O Estado de S. Paulo
Perderam-se os limites e as regras são violadas à luz do dia, sem cerimônia e sem preocupação com as consequências, pois a impunidade está garantida, até por lei
Parlamentares, ao votar o arcabouço fiscal,
declararam que o faziam pelo Brasil rindo desavergonhadamente, escancarando o
toma lá dá cá geral da República. Os Ministérios do Meio Ambiente e dos Povos
Originários, bandeiras de campanha do atual governo, foram destroçados pelo Congresso,
sem anestésico e com aquiescência da Presidência – que estendeu tapete vermelho
ao ditador venezuelano, registrando-se agressão à jornalista Delis Ortiz, sob
silêncio do Planalto.
Enquanto isso, nasce a maior anistia da história a partidos políticos, assassinando o princípio constitucional da isonomia. Transparência, regras de financiamento da política, ações afirmativas garantidoras de espaços de poder para negros e mulheres viram pó. Todos devem cumprir a lei, menos os intocáveis partidos e seus coronéis.
Projeto já aprovado na Câmara, hoje no
Senado, prevê hospitalidades sem limites de particulares a agentes públicos na
regulação do lobby: voo em classe executiva, hospedagem em hotel sete estrelas
em Dubai ou Paris em quaisquer eventos, com massagens e alimentação regada a
lagosta e champanhe. É a corrupção ultralegalizada.
A Lei das Estatais nasceu em 2016 como
fórmula jurídica medicamentosa para o rombo bilionário da Petrobras, impondo
blindagem contra o compadrio secular reinante nas estatais e sociedades de
economia mista. Conselheiros e diretores devem ser escolhidos de forma regrada
e com quarentena, para preservar a eficiência de gestão.
Quarentena é vacina republicana que deveria
existir em relação a todos os cargos poderosos. Membros do Ministério Público
(MP), desde o procurador-geral da República, deveriam se submeter a ela, assim
como membros do Judiciário (inclusive ministros do Supremo Tribunal Federal, o
STF), conselheiros e ministros de Tribunais de Contas, para protegermos a sociedade
de conflitos de interesses. Deveria ser algo elementar numa democracia
republicana há mais de 130 anos.
Mas o que se vê é a obsessão por fulminar
as quarentenas, tanto no campo legislativo, desidratando a Lei das Estatais,
como na arena judicial, procurando construir reinterpretações convenientes.
O presidente da Câmara é eleito sem debate
público e o ungido é entronado com elevadíssimos poderes, com potencial de
trancar a República – ali se decide, por exemplo, se terão ou não seguimento
eventuais pedidos de impeachment formulados contra o presidente da República e
as camadas mais intestinas dos bilhões opacos do orçamento secreto.
Nosso sistema de separação de poderes
respira há anos por aparelhos, caminhando o Brasil a passos firmes para virar
autocracia, segundo o Instituto V-Dem de Gotemburgo. A impressão é de que se
estão perdendo os limites relacionados ao respeito à lei e à segurança
jurídica. Se necessária uma nova regra, providencia-se e se aprova de boiada,
pouco importando o que o povo pensa dela, assim como o tempo de vigência da lei
anterior.
Propostas apoiadas pela sociedade, por
outro lado, como o fim do foro privilegiado, candidaturas independentes ou a
prisão após condenação em segundo grau (praticada em todo o mundo ocidental
democrático) são solenemente desprezadas e emboloram trancafiadas na gaveta da
presidência da Câmara.
Um ex-governador acumulando mais de 400
anos de condenações em 23 processos por corrupção confessa é solto pelo STF,
tribunal que em tempo recente tomou decisões vitais em defesa do regime
democrático. Entretanto, vai longe o tempo em que a previsão ou regulação de
alguma matéria por lei gerava efeitos confiáveis ou previsíveis. Hoje, a lei
deixou de ser fonte segura do Direito, importando muito mais algumas interpretações
judiciais que se fazem de acordo com certas circunstâncias.
O poder das pessoas que são julgadas e as
circunstâncias de momento, muitas vezes, são decisivos, e é muito atual a
lógica do pensamento do filósofo Ortega y Gasset: o homem é o homem e suas
circunstâncias.
O uso abusivo do poder, visando ao
autobenefício, é retratado nas letras clássicas de Raymundo Faoro e apontado
nos informes do instituto chileno Latinobarómetro, levando-nos a discursos
inflamados de figuras poderosas em prol do nepotismo, como suposta prática
ética exemplar. Governadores estão escalando as esposas conselheiras nos
respectivos Tribunais de Contas.
Pudor virou peça de museu: parlamentar
assedia sexualmente colega em plenário, e não é cassado; e outro é pego com R$
33 mil no interior das nádegas, e absolutamente nada acontece no Conselho de
Ética. Ao mesmo tempo, o Congresso Nacional já cogitou subjugar o STF nas
decisões não unânimes e quis escolher o corregedor nacional do MP, além de
permitir que o Conselho Nacional do Ministério Público interferisse em
investigações de promotorias.
Sente-se com amargor as instituições
enfraquecidas, o tecido social esgarçado, a erosão da democracia e da
credibilidade. Perderam-se os limites e as regras são violadas à luz do dia,
sem cerimônia e sem qualquer preocupação com as consequências, porque a
impunidade está garantida, inclusive por lei.
Temos a sensação de que vivemos num
ambiente de uma espécie de anarquia corrupta, arrogante e insensível aos 50% da
população sem saneamento básico. Insensível aos miseráveis famintos, com
cidadania faz de conta, sob a vigência da lei da selva, em que sobrevivem
apenas os mais fortes e poderosos. Estamos em meio a uma espécie de salve-se
quem puder.
Nenhum comentário:
Postar um comentário