segunda-feira, 30 de setembro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Ataque a Hezbollah era necessário para conter ameaça

O Globo

Agora, para conter danos aos civis e obter reféns de volta, as partes devem buscar um cessar-fogo

Horas depois do monstruoso ataque terrorista do grupo palestino Hamas em 7 de outubro do ano passado, quando nem se sabia ao certo quantas centenas de pessoas haviam sido massacradas, sequestradas ou abusadas sexualmente, o grupo xiita libanês Hezbollah — responsável por dezenas de atentados terroristas em vários continentes, inclusive na América Latina – começou a bombardear o norte de Israel de suas bases no sul do Líbano. Foram lançados desde então mais de 10 mil foguetes, forçando o êxodo de 67.500 habitantes da região. Foi esse o motivo para Israel atacar o Líbano nas últimas semanas, começando com a explosão sincronizada de perto de 3 milhares de pagers usados para comunicação entre integrantes do Hezbollah e culminando com a morte de seu líder, Hassan Nasrallah, atingido por um ataque em Beirute enquanto participava de uma reunião no subsolo de um prédio residencial na sexta-feira.

A ofensiva israelense deixou milhares de feridos e centenas de mortos, entre eles as principais lideranças do Hezbollah, representantes do governo iraniano e, lamentavelmente, civis inocentes, inclusive dois brasileiros. Ao contrário de Israel, que dispõe de um sofisticado sistema de defesa antiaéreo capaz de interceptar mísseis e foguetes ainda no ar — testado em seu limite por um ataque iraniano meses atrás —, o Hezbollah opera, a exemplo de seu congênere Hamas, infiltrado na população civil libanesa, usada como escudo humano para dissuadir ataques. Só que o Hezbollah é mais sofisticado e poderoso que o Hamas. Seu arsenal, estimado entre 150 mil e 200 mil foguetes, lhe confere dez vezes o poder de fogo do grupo palestino. O Hezbollah também é dependente militar e financeiramente de Teerã, mas os vínculos são mais fortes. Como o Irã, professa a vertente mais extremista do fundamentalismo xiita, almeja a destruição de Israel e está em conflito aberto com os valores (e países) ocidentais há décadas. O Hezbollah usufrui um status especial no Líbano, que lhe permite, ao mesmo tempo, manter representação política e uma milícia própria, além de comandar bancos, fornecimento de energia e um sistema econômico paralelo.

Atacar alvos do Hezbollah em solo libanês foi uma medida necessária diante dos riscos que corria, mas Israel sabe que a ação pode aprofundar uma guerra de custo elevadíssimo para sua própria população. A reação do Irã até o momento é incerta. Perto de completar um ano dos ataques do Hamas, a vitória israelense completa, com aniquilação total de Hamas e Hezbollah, continua uma promessa distante — realisticamente já seria uma grande vitória deixar em ruínas o poder de fogo de seus adversários. Um ataque iraniano a Israel poderia transformar o conflito localizado numa guerra de alcance global — e isso não interessa a ninguém.

Em sua manifestação de apoio a Israel depois da morte de Nasrallah, o presidente americano, Joe Biden, conclamou as partes envolvidas a investir nos esforços diplomáticos para chegar a acordos de cessar-fogo, tanto em Gaza quanto no Líbano. É difícil alcançar uma solução que satisfaça a todos os requisitos para a segurança das populações civis. Mas Biden tem razão em dizer que, uma vez contida a ameaça iminente dos grupos extremistas, é preferível o cessar-fogo à guerra que perdure. Nas suas próprias palavras: “É hora de esses acordos serem fechados, de as ameaças a Israel serem removidas e de a região do Oriente Médio como um todo alcançar maior estabilidade”.

