Valor Econômico
O nível alto dos juros e uma inflação não explosiva recomendam cautela no aumento dos juros; incertezas fiscais, porém, são entraves à elevação moderada da Selic
A força do mercado de trabalho impressiona. A
taxa de desemprego segue em queda, a população ocupada está em nível recorde, a
criação de empregos no mercado formal continua forte e a massa de rendimentos
cresce a um ritmo expressivo. Ao lado das transferências de renda do governo,
esse desempenho é um dos motivos que fazem do consumo das famílias um dos
principais motores do crescimento do PIB. Na outra direção, o endividamento
elevado breca uma expansão mais forte da demanda.
Com essa pujança, o comportamento do mercado de trabalho é uma das justificativas do Banco Central (BC) para ter começado o ciclo de alta da Selic neste mês. No entanto, o nível já alto dos juros e uma inflação que não é explosiva, ainda que as expectativas estejam relativamente distantes da meta de 3%, recomendam cautela no aumento da taxa, para evitar uma dose excessiva de aperto monetário. Um problema é que as incertezas sobre as contas públicas continuam altas, o que impede uma queda mais forte do dólar, apesar do aumento da diferença entre os juros no Brasil e no exterior. Isso conspira contra uma subida mais moderada da Selic.
Na sexta-feira, foi divulgada a Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, com os números dos três
meses até agosto. O desemprego ficou em 6,6%, o menor para esse período desde o
começo da série, em 2012. Com ajuste sazonal, a taxa caiu pela nona vez
seguida, para 6,7%, igualando o nível mais baixo do indicador calculado pela
MCM Consultores Associados, alcançado entre o fim de 2013 e maio de 2014. A
população ocupada ficou em 102,5 milhões, mais um nível recorde. Já a massa de
rendimentos de todos os trabalhos, descontada a inflação, bateu em R$ 326,2
bilhões nesses três meses, 8,3% acima do registrado há um ano.
Esses números ajudam a explicar a força do
consumo das famílias no ano até o momento - no segundo trimestre, ele cresceu
1,3% em relação ao trimestre anterior. Alguns bancos e consultorias, que
passaram a estimar uma expansão para o PIB em 2024 na casa de 3%, projetam um
avanço superior a 4% para o consumo das famílias neste ano.
Os números do Cadastro Geral de Empregados e
Desempregados (Caged) mostraram alguma desaceleração na geração de empregos
formais, mas continuam fortes. Em agosto, as admissões superaram os
desligamentos em 232,5 mil vagas. Na série com ajuste sazonal da LCA
Consultores, o número ficou em 129,7 mil, abaixo dos 155,6 mil de julho, mas
superior aos 117,7 mil de agosto do ano passado, observa Bruno Imaizumi,
economista da consultoria. Outro sinal de aquecimento é que o total de
desligamentos a pedido alcançou um novo recorde mensal, destaca Imaizumi. Foram
755.267, 14% maior que em agosto de 2023. Os dados indicam que boa parte desses
trabalhadores se sente confortável para pedir demissão, por encontrar condições
mais vantajosas em outros lugares, num quadro de maior oferta de vagas, diz
ele.
Todos esses números levantam preocupações
quanto a pressões inflacionárias vindas do mercado de trabalho. Mas o IPCA-15,
prévia da inflação oficial, exibiu um quadro mais benigno em setembro. O
indicador subiu apenas 0,13%, com um bom resultado dos serviços mais sensíveis
à demanda, que ficaram estáveis no mês e viram a alta em 12 meses desacelerar
de 4,97% para 4,61%. Nesse base de comparação, o IPCA-15 “cheio” também perdeu
fôlego, de 4,35% em agosto para 4,12% em setembro, embora ainda esteja bastante
acima da meta de 3%.
Além disso, as expectativas de inflação para
os próximos anos seguem distantes do alvo perseguido pelo BC. O ciclo de alta
da Selic, contudo, partiu de um nível já elevado dos juros reais. Com base na
Selic de 10,75% ao ano, a taxa real está em 6,5%, descontando a inflação
esperada para os próximos 12 meses. Para completar, o Federal Reserve (Fed, o
banco central americano) começou um ciclo de corte dos juros nos EUA, o que
amplia a diferença entre as taxas no Brasil e no exterior.
Nesse quadro, apesar do mercado de trabalho
forte e das expectativas de inflação desancoradas, é recomendável prudência no
processo de alta da Selic. O nível de endividamento dos consumidores continua
elevado, mesmo depois do Desenrola, o programa de renegociação de dívidas do
governo federal. Segundo o BC, o endividamento das famílias correspondia em
junho a 47,93% da renda acumulada em 12 meses, não muito abaixo do máximo de
quase 50% de 2022. Se for excluído o crédito habitacional, o percentual ficou
em 30%, também não distante do recorde de pouco mais de 31% alcançado em alguns
meses de 2022. Dívidas que pesam no orçamento são obviamente um entrave a
maiores gastos. Outro ponto é que a alta dos juros em curso encarece
empréstimos e financiamentos e pode estimular parte das famílias a poupar mais.
Para limitar a magnitude do ciclo de alta dos
juros, uma medida fundamental seria a redução das incertezas fiscais. Pode ser
cansativa a insistência nesse ponto, mas a falta de uma estratégia de controle
do crescimento das despesas obrigatórias pesa sobre as expectativas em relação
às contas públicas. O endividamento do governo deverá seguir em expansão nos
próximos anos, sem perspectiva realista de ser estabilizado como proporção do
PIB num horizonte razoável. Em julho, a dívida bruta ficou em 78,5% do PIB, uma
alta forte em pouco mais de um ano e meio do governo Lula - no fim de 2022,
estava em 71,7% do PIB.
Além da ausência de medidas de controle de
gastos, há desconfiança quanto à transparência das contas públicas, com algumas
estimativas superestimadas de receitas e subestimadas de despesas, além do
desconforto com dispêndios que ficam fora do cálculo das metas fiscais. Esse
quadro de incertezas dificulta uma queda mais forte do dólar, que seria
esperada num ambiente de grande diferença entre juros internos e externos.
Seria um canal importante para melhorar as perspectivas para a inflação, num
momento em que o mercado de trabalho segue firme e pode ser uma fonte de
pressão sobre os preços, ainda que emprego e renda devam desacelerar em algum
momento.
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