segunda-feira, 5 de junho de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Desperdício de vacinas é um escândalo

O Globo

Enquanto cobertura de vacinados continua em queda, governo joga fora milhões de doses contra meningite

Ministério da Saúde corre o risco de ter de jogar fora quase 3,7 milhões de doses de vacina contra meningite C, cujo prazo de validade é 31 de agosto. Elas estão estocadas, sem ser distribuídas aos municípios, por falta de demanda. O descarte dessas vacinas significará o desperdício de R$ 174 milhões em dinheiro público. E não será evento isolado. Já foram incinerados mais de 33 milhões de doses contra a meningite, e outros 10 milhões poderão ter o mesmo destino nos meses seguintes. A destruição de vacinas contra a Covid-19 também já custou R$ 2 bilhões aos cofres públicos.

Mais que a perda financeira, preocupa o impacto na saúde pública. A vacina contra meningite C, forma mais grave da doença, consta do calendário infantil desde 2010 e também é indicada a adolescentes e adultos. Vacinar é fundamental, pois a letalidade da doença chega a 30%, para não falar nas sequelas nos infectados. Com o desperdício das doses, a cobertura vacinal contra a meningite está em 51,48% da população, quando deveria ser de cerca de 95%, padrão para doenças contagiosas.

A meningite C é apenas o último exemplo de uma tendência que envergonha o Brasil, outrora exemplo internacional de campanhas bem-sucedidas de vacinação. Relatório do Unicef divulgado em abril mostrou que o país apresenta a segunda pior taxa de vacinação de crianças recém-nascidas na América Latina, só ultrapassado pela Venezuela, em crise constante.

Dados do DataSUS revelam que a cobertura contra a poliomielite, de 98,3% em 2015, caiu para 76,7% no ano passado. Na primeira das duas doses da vacina tríplice viral — contra sarampo, caxumba e rubéola —, a cobertura retrocedeu de 96,1% para 80,4%, enquanto na vacina pentavalente — difteria, tétano, coqueluche, hepatite B e contra a bactéria Haemophilus influenzae tipo b — a queda foi de 96,3% para 76,8%. Parte da população brasileira está vulnerável a doenças contagiosas, num retrocesso de décadas. O descarte de vacinas em meio a tal crise sanitária é um escândalo.

O fato de o mesmo problema ocorrer noutros países não justifica a passividade com que vem sendo enfrentado no Brasil. Durante a pandemia, cresceu e se espalhou pelas redes sociais o nefasto movimento antivacina, que deve ser enfrentado pelos governos com campanhas constantes para desmentir a desinformação. O governo Jair Bolsonaro deixou a herança de negacionismo contra a ciência, com destaque para a vacina que o próprio presidente se recusou a tomar. Esperava-se do governo Lula uma ação mais ágil e eficaz para resgatar níveis mínimos de cobertura vacinal.

Em situações como essa, é preciso instalar equipes de vacinadores em pontos de grande movimento, como estações de trens, metrô e ônibus. Os governos federal, estaduais e municipais têm de mobilizar toda a população e promover a busca ativa de não vacinados, se necessário em suas próprias casas. É inaceitável as autoridades sanitárias e os altos escalões dos governos não agirem de forma mais determinada.

Vigilância da Igreja é essencial para coibir casos de pedofilia

O Globo

Livro de jornalistas do GLOBO revela que 108 padres já foram denunciados à Justiça brasileira

Passados 22 anos das denúncias de pedofilia envolvendo padres na importante Arquidiocese de Boston, nos Estados Unidos, a Igreja ainda é obrigada a conviver com a incômoda percepção de que poderia ter feito mais para evitar a desastrosa tentativa de encobrir os crimes sexuais. Ainda mais porque o problema não ficou restrito aos americanos, como revela o livro “Pedofilia na Igreja: um dossiê inédito sobre casos de abusos envolvendo padres católicos no Brasil”, dos jornalistas do GLOBO Fábio Gusmão e Giampaolo Morgado Braga.

