Desperdício de vacinas é um escândalo
O Globo
Enquanto cobertura de vacinados continua em
queda, governo joga fora milhões de doses contra meningite
O Ministério da
Saúde corre o risco de ter de jogar fora
quase 3,7 milhões de doses de vacina contra meningite C, cujo
prazo de validade é 31 de agosto. Elas estão estocadas, sem ser distribuídas
aos municípios, por falta de demanda. O descarte dessas vacinas significará o
desperdício de R$ 174 milhões em dinheiro público. E não será evento isolado.
Já foram incinerados mais de 33 milhões de doses contra a meningite,
e outros 10 milhões poderão ter o mesmo destino nos meses seguintes. A
destruição de vacinas contra a Covid-19 também já custou R$ 2 bilhões aos
cofres públicos.
Mais que a perda financeira, preocupa o impacto na saúde pública. A vacina contra meningite C, forma mais grave da doença, consta do calendário infantil desde 2010 e também é indicada a adolescentes e adultos. Vacinar é fundamental, pois a letalidade da doença chega a 30%, para não falar nas sequelas nos infectados. Com o desperdício das doses, a cobertura vacinal contra a meningite está em 51,48% da população, quando deveria ser de cerca de 95%, padrão para doenças contagiosas.
A meningite C é apenas o último exemplo de
uma tendência que envergonha o Brasil, outrora exemplo internacional de
campanhas bem-sucedidas de vacinação. Relatório do Unicef divulgado em abril
mostrou que o país apresenta a segunda pior taxa de vacinação de crianças
recém-nascidas na América Latina, só ultrapassado pela Venezuela, em crise
constante.
Dados do DataSUS revelam que a cobertura
contra a poliomielite, de 98,3% em 2015, caiu para 76,7% no ano passado. Na
primeira das duas doses da vacina tríplice viral — contra sarampo, caxumba e
rubéola —, a cobertura retrocedeu de 96,1% para 80,4%, enquanto na vacina
pentavalente — difteria, tétano, coqueluche, hepatite B e contra a bactéria
Haemophilus influenzae tipo b — a queda foi de 96,3% para 76,8%. Parte da
população brasileira está vulnerável a doenças contagiosas, num retrocesso de
décadas. O descarte de vacinas em meio a tal crise sanitária é um escândalo.
O fato de o mesmo problema ocorrer noutros
países não justifica a passividade com que vem sendo enfrentado no Brasil.
Durante a pandemia, cresceu e se espalhou pelas redes sociais o nefasto
movimento antivacina, que deve ser enfrentado pelos governos com campanhas
constantes para desmentir a desinformação. O governo Jair Bolsonaro deixou a
herança de negacionismo contra a ciência, com destaque para a vacina que o
próprio presidente se recusou a tomar. Esperava-se do governo Lula uma ação
mais ágil e eficaz para resgatar níveis mínimos de cobertura vacinal.
Em situações como essa, é preciso instalar
equipes de vacinadores em pontos de grande movimento, como estações de trens,
metrô e ônibus. Os governos federal, estaduais e municipais têm de mobilizar
toda a população e promover a busca ativa de não vacinados, se necessário em
suas próprias casas. É inaceitável as autoridades sanitárias e os altos
escalões dos governos não agirem de forma mais determinada.
Vigilância da Igreja é essencial para
coibir casos de pedofilia
O Globo
Livro de jornalistas do GLOBO revela que
108 padres já foram denunciados à Justiça brasileira
Passados 22 anos das denúncias de pedofilia
envolvendo padres na importante Arquidiocese de Boston, nos Estados Unidos, a
Igreja ainda é obrigada a conviver com a incômoda percepção de que poderia ter
feito mais para evitar a desastrosa tentativa de encobrir os crimes sexuais.
Ainda mais porque o problema não ficou restrito aos americanos, como revela o
livro “Pedofilia na Igreja: um dossiê inédito sobre casos de abusos envolvendo
padres católicos no Brasil”, dos jornalistas do GLOBO Fábio Gusmão e Giampaolo
Morgado Braga.