Experiência ajuda a implementar veto a celulares em sala de aula

O Globo

Há leis proibindo o equipamento nas escolas de 20 estados, mas nem todas funcionam na prática

O anúncio do ministro da Educação, Camilo Santana, de que o governo enviará Projeto de Lei (PL) ao Congresso para proibir o uso de celulares nas escolas é uma oportunidade para ampliar a discussão sobre a medida. Não há dúvida de que os aparelhos, usados sem qualquer regra, prejudicam o aprendizado. No exame de 2022 do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), 45% dos alunos brasileiros entrevistados relataram experiências de distração ao usar aparelhos eletrônicos em sala de aula, 15 pontos percentuais acima da média da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

O que fazer com os celulares na escola é tema de interesse global. Reportagem recente da CNN no Reino Unido relata que foi “um choque” quando os aparelhos foram proibidos nas escolas. A discussão ocorre em diferentes estados americanos que adotam restrições. Países como FrançaEspanhaFinlândiaItáliaHolandaCanadáSuíçaPortugal e México seguiram o caminho da proibição. Em junho, a Unesco recomendou a medida.

No Brasil há desde 2004 leis sobre o uso de celular em salas de aula, e hoje restrições vigoram em 20 estados. Há, portanto, experiência acumulada que precisa ser usada na discussão do PL do governo no Congresso. Não é difícil baixar normas e estabelecer regras. A dificuldade, como sempre, está em cumpri-las.

Tem havido percalços na implementação em razão da resistência dos alunos. Apenas 12% das escolas dos estados onde há leis sobre o assunto informaram conseguir proibir os celulares na prática, segundo pesquisa do Comitê Gestor da Internet. “Tudo no celular é mais atraente que o professor lá na frente”, diz a professora Manoela Lima, da rede estadual de São Paulo. Daí a dificuldade para obrigar os alunos a manter o aparelho desligado durante as aulas e também no recreio.

Na cidade do Rio, uma das que mais têm defendido a regulação do uso de celular nas escolas, o secretário de Educação, Renan Ferreirinha, relata que foi mais fácil aplicar a regra com os alunos mais novos. Para os mais velhos houve necessidade de trabalho pedagógico específico, com rodas de conversas e capacitação dos profissionais da rede escolar. Ele reconhece que sempre haverá transgressores, mas aposta que, com o tempo, elas tendem a diminuir.

É provável que o Projeto de Lei do MEC, além de proibir o celular na escola, como no Rio, autorize o professor a usar os aparelhos com fins pedagógicos. Blindar a educação contra avanços tecnológicos seria mesmo insensatez. Na maior parte do tempo, a proibição deve vigorar. Mas também há iniciativas para que professores ensinem com a tecnologia em vez de tentar enfrentá-la. Para que a proibição funcione, o mais importante é desenvolver atividades pedagógicas que atraiam o interesse dos alunos.

Brasil perde influência ao se alinhar ao autoritarismo

Valor Econômico

O presidente deixa Nova York mostrando-se parcial demais para quem pretende ser mediador de conflitos globais, fraco demais até entre seus vizinhos na América do Sul para defender a democracia que prega e muito vulnerável para responder às ameaças climáticas

Em seus mandatos anteriores, o presidente Lula costumava encantar plateias internacionais, e foi assim até logo depois de suceder a Jair Bolsonaro. Não mais, como ficou claro após discurso e ações posteriores à abertura da 79ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Sua fala reafirmou pontos importantes da diplomacia brasileira, como a necessidade de erradicar a fome e a pobreza mundiais e de garantir para os países emergentes uma representação alinhada a seu novo peso econômico e político nos organismos internacionais, como no Conselho de Segurança da instituição. Ao substituir Bolsonaro, Lula ganhou prestígio por comparação ao passado, especialmente na questão do combate às mudanças climáticas. Mas está dilapidando o patrimônio conquistado no passado. Prestes a completar uma década em passagens pelo poder, a atuação de Lula passou a ser vista por boa parte da comunidade internacional como divisiva, anacrônica e parcial, alinhada a um bloco de nações que não segue regras democráticas.

A principal credencial do país no exterior é a ambiental, mas Lula chegou a Nova York ainda com o país em chamas, 60% do território nacional coberto por fumaça e um mea culpa de que o governo não estava preparado para enfrentar emergências climáticas como as que ocorreram, mesmo decorrido um ano e meio do mandato.

