segunda-feira, 5 de junho de 2023

Roberto Livianu - A lei do mais forte, sem pudor

O Estado de S. Paulo

Perderam-se os limites e as regras são violadas à luz do dia, sem cerimônia e sem preocupação com as consequências, pois a impunidade está garantida, até por lei

Parlamentares, ao votar o arcabouço fiscal, declararam que o faziam pelo Brasil rindo desavergonhadamente, escancarando o toma lá dá cá geral da República. Os Ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Originários, bandeiras de campanha do atual governo, foram destroçados pelo Congresso, sem anestésico e com aquiescência da Presidência – que estendeu tapete vermelho ao ditador venezuelano, registrando-se agressão à jornalista Delis Ortiz, sob silêncio do Planalto.

Enquanto isso, nasce a maior anistia da história a partidos políticos, assassinando o princípio constitucional da isonomia. Transparência, regras de financiamento da política, ações afirmativas garantidoras de espaços de poder para negros e mulheres viram pó. Todos devem cumprir a lei, menos os intocáveis partidos e seus coronéis.

Projeto já aprovado na Câmara, hoje no Senado, prevê hospitalidades sem limites de particulares a agentes públicos na regulação do lobby: voo em classe executiva, hospedagem em hotel sete estrelas em Dubai ou Paris em quaisquer eventos, com massagens e alimentação regada a lagosta e champanhe. É a corrupção ultralegalizada.

A Lei das Estatais nasceu em 2016 como fórmula jurídica medicamentosa para o rombo bilionário da Petrobras, impondo blindagem contra o compadrio secular reinante nas estatais e sociedades de economia mista. Conselheiros e diretores devem ser escolhidos de forma regrada e com quarentena, para preservar a eficiência de gestão.

Quarentena é vacina republicana que deveria existir em relação a todos os cargos poderosos. Membros do Ministério Público (MP), desde o procurador-geral da República, deveriam se submeter a ela, assim como membros do Judiciário (inclusive ministros do Supremo Tribunal Federal, o STF), conselheiros e ministros de Tribunais de Contas, para protegermos a sociedade de conflitos de interesses. Deveria ser algo elementar numa democracia republicana há mais de 130 anos.

Mas o que se vê é a obsessão por fulminar as quarentenas, tanto no campo legislativo, desidratando a Lei das Estatais, como na arena judicial, procurando construir reinterpretações convenientes.

O presidente da Câmara é eleito sem debate público e o ungido é entronado com elevadíssimos poderes, com potencial de trancar a República – ali se decide, por exemplo, se terão ou não seguimento eventuais pedidos de impeachment formulados contra o presidente da República e as camadas mais intestinas dos bilhões opacos do orçamento secreto.

Nosso sistema de separação de poderes respira há anos por aparelhos, caminhando o Brasil a passos firmes para virar autocracia, segundo o Instituto V-Dem de Gotemburgo. A impressão é de que se estão perdendo os limites relacionados ao respeito à lei e à segurança jurídica. Se necessária uma nova regra, providencia-se e se aprova de boiada, pouco importando o que o povo pensa dela, assim como o tempo de vigência da lei anterior.

Propostas apoiadas pela sociedade, por outro lado, como o fim do foro privilegiado, candidaturas independentes ou a prisão após condenação em segundo grau (praticada em todo o mundo ocidental democrático) são solenemente desprezadas e emboloram trancafiadas na gaveta da presidência da Câmara.

Um ex-governador acumulando mais de 400 anos de condenações em 23 processos por corrupção confessa é solto pelo STF, tribunal que em tempo recente tomou decisões vitais em defesa do regime democrático. Entretanto, vai longe o tempo em que a previsão ou regulação de alguma matéria por lei gerava efeitos confiáveis ou previsíveis. Hoje, a lei deixou de ser fonte segura do Direito, importando muito mais algumas interpretações judiciais que se fazem de acordo com certas circunstâncias.

O poder das pessoas que são julgadas e as circunstâncias de momento, muitas vezes, são decisivos, e é muito atual a lógica do pensamento do filósofo Ortega y Gasset: o homem é o homem e suas circunstâncias.

O uso abusivo do poder, visando ao autobenefício, é retratado nas letras clássicas de Raymundo Faoro e apontado nos informes do instituto chileno Latinobarómetro, levando-nos a discursos inflamados de figuras poderosas em prol do nepotismo, como suposta prática ética exemplar. Governadores estão escalando as esposas conselheiras nos respectivos Tribunais de Contas.

Pudor virou peça de museu: parlamentar assedia sexualmente colega em plenário, e não é cassado; e outro é pego com R$ 33 mil no interior das nádegas, e absolutamente nada acontece no Conselho de Ética. Ao mesmo tempo, o Congresso Nacional já cogitou subjugar o STF nas decisões não unânimes e quis escolher o corregedor nacional do MP, além de permitir que o Conselho Nacional do Ministério Público interferisse em investigações de promotorias.

Sente-se com amargor as instituições enfraquecidas, o tecido social esgarçado, a erosão da democracia e da credibilidade. Perderam-se os limites e as regras são violadas à luz do dia, sem cerimônia e sem qualquer preocupação com as consequências, porque a impunidade está garantida, inclusive por lei.

Temos a sensação de que vivemos num ambiente de uma espécie de anarquia corrupta, arrogante e insensível aos 50% da população sem saneamento básico. Insensível aos miseráveis famintos, com cidadania faz de conta, sob a vigência da lei da selva, em que sobrevivem apenas os mais fortes e poderosos. Estamos em meio a uma espécie de salve-se quem puder.

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