A obra revela a extensão do problema no
Brasil, que reúne aproximadamente 10% do 1,3 bilhão de católicos do mundo, com
111 mil igrejas e 27 mil sacerdotes. Foram denunciados à Justiça brasileira 108
padres, acusados de molestar 148 crianças e adolescentes (meninos sendo o dobro
das meninas). Há 60 condenações por atentados violentos ao pudor e estupro de
vulnerável, com pena média de 12,4 anos de prisão. Tais processos precisam ser
julgados com a rapidez e firmeza que o tipo de crime exige. “Crime é crime, e
como crime deve ser tratado”, disse com razão o novo presidente da CNBB, dom
Jaime Spengler.
Nos Estados Unidos, sete anos depois das
denúncias a Igreja havia sido condenada na Justiça a pagar US$ 430 milhões em
reparações pelos crimes de pedofilia cometidos por padres, não apenas em
Boston. É uma realidade diferente da brasileira. Enquanto os pedidos de
indenização somam R$ 150 milhões, até o ano passado a Justiça autorizara o
pagamento de menos de R$ 1 milhão.
O escândalo de Boston veio a público ainda
no pontificado de João Paulo II, de quem foi cobrada uma posição firme para
afastar da Igreja os padres pedófilos. Em nenhum momento ele se referiu
publicamente aos crimes. O Papa Francisco tem outra postura. Pregou “tolerância
zero” com pedófilos na Igreja em entrevista recente. “Um sacerdote não pode
continuar no sacerdócio se for culpado de abusos. Ele é um doente, um
criminoso”, afirmou.
Pelo menos até Francisco, eram frequentes
os casos de acobertamento ou transferência de padres acusados de crimes
sexuais. Pelo menos 30 sacerdotes suspeitos de pedofilia foram deslocados para
outros países até 2010, no papado de Bento XVI. Um dos transferidos foi Mario
Pezzotti, acusado de ter estuprado três vezes um jovem de 14 anos em Holliston,
nos Estados Unidos, em 1959. Pezzotti foi removido para o Brasil em 1970. Ficou
aqui até 2003, período em que trabalhou com índios caiapós, inclusive com crianças.
Casos como esse são a maior prova de que a Igreja tem de manter atenção máxima ao comportamento de seus sacerdotes. Cabe a ela afastar aqueles sobre quem pesam acusações fundamentadas e denunciá-los à Justiça, antes de acontecer o pior.
Marco polêmico
Folha de S. Paulo
Debate sobre terras indígenas precisa de
menos extremismo de lado a lado
Congresso, Supremo Tribunal Federal e
governo têm diante de si a responsabilidade de deliberar sobre o tema complexo
—política e juridicamente— dos direitos das comunidades indígenas a terras
perdidas ao longo da história.
Está em jogo o alcance da aplicação do
artigo 231 da Constituição de 1988, que reconhece a esses povos "os
direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam" e
"o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas
existentes".
A partir do ditame constitucional, o
processo de demarcação de áreas indígenas conheceu enorme e justa expansão nas
décadas seguintes, a ponto de elas ocuparem hoje nada menos de 13,8% do
território nacional. É evidente que tamanha transformação não se deu sem
controvérsia, que ganhou novo patamar a partir de 2009.
Naquele ano, o STF firmou a tese do marco
temporal —vale dizer, considerou que o direito estabelecido na Constituição se
aplicava, de fato, às terras ocupadas por indígenas no ano de promulgação do
texto, 1988. Esse entendimento, porém, pode ser revisto agora, com o julgamento
de um recurso apresentado pela Funai.
Diante dessa perspectiva, a Câmara dos
Deputados aprovou nesta semana, por margem folgada de 283 votos a 155, projeto com o
objetivo de consolidar e regular o marco temporal, no que foi tido
como derrota de lideranças indígenas.
Ainda que haja forças retrógradas entre os
apoiadores do projeto, é sem dúvida legítima a preocupação do setor rural com a
segurança jurídica das propriedades. O marco temporal é questionável, no
entanto, por deixar de fora áreas consideradas importantes em estados como Mato
Grosso do Sul.