O presidente não só teve seu prestígio chamuscado pelo fogo em questão central na agenda internacional, como também foi questionado por sua ambiguidade ao apresentar-se como vanguarda do combate ao aquecimento global e ambicionar ser um dos maiores produtores de petróleo do mundo. Emirados Árabes, Azerbaijão e Brasil, países- sede de COPs - passada, presente e futura -, foram criticados pela Oil Change International, organização não lucrativa, porque os três anfitriões das conferências do clima vão aumentar sua produção de petróleo até 2035 em 37%, 4% e 38%, respectivamente (FT, sexta).

Mesmo abordando questões vitais da política externa, Lula escamoteou pontos em que o Brasil não está à altura do que exige de outros países ou em que simplesmente não pratica o que defende. A ditadura venezuelana foi exemplo do ensurdecedor silêncio de Lula sobre as últimas eleições. Ele defendeu a democracia doméstica contra “investidas extremistas, messiânicas e totalitárias, que espalham o ódio, a intolerância e o ressentimento”, mas nada disse sobre seu vizinho, que costumava prestigiar e sobre o qual rejeita até hoje classificar de ditadura, mesmo depois de fraude eleitoral óbvia - o Brasil cobra a divulgação das atas eleitorais até hoje. Procurou, sem sucesso, desviar-se da incômoda situação de um pretensioso mediador de grandes conflitos internacionais que sequer consegue exercer influência sobre seu vizinho.

Nas reuniões posteriores, o presidente brasileiro respondeu a ataques a suas posições em conflitos nos quais se intromete sem ter poder para influenciar. No caso do Oriente Médio, condenou o terrorismo do Hamas, mas preferiu acusar Israel de ter desejo de vingança em Gaza, numa reação que já deixou 40 mil palestinos mortos, criticando também os ataques israelenses que acertaram território libanês, destinados a enfraquecer o poder bélico do Hezbollah, outro grupo terrorista patrocinado pelo Irã, agora companheiro do Brasil no Brics ampliado, por exigência da China.

Lula chocou-se com Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, a quem atribui falta de esperteza por não realizar manobras diplomáticas em relação à Rússia. Zelensky, corretamente, apontou que Lula favorecia Vladimir Putin com sua proposta de entendimento de seis pontos alinhavado por Brasil e China. O documento foi feito após amplas consultas com a China, com participação do assessor especial Celso Amorim, e ampla troca de ideias com Putin - e nenhum intercâmbio com o governo da Ucrânia, vítima da segunda invasão russa em uma década.

Após Lula deixar Nova York, coube a Amorim colocar a cereja em bolo embatumado, a reunião com países para apresentar o embrulho de paz para a Ucrânia. O documento, em resumo, estabelece as condições para um amplo cessar-fogo, mas em nenhum momento menciona que houve um país que foi invadido e outro que é invasor, a Rússia. A rejeição de Zelensky à proposta, segundo Amorim, “não a afeta em nada”, uma declaração espantosa, que apenas repete a genuflexão que Brasil faz ao autoritarismo de China e Rússia, seus parceiros no Brics, e o desrespeito à vontade da principal vítima, que já teve a Crimeia incorporada por decreto de Putin à Rússia.

O presidente Lula sai da Assembleia da ONU mostrando-se parcial demais para quem pretende ser mediador de conflitos globais, fraco demais até entre seus vizinhos na América do Sul para defender a democracia que prega e muito vulnerável para responder às ameaças climáticas. Não se alinhar aos EUA não implica aliar-se a ditaduras que atendem a devaneios ideológicos da diplomacia lulista. Essa parceria ainda trará muitos problemas, e o Brasil só tem a ganhar retornando à independência que já teve no passado.

Alta da dívida pública desmente retórica de Lula

Folha de S. Paulo

Petista contesta crítica à escalada do gasto após reunião com agências de risco, mas nova regra fiscal não evita déficit

Em sua passagem por Nova York, Luiz Inácio Lula da Silva (PTse encontrou com representantes de agências de risco —empresas, não raro hostilizadas no discurso petista, que monitoram e avaliam a qualidade da política econômica e as perspectivas para as dívidas dos governos, classificando-as em graus de segurança.

