Valor Econômico
A música sertaneja, surgida após uma
trajetória de transformações da música caipira, completa 100 anos, com um
precedente histórico que atravessa todo o período colonial
O gênero musical sertanejo ganha nova e
diferente notoriedade no upgrade de festival metropolitano que reúne 100 mil
pessoas. Nasceu na segunda metade dos anos 1920, na cidade de São Paulo. Está
chegando, portanto, ao centenário. Trata-se de uma longa trajetória do gênero
que resultou da transformação da música caipira em música sertaneja.
Seu precedente histórico atravessa todo o período colonial, expressando-se através de diferentes e sucessivas categorias sociais. Segundo Antonio Candido, uma das variantes originou-se de uma dança ritual indígena, como o cururu, que os jesuítas converteram na dança da Santa Cruz. Cuja cadência da marcha em dupla atrás dos violeiros, indo de frente e voltando de costas, em direção à porta da igreja e dela se afastando, ainda é claramente indígena.
Em primeiro lugar porque cururu, que em tupi
é sapo, era o modo como os índios diziam “cruz”, dada a dificuldade de
pronunciar consoantes dobradas da língua portuguesa, quando foram obrigados a
falar português com a proibição da língua geral em 1727. Foi o que aconteceu
com a palavra “orelha”, pronunciada “orêia” e “muié” para “mulher”.
Inseriam vogais que abrandavam a pronúncia
das ásperas palavras portuguesas. A vogal salvou o português-brasileiro dos
tropeços das consoantes.
Essa dança cristianizada acontecia ainda há
poucos anos em Carapicuíba, nos arredores de São Paulo. Há uma bela gravação do
cântico por Carmem Costa e o Coral da USP.
Outro desdobramento é o do cateretê, uma
variante do gênero caipira, também conhecida como catira, inspirada numa dança
indígena sagrada proibida às mulheres.
Como no caso do cururu, manifestação da
duplicidade na cultura caipira. Aqui no Brasil indicativo do duplo dizer
próprio da cultura caipira que se manteve na música sertaneja. Bronislaw
Malinowski estudou esse tema em sociedades colonizadas, elementos culturais
nativos refuncionalizados na cultura dominante.
Manifestação dessa duplicidade pode ser
observada em “Romaria”, de Renato Teixeira, uma bela combinação de palavras
desencontradas que se encontram na poesia de um duplo dizer: “Sou caipira,
pirapora, Nossa Senhora de Aparecida, ilumina a mina escura e funda o trem da
minha vida”.
A viola caipira aparece aqui como instrumento
estigmatizante de escravos, seres duplos divididos entre a fala mutilada e
fragmentária do ser não sendo, o do sim, e a fala do silêncio e do gesto, o do
não. Violeiros eram geralmente mulatos, como se vê nos anúncios de jornais de
escravos fugidos na segunda metade do século XIX.
É também o período em que o trabalho escravo
começa a ser substituído pelo trabalho livre do imigrante europeu,
especialmente do italiano e do espanhol. Essa mudança na composição da
população paulista alterou a estrutura social, na medida em que imigrantes
ricos também vieram para o Brasil ao mesmo tempo que os imigrantes pobres.
Os trabalhadores se diversificaram e os ricos
também. Os brasileiros ricos demonstraram nítida necessidade de referências
identitárias nativas. É o que dá sentido à apresentação de um violeiro
fluminense, Pedro Vaz, primo-irmão do poeta Fagundes Varela, em teatros de São
Paulo, Campinas e Lorena, em 1887. As elites encontraram na cultura caipira e
no indígena as bases de uma identidade social tradicional que lhes desse a
legitimidade da nobreza ancestral de um direito de nascença, em face dos
estrangeiros. A elite paulista era mameluca, mestiça de branco e índia.
Também a população trabalhadora imigrada da
roça para a cidade de São Paulo, desenraizada do comunitarismo rural e caipira,
encontrou na música sertaneja uma referência de identidade.
A cultura caipira tornou-se tema de
literatura e até de pesquisa na corrente regionalista de São Paulo. Como em
“Dialeto caipira”, de Amadeu Amaral, de 1920, com as revelações de outra lógica
no dizer popular, o duplo e o múltiplo: caso de tapera, lugar que já foi
habitado, não é mais, como lugar de quem se foi, mas ficou.
Como tema da culinária com o surgimento
urbano de pratos como o virado paulista, o virado caipira de feijão com farinha
de milho (e não de mandioca) também nos anos 1920. Servido nos restaurantes às
segundas-feiras, como prato do dia, como até hoje.
E na invenção da música sertaneja por
Cornélio Pires, que em 1929 gravou a “Moda do Bonde Camarão”, em que pela
primeira vez se expõe uma crítica social irônica baseada no pensamento
conservador popular da roça, isto é, no pressuposto do ser humana como pessoa e
todo e não como uma coisa, um mero e desprotegido passageiro. A cidade como
lugar das irracionalidades cômicas da sociedade moderna em confronto com a
tradição comunitária e religiosa do campo.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. É autor de, entre outros livros, “Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista” (Editora Unesp, São Paulo, 2023).
Um comentário:
Hahahahah
Orêia...
Muito bom!
Sempre uma ótima coluna do Professor.
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