A obra revela a extensão do problema no Brasil, que reúne aproximadamente 10% do 1,3 bilhão de católicos do mundo, com 111 mil igrejas e 27 mil sacerdotes. Foram denunciados à Justiça brasileira 108 padres, acusados de molestar 148 crianças e adolescentes (meninos sendo o dobro das meninas). Há 60 condenações por atentados violentos ao pudor e estupro de vulnerável, com pena média de 12,4 anos de prisão. Tais processos precisam ser julgados com a rapidez e firmeza que o tipo de crime exige. “Crime é crime, e como crime deve ser tratado”, disse com razão o novo presidente da CNBB, dom Jaime Spengler.

Nos Estados Unidos, sete anos depois das denúncias a Igreja havia sido condenada na Justiça a pagar US$ 430 milhões em reparações pelos crimes de pedofilia cometidos por padres, não apenas em Boston. É uma realidade diferente da brasileira. Enquanto os pedidos de indenização somam R$ 150 milhões, até o ano passado a Justiça autorizara o pagamento de menos de R$ 1 milhão.

O escândalo de Boston veio a público ainda no pontificado de João Paulo II, de quem foi cobrada uma posição firme para afastar da Igreja os padres pedófilos. Em nenhum momento ele se referiu publicamente aos crimes. O Papa Francisco tem outra postura. Pregou “tolerância zero” com pedófilos na Igreja em entrevista recente. “Um sacerdote não pode continuar no sacerdócio se for culpado de abusos. Ele é um doente, um criminoso”, afirmou.

Pelo menos até Francisco, eram frequentes os casos de acobertamento ou transferência de padres acusados de crimes sexuais. Pelo menos 30 sacerdotes suspeitos de pedofilia foram deslocados para outros países até 2010, no papado de Bento XVI. Um dos transferidos foi Mario Pezzotti, acusado de ter estuprado três vezes um jovem de 14 anos em Holliston, nos Estados Unidos, em 1959. Pezzotti foi removido para o Brasil em 1970. Ficou aqui até 2003, período em que trabalhou com índios caiapós, inclusive com crianças.

Casos como esse são a maior prova de que a Igreja tem de manter atenção máxima ao comportamento de seus sacerdotes. Cabe a ela afastar aqueles sobre quem pesam acusações fundamentadas e denunciá-los à Justiça, antes de acontecer o pior.

Marco polêmico

Folha de S. Paulo

Debate sobre terras indígenas precisa de menos extremismo de lado a lado

Congresso, Supremo Tribunal Federal e governo têm diante de si a responsabilidade de deliberar sobre o tema complexo —política e juridicamente— dos direitos das comunidades indígenas a terras perdidas ao longo da história.

Está em jogo o alcance da aplicação do artigo 231 da Constituição de 1988, que reconhece a esses povos "os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam" e "o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes".

A partir do ditame constitucional, o processo de demarcação de áreas indígenas conheceu enorme e justa expansão nas décadas seguintes, a ponto de elas ocuparem hoje nada menos de 13,8% do território nacional. É evidente que tamanha transformação não se deu sem controvérsia, que ganhou novo patamar a partir de 2009.

Naquele ano, o STF firmou a tese do marco temporal —vale dizer, considerou que o direito estabelecido na Constituição se aplicava, de fato, às terras ocupadas por indígenas no ano de promulgação do texto, 1988. Esse entendimento, porém, pode ser revisto agora, com o julgamento de um recurso apresentado pela Funai.

Diante dessa perspectiva, a Câmara dos Deputados aprovou nesta semana, por margem folgada de 283 votos a 155, projeto com o objetivo de consolidar e regular o marco temporal, no que foi tido como derrota de lideranças indígenas.

Ainda que haja forças retrógradas entre os apoiadores do projeto, é sem dúvida legítima a preocupação do setor rural com a segurança jurídica das propriedades. O marco temporal é questionável, no entanto, por deixar de fora áreas consideradas importantes em estados como Mato Grosso do Sul.

