O Estado de S. Paulo
Além de reafirmar o lugar do trabalho nas
sociedades de informação, Biden e Lula demonstram saber que é preciso atrair os
que se sentem deixados de lado na globalização
Para os adeptos de choques frontais, a
passada guerra fria terá sido uma época dourada cujos cacoetes e hábitos
mentais carregarão pela vida afora. De fato, capitalismo e comunismo se
enfrentavam como sistemas quase fechados e antagônicos num jogo de soma zero. A
passagem de um país ao “campo socialista” era uma perda irreversível para o que
se chamava de mundo livre, prenunciando um catastrófico efeito dominó, uma vez
que outras peças logo seriam derrubadas num movimento sem volta. E posições
como a dos não alinhados patinavam sem maior identidade, em busca de uma jamais
bem definida via não capitalista de desenvolvimento.
Os atores desse drama tiveram sua dose de razão, quando menos até o ponto em que a rivalidade russo-chinesa, estrategicamente explorada por Nixon-Kissinger, fragmentou o tal campo socialista. Mas antes disso, bem menos visível, a derrota daquele comunismo estava como que inscrita nas coisas. Não importa, aqui, o impacto geral da Revolução
Russa, inclusive na vitória sobre o nazismo e
no aprofundamento das democracias ocidentais – o fato é que, com as estruturas
moldadas pelo stalinismo, a batalha propriamente hegemônica estava desde logo
perdida. De um ponto de vista civilizatório, eram pouco atraentes um
partido-Estado absoluto e uma sociedade civil vigiada, incapaz de pensar e agir
por conta própria.
No entanto, simultaneamente ao malogro da
URSS, a longa marcha do socialismo de Estado chinês não se deteve, fazendo com
que os partidários da confrontação passassem a deslocar a data mágica da
ruptura de 1917 para 1949. De fato, enquanto o sistema soviético se mostrava
incapaz de se atualizar tecnologicamente, a não ser no âmbito militar, com as
reformas de mercado da era Deng Xiaoping a China Popular demonstraria dinamismo
crescente. Chegada a hora da globalização, estava pronta para aproveitar as
possibilidades que esta lhe abria, integrando-se à economiamundo e dando lastro
e rosto à mencionada via não capitalista, ao menos no plano das intenções e das
justificativas.
O mundo que agora habitamos é
qualitativamente novo, com riscos e perigos inéditos. Há todo um léxico
recentíssimo – desacoplagem, near e friendshoring, etc. – que busca dar conta
do grave recuo da integração das economias e, portanto, do seu caráter
tendencialmente cosmopolita. O conflito entre a potência dominante e a potência
emergente parece caber como uma luva no modelo estabelecido pela multissecular
“armadilha de Tucídides”. E os focos de guerra ou já estão acesos, como na
bárbara invasão da Ucrânia, ou podem surgir de uma hora para outra.
Os mais recentes guerreiros frios apregoam,
de um lado, a decadência do Ocidente, incapaz de reviver o heroísmo da sua fase
formativa e já definitivamente entregue à dissolução moral. De outro, na nossa
margem do mundo, afirmam uma contraposição pura e dura entre democracia e
autocracia, como se nossas democracias, elas mesmas, não estivessem sofrendo com
a perda do centro de gravidade e a consequente difusão dos extremismos de tipo
nacional-populista, de que Donald Trump é a face mais ameaçadora.
Expressão imperfeita, mas ainda assim
essencial, do cosmopolitismo da política, a ONU é um desses palcos cuja quarta
parede termina por ser explicitamente devassada por um público global. O que lá
se passa tem dimensão simbólica evidente. Líderes políticos não são
propriamente teóricos – e raramente convém que o sejam, sob o risco de nos
virmos sob a mão pesada de guias geniais –, mas o que dizem tem importância e
significação. Com oscilações e ambiguidades, apresentam em cena aberta
sentimentos e aspirações profundos. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por
exemplo, deu oportuna indicação, ao apontar a desigualdade como a fonte
decisiva do conflito moderno e, ao mesmo tempo, celebrar a democracia
(política) como o meio por excelência para vencê-la e também superar “o ódio, a
desinformação e a opressão”.
Associando a luta pela igualdade e a
democracia política como terreno privilegiado desta mesma luta, o presidente
brasileiro afasta-se, afortunadamente, tanto dos “aventureiros de extrema
direita”, que menciona, quanto dos de extrema esquerda, que por lapso não
menciona. Na mesma viagem, precioso o encontro com o presidente Joe Biden, em
que os direitos do trabalho na reconfiguração da economia foram colocados no
centro das preocupações do democrata e do petista. Não é de hoje que a esquerda
brasileira precisa descobrir vida inteligente entre os liberals norte-americanos,
arquivando clichês sobre o imperialismo e descobrindo formas de cooperação.
Além de reafirmar o lugar do trabalho nas
sociedades de informação, os dois presidentes demonstram saber que é preciso
atrair os que se sentem deixados de lado na globalização. Trata-se de
compromissos que, adotados com coerência, contêm elementos essenciais daquela
disposição hegemônica para dar conteúdo social a todas as democracias,
revigorar as respectivas sociedades civis e projetá-las como capazes de superar
pacificamente novas e antigas autocracias.
*TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADORES
DAS OBRAS DE GRAMSCI NO BRASIL
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