O Globo
O elogio a Maduro é só a superfície. No
fundo, a esquerda volta as costas a quem a apoiou, enquanto os conservadores se
agrupam com eficácia
No final do século passado, cobri o êxodo
dos refugiados do comunismo albanês nos portos da Itália. Em seguida, viajei
pelos países bálticos que acabavam de se liberar. Virou o século, e viajei
algumas vezes para Pacaraima, onde entrevistei centenas de refugiados da
ditadura venezuelana.
A compreensão da violência desses regimes é
parte de minha experiência pessoal, para além da teoria e dos livros. Não é
minha tarefa argumentar com quem ainda tem uma visão romântica do comunismo.
Muito menos convencer políticos e diplomatas experientes que envelheceram com
suas convicções ideológicas inabaláveis.
Ao receber Maduro com pompa e afirmar que
as acusações contra a Venezuela são apenas narrativas, Lula sabia
das consequências. Como dizemos na economia, a repercussão negativa já estava
precificada. Uma das vertentes da discussão é precisamente discutir esse preço,
abstendo-se de repisar os argumentos que nos distanciam.
É uma ilusão imaginar que a defesa do regime chavista afasta apenas o centro e a direita. O presidente do Chile, Gabriel Boric, não concorda com ele, e é preciso muito malabarismo para excluí-lo do campo da esquerda.
A objeção mais comum à fala de Lula é a
dissolução da ideia de frente democrática nesse tópico da política externa.
Isto é um velho problema da esquerda: a suposição de que um programa partidário
possa substituir uma síntese das aspirações nacionais em nossa projeção no
exterior.
Ao escolher a exaltação de Maduro, como se
tudo dependesse de narrativas, e não de fatos, aliás uma tese da extrema
direita, o governo Lula paga um preço. E, no meu entender, está aí o erro de
cálculo.
É possível argumentar que política externa
não mobiliza o povo. No entanto, quando se trata de defesa da democracia, o
tema transcende a política externa e nos joga no coração da luta nacional.
Indiferente à real correlação de forças, o governo, nesse particular, marcha
para o abismo, cavando o fortalecimento da extrema direita.
Na verdade, muitos votaram contra Bolsonaro
para preservar a democracia. Se a alternativa vitoriosa revela com tanta
contundência que não dá a mínima para a democracia, isso significa uma grande
solidão. Não tem sentido, para o grande contingente de democratas de verdade,
apenas reclamar da sorte, mas sim compreender a necessidade de encontrar um
caminho.
Não há saídas fáceis. Sem uma frente
democrática na atual conjuntura, aumentam muito as chances da extrema direita.
É impossível abrir mão da força da esquerda, independentemente do estágio de
seu desenvolvimento. A oscilação entre correntes políticas que não valorizam a
democracia parece ser o destino do Brasil, principalmente porque nas eleições
conta muito o carisma do candidato.
O expoente da extrema direita está para ser
afastado das eleições. Vai ajudar. Mas há o avanço conservador na Câmara,
esvaziando a estrutura ambiental do governo, impondo o marco temporal na
demarcação das terras indígenas, autorizando a devastação da Mata Atlântica —
isso mostra não apenas derrotas do governo, mas de todos os setores que o
apoiaram nas eleições.
Se ignoramos as possibilidades de ampliar a
base democrática, estaremos sempre caminhando para trás. Lula sugeriu ter
compreendido isso na campanha. Uma vez eleito, parece mais interessado em
ajustar contas com seus impulsos ideológicos, defendendo a ditadura
venezuelana, ou em suas pretensões pessoais, indicando o próprio advogado para
o STF.
Arrisco dizer que a recepção e o elogio a
Maduro são apenas a superfície. No fundo, parece que a esquerda no poder não
consegue analisar o momento com precisão, voltando as costas a democratas que a
apoiaram, enquanto as forças conservadoras se agrupam com grande eficácia no
Congresso. Tempos difíceis nos esperam.
2 comentários:
Excelente
É isso aí.
Postar um comentário