Folha de S. Paulo
A atual configuração de forças não é
impeditiva apenas para o aborto
O governo passou
aperto na Câmara na semana passada. A oposição está com a faca nos dentes.
Sobretudo em tema que lhe é caro, a moral privada. Aí é nula a chance de
entendimento.
Os primeiros governos Lula dão
testemunho. A regulamentação do aborto, tentada
nos dois mandatos, malogrou. A aliança com o ativismo feminista foi
insuficiente face à resistência. Movimentos sociais contrários se organizaram e
protestaram, com a Marcha Nacional da Cidadania pela Vida e a Marcha contra a
Legalização do Aborto. Era o braço da sociedade.
O outro operava no Congresso. A Campanha Nacional por um Parlamento em Defesa da Vida e frentes parlamentares de nomes variados ("contra a legalização do aborto", "da família e apoio à vida", "em defesa da vida") foram uníssonas na guerra ao aborto. Esses braços, o institucional e o societário, contavam com pernas religiosas —e não só as evangélicas.
Dilma
Rousseff foi pressionada a nem pautar o assunto e sofreu
contínuo chauvinismo misógino ao longo de seus mandatos.
Os anos Bolsonaro foram
o reinado do tradicionalismo, com as feministas hostilizadas e os movimentos
antiaborto incorporados ao governo. Uma de suas lideranças ganhou ministério de
nome condizente, o da Família. O fato de Damares Alves ser
agora senadora evidencia que nada disso é página virada. A questão de gênero
nunca saiu da agenda e segue tão divisiva como antes.
A
atual configuração de forças não é impeditiva apenas para o aborto. A
resistência aos direitos das mulheres é palpável até na etiqueta dos debates
políticos.
As sessões de comissões e CPIs são
termômetro de que o simples respeito às parlamentares anda difícil. Na semana
passada, a
deputada Sâmia Bomfim foi duplamente silenciada, pelo tenente-coronel
Zucco e pelo ex-ministro Ricardo
Salles. O delegado Éder Mauro já fizera o mesmo com Talíria Petrone. Não é
acaso, é reiteração da truculência bolsonarista contra as mulheres.
A indicação de Eliziane Gama para comandar
a comissão dos atos golpistas soa como prova de novos tempos. Mas
ganhou o cargo porque é espinhoso a ponto de queimar uma reputação. E, como
logo chegarão à senadora os apupos distribuídos às deputadas, seria até o caso
de se poupar. Mas, a
própria explicou a esta Folha,
cargo desta relevância uma mulher não pode se dar ao luxo de recusar.
Poucos são os postos altos de fato
acessíveis. A ministra Rosa Weber o
frisou ante
a nova indicação para o STF: "Temos muitas mulheres na base da
magistratura", mas, "nos tribunais superiores, o número é
ínfimo". Há sempre uma boa razão circunstancial para preterir as mulheres,
sem negar a igualdade de gênero como princípio. E, de circunstância em
circunstância, fica tudo como está. E assim lá
vai mais um homem para o Supremo.
No caso Sâmia, o Ministério Público
Eleitoral abriu investigação. Mas haverá punição? Na legislatura passada, o
mesmo Éder Mauro avisou Maria do Rosário e Fernanda Melchionna: "E vou
dizer mais, senhoras deputadas de esquerda: eu, infelizmente, já matei sim, não
foi pouco, não, foi muita gente. Tudo bandido. Queria que estivessem aqui para
discutir olho no olho. Vão dormir e esqueçam de acordar!".
Como nada se fez ante a medonha ameaça, o
deputado concluiu aquele mandato e ganhou o novo. Aí está, leve e solto,
exibindo seu barbarismo em pleno Parlamento.
*Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento
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