Valor Econômico
Ter uma juventude sem perspectiva na
sociedade afeta a produtividade presente e, principalmente, futura da economia
brasileira
Tem sido muito raro construir consensos no
sistema político brasileiro atual. As relações entre o Executivo e o
Legislativo se tornaram mais complicadas desde o segundo governo Dilma, os
congressistas estão em constante embate com o STF e a sociedade está fortemente
polarizada. Mesmo assim, em determinados temas o conflito dá lugar à
cooperação. Esse é o caso da aprovação da poupança para alunos mais pobres do
ensino médio público.
Intitulado Pé de Meia, é um programa
fundamental para um grupo essencial para o presente e o futuro do país: a
juventude. Trata-se de uma excelente notícia, mas ao mesmo tempo revela uma
carência perigosa de ações à população mais jovem.
Não faltam prioridades num país tão complexo
e desigual como o Brasil. Mas há temáticas que deveriam merecer mais atenção
por conta de quatro fatores. O primeiro diz respeito ao número de pessoas de um
determinado grupo que estão numa situação social complicada.
Além disso, deve-se levar em consideração o
impacto sistêmico desse problema. Isto é, os vários males causados pela não
resolução de determinada questão. Um terceiro ponto também é central: como este
tema faz a ponte entre o presente e o futuro do país? Por fim, um aspecto
prioritário é aquele que pode modificar a forma de se ver e conduzir a
política, gerando um efeito bola de neve na agenda pública.
Segundo dados do IBGE, o número de jovens de 15 a 29 anos que nem estuda nem trabalha é de quase 11 milhões, totalizando cerca de 22% desse grupo populacional (mais de um quinto da população jovem). Num estudo recente da OCDE, o Brasil era o segundo país com mais jovens nem-nem entre 37 nações analisadas. A situação é muito ruim em ambos os gêneros, mas a maior parte dos nem-nem é composta por mulheres e, do ponto de vista social, pelo contingente mais pobre da população.
Esse retrato já é suficiente para apontar o
tamanho do problema da juventude brasileira. É verdade que já foi pior, e a
melhora teve a ver, nas últimas décadas, com a maior inclusão de jovens no
sistema educacional. Mesmo assim, cerca de 35% dos jovens de 15 a 18 anos estão
fora da escola, sendo o principal momento da evasão escolar brasileira.
Por que os jovens abandonam a escola? Por que
essa faixa etária é aquela com as maiores taxas de desemprego e informalidade?
Essas perguntas deveriam ser urgentemente enfrentadas, pois o efeito sistêmico
desse problema é muito danoso à sociedade. Mais jovens fora da escola e do
trabalho significa aumentar a mão de obra disponível à criminalidade - e o
crescimento estrondoso do crime organizado nas últimas décadas tem muito a ver
com as fragilidades da política para a população juvenil.
Bom que se diga que a juventude sofre aqui
nas duas pontas do problema: ela é sujeito e também objeto da violência social,
com grande número de homicídios de jovens, especialmente os mais pobres,
periféricos e negros. Ouvir as músicas dos Racionais é entender como esse duplo
processo perverso afetou a juventude da periferia paulistana, de onde vim.
Ter mais jovens sem perspectiva na sociedade
afeta a produtividade presente e, principalmente, futura da economia
brasileira. Uma boa parte desse grupo está em posições precárias, com destaque
importante para a ocupação de postos na economia uberizada dos aplicativos de
entrega e/ou transporte. Qual possibilidade de aprimoramento de habilidades e
competências laborais mais amplas terá essa parcela da população? Qual será seu
futuro, ou mesmo presente, em termos de proteção social?
Uma juventude com pouca experiência coletiva
em escolas ou no trabalho tende, ainda, a ter um processo mais precário de
formação de consciência cidadã. Soluções mágicas, quando não violentas, podem
se tornar o mantra político dessa faixa etária. O populismo de extrema direita
agradece.
Esse alijamento social facilita igualmente a
criação de uma geração de homens com autoestima prejudicada, talvez mais
tendente a mover-se pelo ressentimento em sua visão de mundo, ao passo que um
contingente expressivo de mulheres seguirá mais o caminho perverso da mãe solo
abandonada, grande chaga da sociedade brasileira, com poucas chances de
mobilidade social. Eis aqui um combustível para famílias se tornarem mais
instáveis e com forte potencial de se produzir violência doméstica,
majoritariamente voltada contra o gênero feminino.
É grande a lista de efeitos sistêmicos
derivados do fato de se ter uma ampla parcela da juventude desassistida por
políticas públicas efetivas. O resultado disso não afeta apenas o presente do
país. O Brasil sempre acreditou na máxima de que seríamos a nação do futuro.