A imagem brasileira hoje não é boa, já que o país está na categoria de investimento especulativo, sem o selo de bom pagador para o governo nacional. O chamado grau de investimento, obtido em 2008 no auge do boom dos preços de matérias-primas, foi perdido em 2015 na gestão de Dilma Rousseff (PT) em razão do desequilíbrio orçamentário.

O mandatário tentou convencer as agências de que há controle fiscal e estabilidade econômica no Brasil. Negou, assim, a realidade da gastança de seu governo e suas já visíveis consequências, na forma de juros em alta e câmbio desvalorizado —que não tardarão a comprometer o crescimento da renda e do emprego.

Em entrevista, Lula repetiu a ladainha de que aprendeu economia em casa e sabe que não pode gastar acima da receita; dívidas, disse, só devem ser contraídas para investimentos (despesas que ampliam a capacidade produtiva do país).

Até se encontra alguma sensatez básica nas afirmativas, mas deve-se lembrar que, em outras ocasiões, o líder petista já chamou de investimento quase todo tipo de gasto público.

Os números mostram o resultado efetivo das teses presidenciais. O governo terá deficit de R$ 68,8 bilhões neste ano, segundo suas próprias projeções, e isso sem contar os encargos com juros.

A meta de equilibrar receitas e despesas estará assim formalmente cumprida apenas porque há R$ 40,5 bilhões em desembolsos classificados como fora dos limites, para emergências climáticas, e há uma margem de tolerância de R$ 28,8 bilhões (0,25% do PIB) na regra fiscal.

Como corretamente apontou Lula, neste 2024 a economia crescerá em torno de 3%, bem mais do que se esperava no começo do ano. Longe de mérito específico de sua administração, tais surpresas altistas tem ocorrido desde 2021, e os analistas ainda se debatem com as explicações.

Parte do fenômeno pode resultar do impacto de reformas, como a trabalhista, e da melhora na governança de projetos de infraestrutura, incluindo o novo marco do saneamento. Parece claro, no entanto, que boa parte do impulso decorre dos gastos públicos em alta, algo de fôlego curto.

No futuro próximo, o quadro é temerário. As projeções são de déficit primário até o final da atual gestão, enquanto os juros estão novamente em alta. Estimativas que constam do Orçamento indicam aumento da dívida pública a 81,6% do PIB em 2026.

Estabilidade fiscal e previsibilidade, enaltecidas por Lula, precisam se traduzir em ações efetivas para equilibrar as contas. Sem isso, são apenas conversa fiada.

Rio mostra importância das câmeras na PM

Folha de S. Paulo

Uso inédito dos dispositivos para denunciar policiais evidencia utilidade do programa para prevenir e investigar abusos

Para que a política de câmeras em uniformes policiais seja eficaz, não basta meramente implantá-la. É necessário que ela gere mudanças significativas na atividade dos agentes de segurança, seja para formar boas práticas em treinamentos, seja para punir condutas nefastas. Tal processo começa a ser visto no país, ainda que a passos lentos.

Pela primeira vez, o Ministério Público do Rio de Janeiro utilizou a tecnologia para indiciar PMs por crimes no exercício da função. Em um dos casos, ocorrido em outubro de 2023 e revelado pela Folha, a câmera gravou um policial quando ele se apropriava de R$ 100 de um suspeito algemado. Sem ela, a ilegalidade provavelmente permaneceria impune.

Importante também é que os órgãos de controle interno, como a corregedoria, e externo, como Ministério Público, fiscalizem os meios encontrados pelos agentes para burlar os dispositivos —a promotoria fluminense encontrou casos de profissionais que encobrem o equipamento ou descarregam sua bateria.

O Congresso Nacional poderia regular a punição dessas condutas, mesmo que já possam ser enquadradas como infração de recusa à ordem superior, dado que se trata de diretriz oficial das polícias sobre o uso das câmeras.

Rio de Janeiro e São Paulo são dois dos estados cujos governos locais apresentam postura no mínimo relutante quanto ao uso das câmeras, beirando por vezes a oposição ao equipamento.

