolsonaro defendeu reiteradamente essa tese
no ano passado, principalmente depois de uma decisão do Supremo Tribunal
Federal (STF) que considerou inconstitucional um de seus atos normativos. Na
ocasião, o presidente da corte, Luiz Fux, o rebateu de pronto, esclarecendo que
a leitura do artigo 142 feita pelo presidente da República é equivocada, em
termos técnico-jurídicos. Por causa disso, Bolsonaro ampliou suas afrontas à
corte, estimulando seus seguidores a fazerem o mesmo.
Agindo nessa linha, um grupo de 52 membros
da Aeronáutica, 16 da Marinha e 10 do Exército – todos da reserva – publicou um
manifesto acusando os ministros do STF de fazerem “uso de um palavreado
enfadonho, supérfluo, verboso, ardiloso, como um bolodório de doutor de
faculdade”. E um deputado, Marcio Labre (PSL-RJ), chegou a afirmar pelo YouTube que,
“se as Forças Armadas decidirem que os senhores (ministros do STF) estão
destituídos, os senhores estarão, porque o fuzil atira e a caneta não atira. A
vida funciona assim, sempre funcionou. Quem manda no jogo é o dono do fuzil,
não é a caneta do senhor Fux, nem do senhor Toffoli, nem do senhor Lewandowski,
nem do senhor Gilmar Mendes. Um único movimento de tanque na sala dos senhores
e os senhores saem algemados, destituídos, podem perder num instante o status
que têm hoje”.
Deixando de lado a adulação de Bolsonaro aos novos generais, o palavrório dos oficiais de pijama e o golpismo desse parlamentar, a ideia de que o artigo 142 permite às Forças Armadas agirem como poder moderador de conflitos entre os poderes não procede, juridicamente. Segundo esse artigo, “as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
Apesar de não ser um texto preciso, como
tantos outros produzidos pela Constituinte, o artigo 142 não diz, em momento
algum, que as Forças Armadas têm a prerrogativa de um juízo singular que lhes
permita avaliar eventuais tensões e conflitos entre os três Poderes e de
intervir por conta própria, sob a justificativa de garantir a Constituição e
preservar a lei e a ordem. Também não afirma que as Forças Armadas são a
garantia da Constituição – esta, pelo artigo 103, deixa claro que o guardião da
Carta é o STF.
Na verdade, o poder de chefia das Forças
Armadas é limitado juridicamente e não há qualquer margem para interpretações
que permitam sua utilização para conter “indevidas intromissões” no
funcionamento dos outros Poderes, como afirmou o presidente da República em
2020. Ao contrário do que tenta induzir, o artigo 142 é o que define as funções
das Forças Armadas – não são elas que definem o papel da Constituição. Por mais
que esse artigo 142 estabeleça que o papel institucional dos militares é
defender a Pátria, garantir os poderes constitucionais e assegurar a lei e a
ordem, ele não acolhe a ideia de um poder moderador entre os poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário.
O que aqueles que criticam os ministros do
STF de se expressar por meio de “bolodórios de um doutor de faculdade” não
sabem é que, no âmbito do direito positivo, não existe uma interpretação
literal da Constituição e das leis – como se houvesse uma interpretação única e
verdadeira. Qualquer calouro dos cursos jurídicos aprende, já no primeiro ano,
que a interpretação literal é rejeitada desde os tempos do pensamento helênico.
Entre os parlamentares bolsonaristas, como aquele que pede “um único movimento
de tanque na sala dos ministros do STF”, certamente também haverá quem defenda
uma técnica interpretativa dirigida à revelação da vontade do
legislador, vinculada a critérios metodológicos consagrados pela jurisprudência
e pela doutrina. E, entre os que conhecem um pouquinho de direito e fornecem
pareceres de ocasião a generais, almirantes e brigadeiros, alguns poderão até
falar em interpretações gramatical, lógica e sistemática.
Embora essas concepções hermenêuticas sejam
antigas, elas já não mais se adequam às sociedades complexas. Nelas, os juízes
já não são vistos como agentes presos a um sistema lógico-formal de regras, mas
encarados como profissionais cujas decisões resultam da ponderação entre suas
visões jurídicas, morais e políticas e os aspectos factuais dos casos sob sua
responsabilidade. Nessas sociedades, o sentido de uma norma jurídica não é algo
objetivo que se encontra no texto da lei. É, isto sim, o resultado de um
processo de leitura dessa norma condicionado pela experiência pessoal,
profissional e cultural do intérprete.
Desse modo, quando o STF examina um texto
legal, não há sentido único a ser extraído dele – o que há são sentidos
contextualizados pelas circunstâncias que balizam a escrita e a comunicação dos
legisladores e juízes. Se as normas não são linguisticamente unívocas, ao
julgarem ações de inconstitucionalidade contra o uso abusivo de MPs e outras
iniciativas do governo, os ministros do STF elegem, entre vários sentidos
possíveis, o que melhor pode realizar a função estabilizadora do direito. Os
ministros levam em conta os marcos normativos da Constituição como moldura
solene, o que neutralizaria o arbítrio.
