segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Sergio Lamucci - O mercado de trabalho e a política monetária

Valor Econômico

O nível alto dos juros e uma inflação não explosiva recomendam cautela no aumento dos juros; incertezas fiscais, porém, são entraves à elevação moderada da Selic

A força do mercado de trabalho impressiona. A taxa de desemprego segue em queda, a população ocupada está em nível recorde, a criação de empregos no mercado formal continua forte e a massa de rendimentos cresce a um ritmo expressivo. Ao lado das transferências de renda do governo, esse desempenho é um dos motivos que fazem do consumo das famílias um dos principais motores do crescimento do PIB. Na outra direção, o endividamento elevado breca uma expansão mais forte da demanda.

Com essa pujança, o comportamento do mercado de trabalho é uma das justificativas do Banco Central (BC) para ter começado o ciclo de alta da Selic neste mês. No entanto, o nível já alto dos juros e uma inflação que não é explosiva, ainda que as expectativas estejam relativamente distantes da meta de 3%, recomendam cautela no aumento da taxa, para evitar uma dose excessiva de aperto monetário. Um problema é que as incertezas sobre as contas públicas continuam altas, o que impede uma queda mais forte do dólar, apesar do aumento da diferença entre os juros no Brasil e no exterior. Isso conspira contra uma subida mais moderada da Selic.

Na sexta-feira, foi divulgada a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, com os números dos três meses até agosto. O desemprego ficou em 6,6%, o menor para esse período desde o começo da série, em 2012. Com ajuste sazonal, a taxa caiu pela nona vez seguida, para 6,7%, igualando o nível mais baixo do indicador calculado pela MCM Consultores Associados, alcançado entre o fim de 2013 e maio de 2014. A população ocupada ficou em 102,5 milhões, mais um nível recorde. Já a massa de rendimentos de todos os trabalhos, descontada a inflação, bateu em R$ 326,2 bilhões nesses três meses, 8,3% acima do registrado há um ano.

Esses números ajudam a explicar a força do consumo das famílias no ano até o momento - no segundo trimestre, ele cresceu 1,3% em relação ao trimestre anterior. Alguns bancos e consultorias, que passaram a estimar uma expansão para o PIB em 2024 na casa de 3%, projetam um avanço superior a 4% para o consumo das famílias neste ano.

Os números do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) mostraram alguma desaceleração na geração de empregos formais, mas continuam fortes. Em agosto, as admissões superaram os desligamentos em 232,5 mil vagas. Na série com ajuste sazonal da LCA Consultores, o número ficou em 129,7 mil, abaixo dos 155,6 mil de julho, mas superior aos 117,7 mil de agosto do ano passado, observa Bruno Imaizumi, economista da consultoria. Outro sinal de aquecimento é que o total de desligamentos a pedido alcançou um novo recorde mensal, destaca Imaizumi. Foram 755.267, 14% maior que em agosto de 2023. Os dados indicam que boa parte desses trabalhadores se sente confortável para pedir demissão, por encontrar condições mais vantajosas em outros lugares, num quadro de maior oferta de vagas, diz ele.

Todos esses números levantam preocupações quanto a pressões inflacionárias vindas do mercado de trabalho. Mas o IPCA-15, prévia da inflação oficial, exibiu um quadro mais benigno em setembro. O indicador subiu apenas 0,13%, com um bom resultado dos serviços mais sensíveis à demanda, que ficaram estáveis no mês e viram a alta em 12 meses desacelerar de 4,97% para 4,61%. Nesse base de comparação, o IPCA-15 “cheio” também perdeu fôlego, de 4,35% em agosto para 4,12% em setembro, embora ainda esteja bastante acima da meta de 3%.

 

Além disso, as expectativas de inflação para os próximos anos seguem distantes do alvo perseguido pelo BC. O ciclo de alta da Selic, contudo, partiu de um nível já elevado dos juros reais. Com base na Selic de 10,75% ao ano, a taxa real está em 6,5%, descontando a inflação esperada para os próximos 12 meses. Para completar, o Federal Reserve (Fed, o banco central americano) começou um ciclo de corte dos juros nos EUA, o que amplia a diferença entre as taxas no Brasil e no exterior.

Nesse quadro, apesar do mercado de trabalho forte e das expectativas de inflação desancoradas, é recomendável prudência no processo de alta da Selic. O nível de endividamento dos consumidores continua elevado, mesmo depois do Desenrola, o programa de renegociação de dívidas do governo federal. Segundo o BC, o endividamento das famílias correspondia em junho a 47,93% da renda acumulada em 12 meses, não muito abaixo do máximo de quase 50% de 2022. Se for excluído o crédito habitacional, o percentual ficou em 30%, também não distante do recorde de pouco mais de 31% alcançado em alguns meses de 2022. Dívidas que pesam no orçamento são obviamente um entrave a maiores gastos. Outro ponto é que a alta dos juros em curso encarece empréstimos e financiamentos e pode estimular parte das famílias a poupar mais.

Para limitar a magnitude do ciclo de alta dos juros, uma medida fundamental seria a redução das incertezas fiscais. Pode ser cansativa a insistência nesse ponto, mas a falta de uma estratégia de controle do crescimento das despesas obrigatórias pesa sobre as expectativas em relação às contas públicas. O endividamento do governo deverá seguir em expansão nos próximos anos, sem perspectiva realista de ser estabilizado como proporção do PIB num horizonte razoável. Em julho, a dívida bruta ficou em 78,5% do PIB, uma alta forte em pouco mais de um ano e meio do governo Lula - no fim de 2022, estava em 71,7% do PIB.

Além da ausência de medidas de controle de gastos, há desconfiança quanto à transparência das contas públicas, com algumas estimativas superestimadas de receitas e subestimadas de despesas, além do desconforto com dispêndios que ficam fora do cálculo das metas fiscais. Esse quadro de incertezas dificulta uma queda mais forte do dólar, que seria esperada num ambiente de grande diferença entre juros internos e externos. Seria um canal importante para melhorar as perspectivas para a inflação, num momento em que o mercado de trabalho segue firme e pode ser uma fonte de pressão sobre os preços, ainda que emprego e renda devam desacelerar em algum momento.

 

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