O debate, infelizmente, está contaminado
por ideologização excessiva de lado a lado. Boa parte da polêmica pode ser
contornada se os Poderes tratarem de eliminar as hipóteses mais extremistas.
É preciso deixar claro que, seja qual for o
cenário, não haverá
retrocesso nas demarcações já realizadas, 98,3% delas na Amazônia —e
que o Estado zelará pela segurança e bem-estar de seus habitantes. Cumpre
também esvaziar a ideia caricata de que qualquer porção do pais está sujeita a
se converter em terra indígena.
O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pode
organizar, segundo se noticia, um fórum de discussões sobre o assunto,
incluindo representantes do Legislativo e do Judiciário. A administração
petista tem notória inclinação às teses indigenistas, mas dará contribuição
importante se viabilizar uma discussão sóbria e plural.
O que puder ser feito para minorar os
inevitáveis conflitos políticos e judiciais será bem-vindo.
Chance a aproveitar
Folha de S. Paulo
Mercosul e União Europeia precisam superar
protecionismos para ratificar acordo
Negociado ao
longo de duas décadas e assinado em 2019, mas ainda não ratificado,
o acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia passa por nova
rodada de negociações com vistas a uma conclusão nos próximos meses.
Abrangendo 32 países e 780 milhões de
pessoas, o acordo abarca economias que em conjunto produzem o equivalente a US$
19 trilhões ao ano. Para o Mercosul, seria o primeiro tratado amplo, com
potencial para finalmente direcionar os olhos do bloco sul-americano para o
comércio mundial.
Com esse potencial, é necessário esforço
máximo para uma conclusão equilibrada, que no entanto ainda depende de
alinhamento a respeito de temas controversos.
O principal desafio vem do lado europeu,
com exigências significativas na área ambiental. É compreensível que,
politicamente, a ratificação tenha sido travada durante a gestão de Jair
Bolsonaro (PL), com o desmatamento e queimadas batendo recordes.
Mas os europeus vão além disso quando usam
sua agenda de transformação verde para impor restrições unilaterais ao acesso
de exportações agropecuárias do Mercosul. É evidente o viés protecionista com
seu setor agropecuário.
Nesse contexto, foram mal recebidas pelo
governo brasileiro as novas exigências ambientais. Os termos constam de uma
carta que seria anexada ao acordo, com garantias mais firmes de redução de
emissões que superam os compromissos voluntários firmados no acordo de Paris,
em 2015.
Luiz Inácio Lula da Silva (PT) também quer
negociar as regras para compras governamentais, com a justificativa
de que é papel do Estado em países em desenvolvimento direcionar sua demanda
para beneficiar empresas locais.
Eis os principais obstáculos que precisam
ser superados nas negociações. Do lado europeu, cumpre entender que a agenda
ambiental não pode ser instrumentalizada para o protecionismo. Os compromissos
devem ter em pauta as obrigações dos tratados internacionais, não suplantar a
legislação interna dos países signatários.
Quanto ao Brasil, é necessário compreender
a importância estratégica do acordo e superar amarras ideológicas a versões
datadas do desenvolvimentismo, contrárias à liberalização do comércio. No
contexto atual de redesenho de cadeias produtivas globais, uma estratégia de
abertura bem negociada trará oportunidades ao país.
Hora de avançar na reforma tributária
O Estado de S. Paulo
Apesar de todos os interesses e
dificuldades, clima no Congresso é favorável à aprovação da proposta pela
primeira vez em anos. Governo não pode deixar esta rara oportunidade passar
Com a aprovação do arcabouço fiscal, a
Câmara deve finalmente dar andamento à reforma tributária, assunto que é
debatido há anos na Casa. O relator, Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), pretende
apresentar um relatório com as diretrizes da proposta nos próximos dias, mas o
substitutivo que irá a votação só será divulgado depois disso. A ideia é
submeter o texto ao plenário antes do recesso parlamentar, um cronograma que
parece muito otimista diante dos numerosos interesses que um texto digno de ser
chamado de reforma deva endereçar.