O debate, infelizmente, está contaminado por ideologização excessiva de lado a lado. Boa parte da polêmica pode ser contornada se os Poderes tratarem de eliminar as hipóteses mais extremistas.

É preciso deixar claro que, seja qual for o cenário, não haverá retrocesso nas demarcações já realizadas, 98,3% delas na Amazônia —e que o Estado zelará pela segurança e bem-estar de seus habitantes. Cumpre também esvaziar a ideia caricata de que qualquer porção do pais está sujeita a se converter em terra indígena.

O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pode organizar, segundo se noticia, um fórum de discussões sobre o assunto, incluindo representantes do Legislativo e do Judiciário. A administração petista tem notória inclinação às teses indigenistas, mas dará contribuição importante se viabilizar uma discussão sóbria e plural.

O que puder ser feito para minorar os inevitáveis conflitos políticos e judiciais será bem-vindo.

Chance a aproveitar

Folha de S. Paulo

Mercosul e União Europeia precisam superar protecionismos para ratificar acordo

Negociado ao longo de duas décadas e assinado em 2019, mas ainda não ratificado, o acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia passa por nova rodada de negociações com vistas a uma conclusão nos próximos meses.

Abrangendo 32 países e 780 milhões de pessoas, o acordo abarca economias que em conjunto produzem o equivalente a US$ 19 trilhões ao ano. Para o Mercosul, seria o primeiro tratado amplo, com potencial para finalmente direcionar os olhos do bloco sul-americano para o comércio mundial.

Com esse potencial, é necessário esforço máximo para uma conclusão equilibrada, que no entanto ainda depende de alinhamento a respeito de temas controversos.

O principal desafio vem do lado europeu, com exigências significativas na área ambiental. É compreensível que, politicamente, a ratificação tenha sido travada durante a gestão de Jair Bolsonaro (PL), com o desmatamento e queimadas batendo recordes.

Mas os europeus vão além disso quando usam sua agenda de transformação verde para impor restrições unilaterais ao acesso de exportações agropecuárias do Mercosul. É evidente o viés protecionista com seu setor agropecuário.

Nesse contexto, foram mal recebidas pelo governo brasileiro as novas exigências ambientais. Os termos constam de uma carta que seria anexada ao acordo, com garantias mais firmes de redução de emissões que superam os compromissos voluntários firmados no acordo de Paris, em 2015.

Luiz Inácio Lula da Silva (PT) também quer negociar as regras para compras governamentais, com a justificativa de que é papel do Estado em países em desenvolvimento direcionar sua demanda para beneficiar empresas locais.

Eis os principais obstáculos que precisam ser superados nas negociações. Do lado europeu, cumpre entender que a agenda ambiental não pode ser instrumentalizada para o protecionismo. Os compromissos devem ter em pauta as obrigações dos tratados internacionais, não suplantar a legislação interna dos países signatários.

Quanto ao Brasil, é necessário compreender a importância estratégica do acordo e superar amarras ideológicas a versões datadas do desenvolvimentismo, contrárias à liberalização do comércio. No contexto atual de redesenho de cadeias produtivas globais, uma estratégia de abertura bem negociada trará oportunidades ao país.

 Hora de avançar na reforma tributária

O Estado de S. Paulo

Apesar de todos os interesses e dificuldades, clima no Congresso é favorável à aprovação da proposta pela primeira vez em anos. Governo não pode deixar esta rara oportunidade passar

Com a aprovação do arcabouço fiscal, a Câmara deve finalmente dar andamento à reforma tributária, assunto que é debatido há anos na Casa. O relator, Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), pretende apresentar um relatório com as diretrizes da proposta nos próximos dias, mas o substitutivo que irá a votação só será divulgado depois disso. A ideia é submeter o texto ao plenário antes do recesso parlamentar, um cronograma que parece muito otimista diante dos numerosos interesses que um texto digno de ser chamado de reforma deva endereçar.