O governador Cláudio Castro (PL) só estendeu a tecnologia a todo o efetivo policial fluminense no início deste 2024, após perder recurso no Supremo Tribunal Federal contra a decisão da corte, de 2022, a favor dos dispositivos.

A gestão paulista de Tarcísio de Freitas (Republicanos) diz —com aval por ora de decisão do presidente do STFLuís Roberto Barroso— que cumpre as diretrizes federais sobre câmeras, apesar de ter acabado com o modo de gravação ininterrupta, o que levantou críticas de especialistas.

Estados do Norte e do Nordeste lideram as adesões ao programa coordenado pelo Ministério da Justiça, que prevê o uso obrigatório dos equipamentos em 16 situações, incluindo no contato com presos, em ações ostensivas e operações policiais.

Já passa da hora de a classe política compreender que as câmeras funcionam, protegem o trabalho de bons policiais e permite que ilegalidades sejam investigadas. Ademais, enquanto agentes encontram formas de driblá-las, cabe a suas lideranças na corporação, ao sistema de Justiça e aos governos estaduais assegurar que sejam responsabilizados.

O preocupante aumento da violência política

O Estado de S. Paulo

A sociedade e seus representantes precisarão encontrar meios de desarmar os ânimos, desconstruir a polarização e obliterar a infiltração do crime organizado no poder público

Um levantamento do Observatório da Violência Política e Eleitoral (OVPE), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, identificou 455 casos de violência contra lideranças políticas do Brasil de janeiro a 16 de setembro deste ano. À medida que o pleito se aproxima, os incidentes aumentam. Entre julho e 16 de setembro, foram 15 homicídios. No período eleitoral crítico, daqui até o segundo turno, a tendência é de aumento.

A violência política tem se intensificado nos últimos ciclos eleitorais. Segundo levantamento do Estadão, a média de mortes por motivações políticas nos primeiros dez ciclos da redemocratização foi de 52. Em 2020, ao menos 72 brasileiros foram assassinados por motivações políticas. Só as agressões contra lideranças computadas pelo OVPE já são maiores que em 2020 e 2022.

Duas causas parecem alavancar essa escalada. Uma é da ordem da cultura política: a intensificação da polarização e da intolerância e a naturalização da truculência como meio de ação política. A outra é um problema sistêmico de segurança pública: a expansão e complexificação do crime organizado e sua infiltração no Estado.

Divergências são naturais e desejáveis em uma democracia. Mesmo certos graus de polarização são normais. Processos deliberativos e ciclos eleitorais culminam inevitavelmente em momentos em que é preciso decidir “sim” ou “não”, “contra” ou “a favor”. O problema é quando essas polarizações – necessárias, circunstanciais e localizadas – se degeneram em polarizações estruturais, generalizadas e perniciosas, e a pluralidade de esferas sociais passa a ser determinada pela clivagem político-ideológica.

Nas democracias esse processo de radicalização ocorre de cima para baixo. Políticos de ofício têm incentivos para promover atitudes polarizadas, forjando “batalhões” leais e permanentemente mobilizados. Em contrapartida, esses batalhões exigem de seus representantes um alinhamento cada vez mais estrito às linhas partidárias e desmoralizam os moderados. Cria-se um círculo vicioso entre elites políticas radicais e massas militantes radicalizadas, que esvazia o centro, amplia a distância entre os polos e intensifica a hostilidade entre eles.

Essa clivagem única degrada o processo democrático, impossibilitando interações, consensos e compromissos; disseminando desconfiança nas instituições e no jogo democrático; e incentivando o sensacionalismo e o tribalismo. Adversários políticos se tornam inimigos existenciais. A desumanização do “outro” propicia as condições para violências de todo tipo, desde a segregação até a eliminação.

Mas possivelmente a principal causa do aumento da violência é a infiltração do crime organizado na máquina pública. A atuação das facções e milícias passa pelo financiamento de campanhas de aliados, intimidação e extorsão de eleitores, ameaças a políticos, corrupção de agentes de Estado e captura de contratos públicos.

As forças de segurança precisam organizar núcleos específicos que investiguem permanentemente as relações promíscuas entre a política e o crime. Os partidos precisam aprimorar mecanismos de controle para identificar e afastar criminosos ou agregados do crime organizado.