O coordenador do grupo de trabalho que
discute o tema, Reginaldo Lopes (PT-MG), já adiantou que os setores de saúde,
educação e transporte coletivo poderão contar com uma alíquota reduzida no
Imposto sobre Valor Agregado (IVA), que deve substituir vários tributos que
hoje incidem sobre o consumo. Aventa-se a possibilidade de privilegiar, também,
produtos do agronegócio.
Considerando que nem Ribeiro nem Lopes são
deputados inexperientes, é de perguntar o que pretendem com as sinalizações que
têm dado sobre os rumos da reforma tributária. A divulgação de um parecer com
diretrizes gerais, antes do texto que será votado em plenário, soa como
diversionismo para não enfrentar de uma vez os conhecidos dissensos da reforma.
Já a admissão de que alguns setores terão alíquotas diferenciadas abre a
porteira para que todos defendam privilégios para si mesmos.
Reportagens do Estadão têm mostrado a
batalha que ocorre nos bastidores da atuação do grupo de trabalho. Empresários
de segmentos com direito à desoneração da folha de pagamento querem que a
manutenção do benefício seja incluída na proposta – embora esta etapa da
reforma nem sequer trate de encargos sobre salários dos funcionários. No lugar
da devolução de impostos pagos pela parcela mais vulnerável da população,
representantes de supermercados pleiteiam a manutenção da isenção generalizada
dos itens da cesta básica, uma política pública cara, sem foco e que atinge até
as camadas mais abastadas da sociedade.
Governadores e prefeitos, por sua vez, defendem
o IVA Dual, ou seja, um que unifique os tributos da União, como PIS, IPI e
Cofins, e outro que una os impostos estaduais e municipais, como ICMS e ISS. “O
que será realmente a autonomia de um governador? Qual é a função de uma
Assembleia Legislativa? Em nome de uma reforma tributária, você não pode matar
a Federação, concentrar todos os poderes nas mãos de um comitê”, criticou o
governador de Goiás, Ronaldo Caiado.
Todas estas demandas são legítimas e não
são nenhuma novidade. Nos últimos anos, os debates no Congresso provaram só
haver consenso sobre a necessidade de uma reforma para substituir um sistema
que se tornou completamente disfuncional ao longo dos anos. Cada setor, no
entanto, quer ter direito a um tratamento especial, justamente a origem do que
levou ao manicômio tributário atualmente em vigor. Subsídios, regimes
diferenciados e guerras fiscais evidenciam essa prática que, de exceção em
exceção, dinamitou as bases do sistema como um todo.
Apesar das dificuldades, há um clima
favorável à aprovação de uma reforma tributária ampla como há muito não havia.
Diferentemente da proposta de fatiamento defendida pelo então ministro da
Economia, Paulo Guedes, durante a administração de Jair Bolsonaro, sabiamente,
ao menos neste tema, o governo Lula decidiu não bater de frente com o
Congresso. A reforma conta com o apoio do presidente da Câmara, Arthur Lira
(PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). O ministro da Fazenda, Fernando
Haddad, teve reconhecido seu papel como interlocutor e articulador nas pautas
econômicas de interesse do Executivo.
São os detalhes e as exceções, porém, que
podem fazer o texto naufragar, e é preciso enfrentá-los com pulso firme. A
tramitação do texto será um novo teste à liderança de Haddad, que, em sintonia
com o relator do parecer e as lideranças do Congresso, terá o desafio de
arregimentar o maior apoio político possível sem deturpar os princípios da
proposta. É obrigação do governo não deixar esta rara oportunidade passar.
O projeto de um país que pensa pequeno
O Estado de S. Paulo
Exigência de conteúdo nacional para carro
‘popular’ não estimula aumento de eficiência e competitividade nem garante
recolocação da indústria no comércio internacional
No embrião do pacote industrial preparado
pelo governo, que agita o setor empresarial e movimenta o debate acadêmico, um
detalhe chama a atenção: a exigência de conteúdo nacional como uma forma de dar
mais competitividade à indústria. No dia 25 de maio, Dia da Indústria, a medida
foi anunciada entre as que iriam compor o pacote de incentivo ao setor
automotivo, por exemplo. Como se andar na contramão da economia mundial fosse
um diferencial positivo.