O coordenador do grupo de trabalho que discute o tema, Reginaldo Lopes (PT-MG), já adiantou que os setores de saúde, educação e transporte coletivo poderão contar com uma alíquota reduzida no Imposto sobre Valor Agregado (IVA), que deve substituir vários tributos que hoje incidem sobre o consumo. Aventa-se a possibilidade de privilegiar, também, produtos do agronegócio.

Considerando que nem Ribeiro nem Lopes são deputados inexperientes, é de perguntar o que pretendem com as sinalizações que têm dado sobre os rumos da reforma tributária. A divulgação de um parecer com diretrizes gerais, antes do texto que será votado em plenário, soa como diversionismo para não enfrentar de uma vez os conhecidos dissensos da reforma. Já a admissão de que alguns setores terão alíquotas diferenciadas abre a porteira para que todos defendam privilégios para si mesmos.

Reportagens do Estadão têm mostrado a batalha que ocorre nos bastidores da atuação do grupo de trabalho. Empresários de segmentos com direito à desoneração da folha de pagamento querem que a manutenção do benefício seja incluída na proposta – embora esta etapa da reforma nem sequer trate de encargos sobre salários dos funcionários. No lugar da devolução de impostos pagos pela parcela mais vulnerável da população, representantes de supermercados pleiteiam a manutenção da isenção generalizada dos itens da cesta básica, uma política pública cara, sem foco e que atinge até as camadas mais abastadas da sociedade.

Governadores e prefeitos, por sua vez, defendem o IVA Dual, ou seja, um que unifique os tributos da União, como PIS, IPI e Cofins, e outro que una os impostos estaduais e municipais, como ICMS e ISS. “O que será realmente a autonomia de um governador? Qual é a função de uma Assembleia Legislativa? Em nome de uma reforma tributária, você não pode matar a Federação, concentrar todos os poderes nas mãos de um comitê”, criticou o governador de Goiás, Ronaldo Caiado.

Todas estas demandas são legítimas e não são nenhuma novidade. Nos últimos anos, os debates no Congresso provaram só haver consenso sobre a necessidade de uma reforma para substituir um sistema que se tornou completamente disfuncional ao longo dos anos. Cada setor, no entanto, quer ter direito a um tratamento especial, justamente a origem do que levou ao manicômio tributário atualmente em vigor. Subsídios, regimes diferenciados e guerras fiscais evidenciam essa prática que, de exceção em exceção, dinamitou as bases do sistema como um todo.

Apesar das dificuldades, há um clima favorável à aprovação de uma reforma tributária ampla como há muito não havia. Diferentemente da proposta de fatiamento defendida pelo então ministro da Economia, Paulo Guedes, durante a administração de Jair Bolsonaro, sabiamente, ao menos neste tema, o governo Lula decidiu não bater de frente com o Congresso. A reforma conta com o apoio do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, teve reconhecido seu papel como interlocutor e articulador nas pautas econômicas de interesse do Executivo.

São os detalhes e as exceções, porém, que podem fazer o texto naufragar, e é preciso enfrentá-los com pulso firme. A tramitação do texto será um novo teste à liderança de Haddad, que, em sintonia com o relator do parecer e as lideranças do Congresso, terá o desafio de arregimentar o maior apoio político possível sem deturpar os princípios da proposta. É obrigação do governo não deixar esta rara oportunidade passar.

O projeto de um país que pensa pequeno

O Estado de S. Paulo

Exigência de conteúdo nacional para carro ‘popular’ não estimula aumento de eficiência e competitividade nem garante recolocação da indústria no comércio internacional

No embrião do pacote industrial preparado pelo governo, que agita o setor empresarial e movimenta o debate acadêmico, um detalhe chama a atenção: a exigência de conteúdo nacional como uma forma de dar mais competitividade à indústria. No dia 25 de maio, Dia da Indústria, a medida foi anunciada entre as que iriam compor o pacote de incentivo ao setor automotivo, por exemplo. Como se andar na contramão da economia mundial fosse um diferencial positivo.