Quanto à violência política “passional”, por assim dizer, a Justiça Eleitoral pode aprimorar as condições de segurança nos ciclos eleitorais, especialmente nos dias das eleições. Mas desarmar os ânimos não é tarefa de um dia, e a responsabilidade é de todos: de cada cidadão, das organizações civis, mídia, instituições públicas e, especialmente, elites políticas. Um desenho institucional de prevenção e mitigação deve considerar melhorias no sistema da Justiça Eleitoral e uma infraestrutura para a paz, incluindo pactos e códigos de conduta, comitês suprapartidários e campanhas e sistemas de alerta.

A responsabilidade final é do eleitor. A menos que puna hoje, nas urnas, os autoritários que instrumentalizam a retórica da demonização, do “vale-tudo” no “nós contra eles” e, sobretudo, os que apelam às vias de fato, amanhã não só seu voto pode ser tolhido, como a sua própria vida.

A epopeia da Autoridade Climática

O Estado de S. Paulo

Velha proposta recauchutada por Lula na crise das queimadas parece longe de se tornar realidade em meio a disputas de poder, o que só evidencia uma defesa dissimulada do ambiente

Já faz duas semanas que Lula da Silva anunciou a criação da Autoridade Climática, panaceia da crise sem precedentes das queimadas e da seca no Brasil. Inicialmente discutida na transição de governo, prometida em discurso de posse da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, e ressuscitada durante as enchentes no Rio Grande do Sul, a iniciativa avança a passos lentos e parece longe de se tornar realidade em meio a disputas de poder.

Os debates hoje giram em torno de como o órgão será estruturado, mas, sobretudo, a quem exatamente estará subordinado. De um lado, há quem advogue pela vinculação à Presidência da República e, de outro, ao Ministério do Meio Ambiente (MMA).

Ao jornal Valor, Marina propôs uma autoridade com estrutura de autarquia – como exemplo, ela citou a vinculação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ao Ministério da Saúde. Em suas palavras, “é assim que se desenham políticas públicas, para além da sazonalidade política e da alternância de poder”.

À Coluna do Estadão, no entanto, o ex-ministro Carlos Minc (PSB-RJ), que participou dos debates sobre a criação do órgão ainda no governo de transição, defendeu seu atrelamento à Presidência. Para ele, essa é uma forma de garantir que a autoridade tenha ascendência sobre variadas pastas, como Agricultura e Minas e Energia, que, não raro, acumulam embates com o MMA.

Nessa saga, o maior rival de Marina no governo, ao que tudo indica, está na própria Casa Civil. Em entrevista ao jornal O Globo, o ministro Rui Costa afirmou que a pasta chefiada pela colega apresentou há dois meses um PowerPoint com a proposta, mas que somente há alguns dias elaborou um texto, de fato, sobre a Autoridade Climática. Na minuta, o órgão estaria subordinado ao Ministério do Meio Ambiente, o que não parece ter agradado a Rui Costa. O ministro disse ter dúvidas se, nesse modelo, o órgão seria uma “autoridade” ou apenas um “departamento”. E, na dúvida, o petista não tem pressa alguma para encaminhar a proposta. Segundo ele, ainda precisa “refletir muito”.

Antes disso, a Autoridade Climática já havia sido engavetada em razão das frequentes dificuldades da articulação política do governo no Congresso. O Legislativo precisaria dar aval à criação dessa estrutura, que é vista com muita desconfiança pela bancada ruralista.

Toda essa discussão é lateral e mal consegue esconder o fato de que o governo não trata o tema com a prioridade que merece. Passados quase dois anos desde o surgimento da proposta dessa autoridade, é incompreensível que ela ainda seja uma vaga ideia e que não tenha vindo a público nem sequer um rascunho que seja com suas atribuições, seus limites e seu vínculo ao Ministério do Meio Ambiente ou à Presidência da República.