Nessa perspectiva, a linguagem das leis não
é apenas um instrumento para descrever a realidade por elas regulada – ela
também é edificadora da própria realidade. E, à medida que essa realidade vai
se tornando mais intrincada, para regular os casos difíceis o legislador tende
a optar por conceitos principiológicos – ou seja, abertos e indeterminados.
Conceitos como moralidade pública, defesa da pátria e da Bandeira e garantia
dos poderes constitucionais nada mais são do que técnicas de catalização
de expectativas dos diferentes setores da sociedade.
Conceitos como esses são, também, fatores
de estabilização da ordem legal e preservação de sua identidade sistêmica. São,
ainda, instrumentos usados pelo legislador para assegurar alto grau de
respeitabilidade dessa ordem junto à população. E, como não são
autoexecutáveis, os conceitos abertos pressupõem a transferência da
responsabilidade por seu fechamento e implementação aos tribunais. Por isso,
quando recorrem a princípios como esses para fundamentar uma decisão, os juízes
– da primeira à última instância – legislam no caso concreto.
O caráter polissêmico desses conceitos é um
fator revelador de que não há interpretação mecânica ou neutra das leis – fato
esse que os acusadores do STF e de seu decano parecem não compreender. Se por
um lado a interpretação das normas é condicionada pela experiência pessoal e
intelectual do intérprete, por outro, quanto mais principiológico é um texto
legal, maior é a discricionariedade dos juízes. Mesmo que as decisões estejam
escritas na linguagem da lógica jurídica, elas encerram juízos de valor que
podem conflitar entre si. Como dizia o justice Oliver Wendell Holmes
Jr., antigo presidente da Suprema Corte americana e docente de Harvard, processos
são “campos de batalha” nos quais a sentença é preferência de um determinado
juiz de um determinado lugar num determinado momento histórico.
No limite, textos legais com conceitos mais
abertos – como defesa da Pátria e da Bandeira e garantia dos Poderes
constitucionais – encerram dois riscos. Por um lado, o excesso de
princípios pode inviabilizar o direito positivo como técnica. Por outro,
confere aos responsáveis por sua aplicação um amplo poder político e
institucional. Decorre daí a porosidade da fronteira entre a criação do
direito, de competência do legislador, e sua aplicação, de competência do juiz.
Também decorre daí a crescente judicialização da vida política e a subsequente
politização da Justiça. Decorrem daí, ainda, a jurisprudência criativa dos
tribunais, a multiplicação de decisões com fundamentos extrajurídicos e o
intervencionismo em políticas públicas.
Com seus rompantes, confundindo “autoridade
suprema” com poder absoluto, como é o caso de Bolsonaro e seu entorno militar e
político, os bolsonaristas críticos do STF – a começar pelo próprio presidente
– agiriam melhor se ficassem calados, pois assim não revelariam o grau de sua
ignorância jurídica. Como abriram a boca, mostraram não ter competência para
discutir problemas atuais mais importantes em matéria de aplicação e de
interpretação do direito.
Como mudar um cenário em que as decisões
judiciais tendem a ser mais uma criação dos juízes do que o resultado da
aplicação dedutiva de normas jurídicas? Há limites à recriação da ordem legal
por meio de interpretações judiciais? É possível evitar que o controle da
constitucionalidade das leis se converta numa atividade inovadora de sentido,
mesmo sob a justificativa de atualizar um pacto constitucional que, por
princípio, é fruto de um processo de decisão coletiva destinado a garantir ao
máximo sua universalidade e consenso? Se muitos textos legais contemporâneos
são amoldáveis para a atribuição de qualquer sentido por um juiz, como fica a
segurança do direito?
Em suma, ao redigir o artigo 142, os
constituintes talvez tenham cedido demais, no plano simbólico, para as Forças
Armadas. E o fato é que agora, 33 anos depois, uma parte dela – ignara,
anacrônica e de vocação autocrática – parece almejar mais do que a tutela
simbólica. Ou seja: o poder efetivo. Nesse sentido, ao insistir que esse artigo
confere às Forças Armadas um poder moderador, perante um grupo de generais,
dois dias após o patético desfile de tanques sucateados pela esplanada dos
ministérios, em Brasília, Bolsonaro nada mais faz do que amplificar o desapreço
pelas liberdades públicas.
Com isso, negou a Constituição que jurou
cumprir. E agora, ao acusar os ministros do STF de “extrapolarem de suas
prerrogativas”, quando na prática eles estão apenas exigindo respeito à ordem
constitucional, ainda deu mais um triste passo, cujas consequências são
imprevisíveis, que tende a tornar o País menor perante o mundo civilizado e as
nações com democracia consolidada.
(Publicado simultaneamente em Estado
da Arte em 15 de agosto de 2021;
https://estadodaarte.estadao.com.br/jef-poder-moderador-ffaa-142/)
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