Por mais bem-intencionada que possa parecer, a defesa de conteúdo nacional não implica aumento de eficiência e competitividade de nossos produtos diante da concorrência internacional. Pelo contrário. Num mercado há muito globalizado, que tem no setor automobilístico altamente tecnológico um exemplo bem acabado, a pseudoproteção representada pela obrigatoriedade de fabricação nacional significa, antes de tudo, abrir mão de avanços tecnológicos – que são, estes sim, o verdadeiro diferencial dos produtos que circulam no comércio mundial.

Não há como incentivar competitividade com um olhar voltado apenas ao mercado doméstico. Também não há como elevar a produtividade e a participação no mercado internacional distribuindo subsídios. Ou seja, um programa de subsídios para carros “populares” que incentiva o uso de peças nacionais é equivocado em múltiplas dimensões.

“Por que dar subsídio para a indústria automobilística se ela não consegue exportar o nosso carro?”, questionou, com razão, Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), em entrevista ao Estadão. “O dia em que a nossa indústria conseguir fazer um carro que compita no mercado internacional, aí vou achar que algum tipo de subsídio ou política vai fazer sentido. Mas essa é uma indústria que está conosco há 60 anos, e tirando um ou outro período relativamente curto, nunca gerou capacidade exportadora.”

De acordo com dados da Organização Mundial do Comércio, o Brasil, com 1,3% de participação na corrente de comércio, ocupa a 25.ª posição entre os maiores países exportadores. A soja lidera a lista dos produtos brasileiros mais vendidos, o que não é nenhuma surpresa, pois o agro, responsável por um terço do nosso PIB, é também o motor das exportações e também é, de longe, um dos setores que mais têm investido em tecnologia de ponta, não apenas com desenvolvimento próprio mas, sobretudo, importando tecnologia.

Não é de hoje que o presidente Lula da Silva bate na tecla de que quer fazer o Brasil elevar as vendas de produtos de maior valor agregado. Fala em vender combustíveis ao invés do petróleo cru; produtos industrializados ao invés de matérias-primas. Ora, não é investindo em uma nova versão de reserva de mercado, como parece pretender Lula, que isso vai acontecer. Conteúdo nacional mínimo pode ser extremamente prejudicial se houver erro na dosagem. Foi o que ocorreu com a indústria naval, embora o presidente se recuse a reconhecer.

É senso comum que a preocupação do governo vem em boa hora, pois a desindustrialização precoce do Brasil, se não for interrompida, ameaça consolidar no País a mediocridade da renda média e da baixa produtividade. No entanto, é preciso definir com mais rigor técnico e menos voluntarismo ideológico qual seria o melhor caminho para atingir esse objetivo. Tome-se o exemplo da anunciada intenção de incentivar a produção de carros ditos “populares”. Pouco depois da fanfarra do anúncio, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tratou de dizer que o programa duraria apenas alguns meses, deixando claro o caráter provisório da medida. Ora, não é com gambiarras como essa que se faz uma política industrial digna de ser levada a sério.

Como lembrou o economista e ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga, a indústria tem perdido participação no PIB nacional independentemente dos inúmeros benefícios recebidos, com destaque para o crédito subsidiado do BNDES, proteção contra a concorrência estrangeira e incentivos tributários. “Claramente o espectro do desenvolvimentismo fracassado está de volta”, diz ele.

O que a economia brasileira precisa com urgência é de um modelo perene de crescimento, pensado com base em nossas capacidades reais e com visão de efeito a longo prazo. Enquanto continuar a pensar pequeno, com medidas provincianas como a do carro “popular”, estaremos condenados à mediocridade.