Por mais bem-intencionada que possa
parecer, a defesa de conteúdo nacional não implica aumento de eficiência e
competitividade de nossos produtos diante da concorrência internacional. Pelo
contrário. Num mercado há muito globalizado, que tem no setor automobilístico
altamente tecnológico um exemplo bem acabado, a pseudoproteção representada
pela obrigatoriedade de fabricação nacional significa, antes de tudo, abrir mão
de avanços tecnológicos – que são, estes sim, o verdadeiro diferencial dos
produtos que circulam no comércio mundial.
Não há como incentivar competitividade com
um olhar voltado apenas ao mercado doméstico. Também não há como elevar a
produtividade e a participação no mercado internacional distribuindo subsídios.
Ou seja, um programa de subsídios para carros “populares” que incentiva o uso
de peças nacionais é equivocado em múltiplas dimensões.
“Por que dar subsídio para a indústria
automobilística se ela não consegue exportar o nosso carro?”, questionou, com
razão, Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da
Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), em entrevista ao Estadão. “O dia em que a nossa
indústria conseguir fazer um carro que compita no mercado internacional, aí vou
achar que algum tipo de subsídio ou política vai fazer sentido. Mas essa é uma
indústria que está conosco há 60 anos, e tirando um ou outro período
relativamente curto, nunca gerou capacidade exportadora.”
De acordo com dados da Organização Mundial
do Comércio, o Brasil, com 1,3% de participação na corrente de comércio, ocupa
a 25.ª posição entre os maiores países exportadores. A soja lidera a lista dos
produtos brasileiros mais vendidos, o que não é nenhuma surpresa, pois o agro,
responsável por um terço do nosso PIB, é também o motor das exportações e
também é, de longe, um dos setores que mais têm investido em tecnologia de
ponta, não apenas com desenvolvimento próprio mas, sobretudo, importando
tecnologia.
Não é de hoje que o presidente Lula da
Silva bate na tecla de que quer fazer o Brasil elevar as vendas de produtos de
maior valor agregado. Fala em vender combustíveis ao invés do petróleo cru;
produtos industrializados ao invés de matérias-primas. Ora, não é investindo em
uma nova versão de reserva de mercado, como parece pretender Lula, que isso vai
acontecer. Conteúdo nacional mínimo pode ser extremamente prejudicial se houver
erro na dosagem. Foi o que ocorreu com a indústria naval, embora o presidente
se recuse a reconhecer.
É senso comum que a preocupação do governo
vem em boa hora, pois a desindustrialização precoce do Brasil, se não for
interrompida, ameaça consolidar no País a mediocridade da renda média e da
baixa produtividade. No entanto, é preciso definir com mais rigor técnico e
menos voluntarismo ideológico qual seria o melhor caminho para atingir esse
objetivo. Tome-se o exemplo da anunciada intenção de incentivar a produção de
carros ditos “populares”. Pouco depois da fanfarra do anúncio, o ministro da
Fazenda, Fernando Haddad, tratou de dizer que o programa duraria apenas alguns
meses, deixando claro o caráter provisório da medida. Ora, não é com gambiarras
como essa que se faz uma política industrial digna de ser levada a sério.
Como lembrou o economista e ex-presidente
do Banco Central Armínio Fraga, a indústria tem perdido participação no PIB
nacional independentemente dos inúmeros benefícios recebidos, com destaque para
o crédito subsidiado do BNDES, proteção contra a concorrência estrangeira e
incentivos tributários. “Claramente o espectro do desenvolvimentismo fracassado
está de volta”, diz ele.
O que a economia brasileira precisa com
urgência é de um modelo perene de crescimento, pensado com base em nossas
capacidades reais e com visão de efeito a longo prazo. Enquanto continuar a
pensar pequeno, com medidas provincianas como a do carro “popular”, estaremos
condenados à mediocridade.