Isso só é possível se crianças e jovens forem
prioridade, algo que só começou a acontecer em grande escala na história
brasileira a partir da Constituição de 1988 e da expansão subsequente do Estado
de bem-estar social nos períodos FHC e Lula, com avanços inegáveis, mas que
ainda são claramente insuficientes frente às nossas necessidades.
O maior exemplo disso é que se abriu nas
últimas décadas uma janela demográfica que permitiria maior produção de
riqueza. Parte dessa oportunidade foi concretizada, só que o país aproveitou,
por ora, muitíssimo menos essa fortuna sociológica do que poderia. Em boa
medida porque investiu pouco e de forma ineficiente na formação e qualidade de
vida da população jovem.
Desse modo, aquilo que era um bônus pode se
transformar naquilo que o economista Marcelo Neri tem chamado de “ônus
demográfico”, um modo sutil de definir a quebra da ponte entre o presente e o
futuro.
Produzir boas políticas públicas para a
juventude, ademais, pode ser uma boa forma de se mudar a qualidade do debate
político. É possível acompanhar as ações e resultados de programas voltados aos
mais jovens, aferindo com certa rapidez o sucesso, fracasso, problemas e
aprendizados nesse processo. Assim, a discussão deixa de ser orientada
basicamente por argumentos ideológicos quase sempre referenciados a grupos
insulados, aumentando as chances de ser uma contenda mais aberta a opiniões
baseadas em evidências, com maior probabilidade inclusive de haver
convencimentos e consensos entre setores diferentes da sociedade.
Além disso, discutir o presente e o futuro
dos mais jovens por meio de diagnósticos e prognósticos claros é muito mais
proveitoso para o país do que gastar um enorme tempo com querelas sobre valores
pessoais, uma vez que o debate sobre estes últimos é quase nada efetivo na
transformação da realidade social e econômica brasileira. Também vale ressaltar
que o tema da juventude, pensado pelo ângulo das políticas públicas, tende a
dividir menos os grupos políticos do que as grandes questões econômicas ou de
cunho moral.
Colocar a juventude no centro do debate
público é uma forma de envolvê-la e transformá-la. Na atual situação de
carência e pouca perspectiva de melhora futura, o risco dela se alienar da
participação ou de amarrar-se a posições populistas de extrema direita é muito
factível e perigoso. Uma geração de jovens que vira prioridade e que se torna
sujeito desse projeto transformador é uma receita importante para alterar a
política presente e vindoura, gerando líderes que apontem a possibilidade de
renovação do país.
A aprovação do programa Pé de Meia foi um
jogo de soma positiva que envolveu múltiplos atores. Méritos devem ser
divididos pelos presidentes da Câmara e do Senado, pelo ministro da Educação,
pela deputada Tabata Amaral e pela ministra Simone Tebet (mães dessa ideia há
algum tempo), pela racionalidade adotada pela oposição - majoritariamente
bolsonarista - e pela liderança do presidente Lula, que abraçou o projeto.
Mas isso deveria ser só o começo de um
processo que deve se orientar, primeiro, por uma perspectiva intersetorial e de
longo prazo, dado que a melhoria das condições juvenis vai além da questão
educacional, passando por temas como esporte, cultura, saúde, segurança pública
e orientação para o trabalho - e aqui a educação profissional deveria ser uma
prioridade máxima.
O segundo passo é adotar uma governança
colaborativa das políticas para a juventude, congregando os entes federativos e
atores sociais - como ONGs, igrejas, empresas etc. - porque nenhuma mudança de
larga escala será realizada sem esforços amplos e conjuntos.
Terminando esse ciclo virtuoso, é necessário
ter um modelo muito bem definido de implementação de políticas públicas,
incluindo aí formas contínuas de avaliação e aprendizado, bem como a consulta
regular dos jovens e suas famílias.
Em geral, os governos funcionam mais pela
lógica setorial do que pela organização sistêmica de um problema. Uma forma
efetiva de mudar a realidade - embora não seja a única e nem contrária às áreas
de políticas públicas - é organizar a ação estatal por grupos sociais.
Políticas para idosos, pessoas com deficiência e para mulheres, por exemplo,
são essenciais e têm avançado, gradativamente, no Brasil. Porém, no campo da
juventude os avanços foram muito menores em termos de organicidade e
coordenação da enorme fragmentação de programas.
É urgente que tenhamos um plano integrado com
uma definição de uma governança colaborativa e de longo prazo para os jovens
brasileiros, antes que eles envelheçam mais pobres e vulneráveis ou morram pelo
meio do caminho. Perder essa oportunidade agora é reduzir nossa estatura
política e moral como construtores de um futuro melhor aos nossos filhos e
netos.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
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