Cade ‘à la carte’

O Estado de S. Paulo

Rever os termos do acordo de venda de refinarias da Petrobras desmoraliza a atuação do Cade

A Petrobras pediu ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para rever os termos de um acordo firmado há quatro anos, no qual a companhia se comprometeu a vender oito refinarias para encerrar uma investigação sobre práticas anticompetitivas. “O mercado é dinâmico, as coisas mudam, e o TCC (Termo de Cessação de Conduta) é uma visão estanque naquele momento. A revisão sempre aconteceu no Cade, não tem nada de estranho nisso”, disse o presidente do Cade, Alexandre Cordeiro. Neste caso em particular, no entanto, não foi o mercado que mudou, mas o governo e a diretoria da Petrobras, enquanto o Cade, lamentavelmente, continua o mesmo.

Durante a administração de Michel Temer, a Petrobras anunciou um ambicioso plano de venda de ativos. O objetivo era reduzir um endividamento que havia assumido proporções gigantescas no governo Dilma Rousseff e concentrar atividades em segmentos mais rentáveis, como a exploração e produção do pré-sal. Essas diretrizes, mantidas na Presidência de Jair Bolsonaro, deram origem ao acordo mencionado pelo presidente do Cade.

É interessante, no entanto, resgatar o que teria motivado esse acordo. Em tese, tudo começou com uma denúncia de importadores de combustíveis, que acusaram a Petrobras de praticar preços inferiores aos seus custos para inviabilizar as atividades dos concorrentes. É o tipo de conduta anticompetitiva que demanda atuação do Cade, e assim foi aberta uma investigação para apurar a conduta da companhia.

Por meio do acordo firmado em junho de 2019, a Petrobras livrou-se das pesadas multas que o inquérito lhe poderia impor caso a conduta ilícita fosse confirmada. Isso já seria bastante vantajoso, mas a companhia obteve ainda o aval formal de um órgão de Estado para vender o que já planejava vender. Não passou despercebido o fato de que nenhuma das oito refinarias a serem vendidas ficava em São Paulo ou no Rio de Janeiro, mercados dos quais a companhia não queria abrir mão voluntariamente.

Cordeiro ainda não era presidente do Cade, mas já ocupava o cargo de superintendente-geral do órgão. À época, mostrou-se muito satisfeito com a conclusão do processo, “um momento histórico para a economia brasileira”. Hoje, no novo cargo, não descarta rever o acordo e prega que “o Cade defende, no final do dia, o consumidor brasileiro”.

O prazo para o cumprimento do acordo se encerraria no fim de 2021, mas foi prorrogado algumas vezes. Ainda assim, a companhia conseguiu vender apenas três das oito refinarias. Sob o governo Lula, no entanto, a Petrobras mudou de rota rumo ao atraso, substituindo a paridade internacional por uma política de preços opaca o suficiente para fazer o que bem entender e anunciando planos de retomar investimentos em refino, inclusive no exterior.

Vindo de administrações petistas, nada disso é surpresa. O que espanta é a facilidade com que o Cade se deixou usar pelos governos de plantão. Se os termos do primeiro acordo já eram suficientemente questionáveis, revê-los, no contexto atual, desmoralizará ainda mais a atuação do Cade.

Espaço aberto para o fim do aperto monetário

Valor Econômico

Freio dos juros já produziu efeitos esperados, esfriando para valer a demanda doméstica

O PIB do primeiro trimestre deixou a porta aberta para que o Banco Central sinalize o início do movimento de queda da taxa de juros. Os números mostraram que, no que depender dos setores diretamente afetados pela política monetária, o freio já produziu efeitos esperados, esfriando para valer a demanda doméstica, que contribuiu negativamente com 0,5 ponto percentual para o resultado final. A agropecuária, com sua irradiação pelo setor industrial e de serviços, foi a grande força motora de um crescimento de 1,9% no primeiro trimestre.

Há vários fatores que indicam, mas não garantem, que os impactos esperados de um dos maiores ciclos de aperto monetário foram atingidos, ou estão perto disso. Em julho de 2022, quando o IPCA atingiu 10,07%, refletia uma taxa Selic doze meses antes de apenas 3,50%, com enorme juro negativo real. Não é mais o caso. O IPCA de 4,18%, em doze meses até maio, já é produto de uma taxa básica de 12,75%, com taxa real muito elevada, acima de 8%.