Quem deveria ter tomado essa decisão é Lula da Silva, e é impressionante que ainda não o tenha feito. Depois de tantas palavras lançadas ao vento, vê-se que o governo escreve uma longa epopeia cujo fim é impossível prever, talvez na expectativa de que surja um deus ex machina para resolver o mau roteiro. Ademais, a depender da demagogia do petista na área, nada garante que, mesmo no Planalto, esse órgão terá poder para coordenar esforços, elaborar projetos transversais e executar ações de prevenção, mitigação e adaptação às mudanças do clima.

Marina, já dissemos neste espaço, figura na atual gestão como um vaso chinês – valioso, mas meramente decorativo. Faz sentido que ela queira essa autoridade sob sua guarda, até para afastar o risco de esvaziamento de suas competências, mas é bom lembrar que Marina recusou assumir o órgão quando ele lhe foi oferecido na transição, e é de perguntar o que teria motivado a repentina mudança de posição.

Enquanto essas disputas ocorrem, o tempo passa e as queimadas continuam a arder pelo Brasil. Tudo isso evidencia que a agora tão falada Autoridade Climática é puro improviso para encobrir a omissão e a falta de planejamento de Lula da Silva para lidar com uma questão que ele tanto diz, mundo afora, se preocupar.

A barreira ambiental da EU

O Estado de S. Paulo

Além de se queixar do protecionismo da União Europeia, Brasil deveria se empenhar mais pelo ambiente

Apesar dos apelos de grandes países exportadores, como Brasil, China e EUA, a União Europeia (UE) comunicou à Organização Mundial do Comércio (OMC) que não adiará a entrada em vigor de sua “Lei Antidesmatamento”. Conhecida como EUDR, a regulação, que passa a valer em 30 de dezembro deste ano, pode reavivar a era de grandes conflitos comerciais globais, tendo por um lado países que falham no combate ao desmatamento, como o Brasil, e do outro, os europeus valendo-se de causa nobre, a proteção do meio ambiente, por motivos comerciais.

No começo de setembro, quando imagens apocalípticas de um Brasil devorado por queimadas passaram a correr o mundo, os ministros de Relações Exteriores, Mauro Vieira, e da Agricultura, Carlos Fávaro, enviaram carta à UE solicitando que a EUDR, classificada na missiva de “medida unilateral coerciva e punitiva”, fosse pelo menos adiada. O Brasil é um dos principais fornecedores de produtos como carne, soja e café para a Europa, e essas exportações podem sofrer um tombo expressivo com a nova legislação.

Que países europeus usam a causa ambiental para proteger seus mercados agrícolas ineficientes, não é segredo para ninguém. A França, em atitude oposta à de pares como a Alemanha, não perde uma oportunidade de se manifestar contra um acordo entre a UE e o Mercosul, criticando as práticas de produtores sul-americanos, na realidade muito mais competitivos no agro, enquanto internamente relaxa regras ambientais que seus próprios produtores não conseguem, ou não querem, cumprir. E a inflexibilidade em relação à entrada em vigor da EUDR, pouco clara em muitos aspectos, apenas reforça a suspeita de que a motivação europeia é muito mais comercial do que ambiental.

Mas, se não é de hoje que os europeus usam o meio ambiente como desculpa para, sejamos francos, praticar protecionismo escancarado, o Brasil não cansa de dar provas, como demonstram as queimadas recentes, de que não faz o suficiente para lidar de maneira eficiente e organizada com a questão ambiental. Por ora, a seca que nos aflige, em que pesem os prejuízos à vida, à saúde e às finanças dos brasileiros, não gerou nada muito além de reuniões apressadas, enquanto a criação de uma propalada autoridade Climática não decola mesmo diante das sucessivas tragédias ambientais que o País acumula apenas neste ano.

A verdade é que, por mais que a motivação real da UE possa fundamentalmente ter pouco a ver com a causa ambiental, para países como o Brasil a conta da negligência com o desmatamento mudou de patamar: mais que a perda bilionária em exportações, o que se tem visto nos últimos dias nas mais diversas regiões do País é que viver está se tornando mais difícil, razão pela qual é urgente frear a degradação ambiental.

Sem fazer o que precisa ser feito, ao Brasil, por enquanto, só resta engrossar o coro dos descontentes com as barreiras europeias e posar de vítima de protecionismo.