Cade ‘à la carte’
O Estado de S. Paulo
Rever os termos do acordo de venda de
refinarias da Petrobras desmoraliza a atuação do Cade
A Petrobras pediu ao Conselho
Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para rever os termos de um acordo
firmado há quatro anos, no qual a companhia se comprometeu a vender oito
refinarias para encerrar uma investigação sobre práticas anticompetitivas. “O
mercado é dinâmico, as coisas mudam, e o TCC (Termo de Cessação de Conduta) é
uma visão estanque naquele momento. A revisão sempre aconteceu no Cade, não tem
nada de estranho nisso”, disse o presidente do Cade, Alexandre Cordeiro. Neste
caso em particular, no entanto, não foi o mercado que mudou, mas o governo e a
diretoria da Petrobras, enquanto o Cade, lamentavelmente, continua o mesmo.
Durante a administração de Michel Temer, a
Petrobras anunciou um ambicioso plano de venda de ativos. O objetivo era
reduzir um endividamento que havia assumido proporções gigantescas no governo
Dilma Rousseff e concentrar atividades em segmentos mais rentáveis, como a
exploração e produção do pré-sal. Essas diretrizes, mantidas na Presidência de
Jair Bolsonaro, deram origem ao acordo mencionado pelo presidente do Cade.
É interessante, no entanto, resgatar o que
teria motivado esse acordo. Em tese, tudo começou com uma denúncia de
importadores de combustíveis, que acusaram a Petrobras de praticar preços
inferiores aos seus custos para inviabilizar as atividades dos concorrentes. É
o tipo de conduta anticompetitiva que demanda atuação do Cade, e assim foi
aberta uma investigação para apurar a conduta da companhia.
Por meio do acordo firmado em junho de
2019, a Petrobras livrou-se das pesadas multas que o inquérito lhe poderia
impor caso a conduta ilícita fosse confirmada. Isso já seria bastante
vantajoso, mas a companhia obteve ainda o aval formal de um órgão de Estado
para vender o que já planejava vender. Não passou despercebido o fato de que
nenhuma das oito refinarias a serem vendidas ficava em São Paulo ou no Rio de
Janeiro, mercados dos quais a companhia não queria abrir mão voluntariamente.
Cordeiro ainda não era presidente do Cade,
mas já ocupava o cargo de superintendente-geral do órgão. À época, mostrou-se
muito satisfeito com a conclusão do processo, “um momento histórico para a
economia brasileira”. Hoje, no novo cargo, não descarta rever o acordo e prega
que “o Cade defende, no final do dia, o consumidor brasileiro”.
O prazo para o cumprimento do acordo se
encerraria no fim de 2021, mas foi prorrogado algumas vezes. Ainda assim, a
companhia conseguiu vender apenas três das oito refinarias. Sob o governo Lula,
no entanto, a Petrobras mudou de rota rumo ao atraso, substituindo a paridade
internacional por uma política de preços opaca o suficiente para fazer o que
bem entender e anunciando planos de retomar investimentos em refino, inclusive
no exterior.
Vindo de administrações petistas, nada disso é surpresa. O que espanta é a facilidade com que o Cade se deixou usar pelos governos de plantão. Se os termos do primeiro acordo já eram suficientemente questionáveis, revê-los, no contexto atual, desmoralizará ainda mais a atuação do Cade.
Espaço aberto para o fim do aperto
monetário
Valor Econômico
Freio dos juros já produziu efeitos
esperados, esfriando para valer a demanda doméstica
O PIB do primeiro trimestre deixou a porta
aberta para que o Banco Central sinalize o início do movimento de queda da taxa
de juros. Os números mostraram que, no que depender dos setores diretamente
afetados pela política monetária, o freio já produziu efeitos esperados,
esfriando para valer a demanda doméstica, que contribuiu negativamente com 0,5
ponto percentual para o resultado final. A agropecuária, com sua irradiação
pelo setor industrial e de serviços, foi a grande força motora de um
crescimento de 1,9% no primeiro trimestre.
Há vários fatores que indicam, mas não
garantem, que os impactos esperados de um dos maiores ciclos de aperto
monetário foram atingidos, ou estão perto disso. Em julho de 2022, quando o
IPCA atingiu 10,07%, refletia uma taxa Selic doze meses antes de apenas 3,50%,
com enorme juro negativo real. Não é mais o caso. O IPCA de 4,18%, em doze
meses até maio, já é produto de uma taxa básica de 12,75%, com taxa real muito
elevada, acima de 8%.