Com isso, como o PIB registrou, o consumo das famílias avançou apenas 0,2% no primeiro trimestre do ano, em relação ao trimestre anterior. Os investimentos, que poderiam implicar aumento da demanda imediata, recuaram 3,4%. A comparação interanual revelou que o movimento também foi de baixa, para 17,7% do PIB, ante 18,4% no primeiros três meses de 2022.

Os preços dos serviços deram um salto após o fim da pandemia, em um movimento que se prolongou, mas dão sinais de amortecimento, em acordo com a queda da atividade. A agricultura puxou o subsetor de transportes e armazenamento, mas, no que importa para a política monetária, o item outros serviços, onde estão incluídos os serviços prestados à família, recuou 0,5% na ponta.

No lado da oferta, a pressão inflacionária também parece diminuir. A indústria continua andando de lado, enquanto os preços do setor estão desabando. O Índice de Preços ao Produtor, da FGV, que mede todos os setores, mas tem peso grande da manufatura, apresenta redução pelo terceiro mês consecutivo, com baixa relevante de 4,63% em 12 meses encerrados em abril. É uma das maiores deflações desde que o índice começou a ser mensurado, em 1945.

A influência do setor agropecuário na inflação depende muito das cotações externas, pelo peso do país no mercado internacional, mas a principais commodities, como soja, carnes e milho estão com preços cadentes, mais de 20% em um ano. Com a perspectiva de redução do comércio global e de crescimento menor nas principais economias consumidoras, incluindo a China, a estimativa é de que não haverá alta de preços suficiente para empurrar a inflação doméstica para frente. A queda do índice de commodities do Banco Central em abril, no acumulado do ano, foi de 7,25% e, em doze meses, de 13,4%. Metais e energia pesam mais na baixa acentuada - respectivamente 22,7% e 33,7%.

Os alimentos continuam caros, mas podem baixar com a supersafra a caminho. Em maio, subiram acima do índice geral, mas no acumulado do ano (1,53%) sua evolução é mais comedida que em 2022. A perspectiva de preços não depende só do passado (grande produção), mas do futuro. Condições climáticas muito adversas não estão previstas até agora, mas o tempo sempre pode mudar. Em relação a preços dos insumos para o plantio, os dos fertilizantes tiveram queda expressiva, o que não era de se esperar com a guerra da Rússia contra a Ucrânia, ambos grandes produtores com participação decisiva nos mercados.

Dada a tendência de queda da inflação, produzida pelo aperto monetário, o que poderia dar errado? As expectativas estão convergindo para a meta, embora lentamente. Elas estão muito pautadas pela questão fiscal, que melhorou com a aprovação quase certa do novo regime, embora ele não seja o dos sonhos de economistas ortodoxos. A perspectiva de descontrole sumiu do horizonte, embora a dívida bruta continuará a subir.

Quando a inflação ultrapassou 10% em um ano, a relação câmbio-preço das commodities, muito influenciada pelo do petróleo, favoreceu a pressão nos preços. O dólar, porém, há semanas ensaia ficar abaixo dos R$ 5. No ano, ele recuou mais de 6% em relação ao real, a moeda de melhor desempenho entre as emergentes recentemente. O acordo para a elevação do teto da dívida nos EUA tende a dar força ao dólar, assim como a possibilidade de encerramento do ciclo de alta dos juros pelo Fed.

Há bons motivos para que o BC dê um sinal cauteloso de inversão do ciclo. A expectativa de que o Conselho Monetário Nacional sancione a prática que se tornou corrente de não perseguir a meta de inflação segundo o ano calendário, mas ao longo do tempo, em período compatível com a política monetária, ajudará o BC a cumprir o objetivo. O perigo maior, se o IPCA mostrar um figurino bem comportado, é o governo se sentir liberado para gastar mais. É um risco real, mas como o jogo das expectativas tem como base promessas de cumprimento do novo regime fiscal, com todas suas falhas, ele pode não se materializar a curto prazo.

 

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