Cidadão quer e merece mais

Correio Braziliense

Cada eleitor brasileiro tem seu candidato. A relação entre eles deve ser de mão dupla: te dou meu voto e quero responsabilidade

Os brasileiros irão às urnas no próximo domingo levando nas mãos o título de eleitor e, na cabeça, sonhos de dias melhores, confiança na concretização das propostas de seus candidatos e pensamento sempre positivo no fortalecimento da democracia. Ao apertar a tecla 'confirma', no primeiro turno do pleito, cada um está não só depositando seus anseios como acreditando que o prefeito e os vereadores se comprometem realmente a trabalhar pelos municípios que os escolheram.

Cidadão e cidade são palavras da mesma família - nunca é demais lembrar. Então, o chefe do Executivo municipal deve viver atrelado à vontade coletiva, governando para todos ou, no caso dos parlamentares, legislando de olho no bem comum. "A" não é mais importante do que "B", um bairro tal jamais pode ser alvo de todos os recursos em detrimento de outros, buracos nas ruas são verdadeira ofensa a pessoas de todas as gerações.

Nas campanhas eleitorais, os temas mais enfocados, geralmente, são educação, saúde, segurança pública e transporte. De uns tempos para cá, o essencial saneamento básico veio à tona, sepultando a antiga teoria de que o que está debaixo da terra, portanto invisível aos olhos da população, não dá voto. Já era tempo! E será somente isso que o povo quer?

A resposta certamente é não. Há muitas ideias que podem tornar bem mais 'habitável' uma capital ou uma cidade do interior brasileiro. Por que construir um condomínio residencial, de luxo ou popular, à beira de um rio, se essa mesma área pode ser desapropriada pela prefeitura para construção de um parque? Além de frear o adensamento urbano, o gestor deve pensar na qualidade de vida, no meio ambiente, no convívio dos moradores, ainda mais em épocas de temperaturas tão elevadas como agora.

As cidades brasileiras, e nem é preciso ter muita memória para saber, vira e mexe ficam à mercê das enchentes, com estragos generalizados. Destruição de casas, desabamento de muros, soterramentos e mortes entram na lista das mazelas derivadas das cheias. Assim, os prefeitos devem ter visão e refletir, planejando obras com técnica e determinação, sem dar ouvidos à ganância do dinheiro. Em vez de escolher áreas vulneráveis, o mais indicado é indicar, aos empreendimentos imobiliários, empresariais e industriais, terrenos que causem menos impactos e perturbação às pessoas.

Cultura é outro território amplo e faz parte da escalada humana desde que o mundo é mundo. Mais do que oferecer apenas shows grandiosos, pagando milhões de reais a artistas de renome nacional, que tal criar condições para que a arte floresça e dê frutos. Um teatro, em boas condições, claro, fomenta as artes cênicas, integra as comunidades, aponta direções e empolga corações e mentes.

Prefeitos devem pensar, sempre, no cidadão que passa pelas ruas a caminho do trabalho, da escola, de um encontro com um amigo ou para ver o pôr do Sol com a namorada. Vias públicas devem ser tratadas com o maior carinho. Não devem ter buracos, precisam de limpeza permanente, não podem ficar por horas seguidas com os sacos de lixo à mostra, demandam manutenção. O dinheiro do contribuinte está em cada esquina, em cada metro de pavimentação e nas mudas de árvores plantadas.

Nada disso, no entanto, faz sentido se não houver segurança pública. Seu José, com seus 80 anos, tem o direito de ir ao supermercado e chegar em casa tranquilo e sereno, com os documentos no bolso, sem ser assaltado. Maria, de 20, universitária, não pode viver com medo de ser estuprada na volta de uma festa. Beto, morador da favela, deve ter seu ir e vir garantido, sem se sentir ameaçado.

Cada eleitor brasileiro tem seu candidato. A relação entre eles deve ser de mão dupla: Dou-te meu voto e quero responsabilidade. E se o prefeito ou vereador vier com a velha história da falta de recursos, que tal lembrá-los que criatividade não tem preço?

 

 

 

 

 

 

 

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