Com isso, como o PIB registrou, o consumo
das famílias avançou apenas 0,2% no primeiro trimestre do ano, em relação ao
trimestre anterior. Os investimentos, que poderiam implicar aumento da demanda
imediata, recuaram 3,4%. A comparação interanual revelou que o movimento também
foi de baixa, para 17,7% do PIB, ante 18,4% no primeiros três meses de 2022.
Os preços dos serviços deram um salto após
o fim da pandemia, em um movimento que se prolongou, mas dão sinais de
amortecimento, em acordo com a queda da atividade. A agricultura puxou o
subsetor de transportes e armazenamento, mas, no que importa para a política
monetária, o item outros serviços, onde estão incluídos os serviços prestados à
família, recuou 0,5% na ponta.
No lado da oferta, a pressão inflacionária
também parece diminuir. A indústria continua andando de lado, enquanto os
preços do setor estão desabando. O Índice de Preços ao Produtor, da FGV, que
mede todos os setores, mas tem peso grande da manufatura, apresenta redução
pelo terceiro mês consecutivo, com baixa relevante de 4,63% em 12 meses
encerrados em abril. É uma das maiores deflações desde que o índice começou a
ser mensurado, em 1945.
A influência do setor agropecuário na
inflação depende muito das cotações externas, pelo peso do país no mercado internacional,
mas a principais commodities, como soja, carnes e milho estão com preços
cadentes, mais de 20% em um ano. Com a perspectiva de redução do comércio
global e de crescimento menor nas principais economias consumidoras, incluindo
a China, a estimativa é de que não haverá alta de preços suficiente para
empurrar a inflação doméstica para frente. A queda do índice de commodities do
Banco Central em abril, no acumulado do ano, foi de 7,25% e, em doze meses, de
13,4%. Metais e energia pesam mais na baixa acentuada - respectivamente 22,7% e
33,7%.
Os alimentos continuam caros, mas podem
baixar com a supersafra a caminho. Em maio, subiram acima do índice geral, mas
no acumulado do ano (1,53%) sua evolução é mais comedida que em 2022. A
perspectiva de preços não depende só do passado (grande produção), mas do
futuro. Condições climáticas muito adversas não estão previstas até agora, mas
o tempo sempre pode mudar. Em relação a preços dos insumos para o plantio, os
dos fertilizantes tiveram queda expressiva, o que não era de se esperar com a
guerra da Rússia contra a Ucrânia, ambos grandes produtores com participação
decisiva nos mercados.
Dada a tendência de queda da inflação,
produzida pelo aperto monetário, o que poderia dar errado? As expectativas
estão convergindo para a meta, embora lentamente. Elas estão muito pautadas
pela questão fiscal, que melhorou com a aprovação quase certa do novo regime,
embora ele não seja o dos sonhos de economistas ortodoxos. A perspectiva de
descontrole sumiu do horizonte, embora a dívida bruta continuará a subir.
Quando a inflação ultrapassou 10% em um
ano, a relação câmbio-preço das commodities, muito influenciada pelo do
petróleo, favoreceu a pressão nos preços. O dólar, porém, há semanas ensaia
ficar abaixo dos R$ 5. No ano, ele recuou mais de 6% em relação ao real, a
moeda de melhor desempenho entre as emergentes recentemente. O acordo para a
elevação do teto da dívida nos EUA tende a dar força ao dólar, assim como a
possibilidade de encerramento do ciclo de alta dos juros pelo Fed.
Há bons motivos para que o BC dê um sinal cauteloso de inversão do ciclo. A expectativa de que o Conselho Monetário Nacional sancione a prática que se tornou corrente de não perseguir a meta de inflação segundo o ano calendário, mas ao longo do tempo, em período compatível com a política monetária, ajudará o BC a cumprir o objetivo. O perigo maior, se o IPCA mostrar um figurino bem comportado, é o governo se sentir liberado para gastar mais. É um risco real, mas como o jogo das expectativas tem como base promessas de cumprimento do novo regime fiscal, com todas suas falhas, ele pode não se materializar a curto prazo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário