Bernardo Melo e Caio Sartori / O Globo
Quatro décadas depois de Sarney assumir
Presidência, Congresso caminha para voltar à fragmentação pós-ditadura; novas
regras reduzem siglas, mas sem resolver crise
No ano em que se completam quatro décadas da
redemocratização, o Brasil experimenta uma diminuição do número de legendas no
Congresso que, já em 2026, pode reduzir a fragmentação partidária ao nível das
eleições de 1986. Aquela disputa, a primeira com voto direto após a transição
da ditadura militar para o regime democrático — cujo marco é a posse do
primeiro presidente civil, José Sarney, em 15 de março de 1985 —, ocorreu em um
contexto de abertura ao pluripartidarismo, e terminou com 12 partidos representados
na Câmara. Atualmente, há 16 bancadas na Casa, incluindo três federações, e o
aumento das exigências da cláusula de barreira vem levando ao menos outros
cinco partidos a discutirem fusões e incorporações.
Pesquisadores avaliam que o pluripartidarismo, juntamente à Lei da Anistia e ao fim do AI-5, compôs um pacote essencial para o desmantelamento da ditadura — o bipartidarismo vigorou na maior parte do regime militar, entre 1966 e 1979. A pulverização trouxe, porém, desafios para a formação de coalizões. O país chegou a ter 35 partidos registrados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) nas eleições de 2018, quando 30 siglas elegeram representantes à Câmara, o recorde do período. A partir daí, mudanças nas regras de acesso a recursos de campanha e o fim das coligações na eleição legislativa estimularam o enxugamento do total de siglas. Hoje, há 29 partidos registrados no país.
Mesmo com a redução de legendas, no entanto,
o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) apresenta maior
dificuldade para montar uma base parlamentar do que em seus dois mandatos
anteriores, em 2002 e 2006. Nas duas ocasiões, o próprio PT e o PMDB,
respectivamente, eram os maiores partidos da Câmara, com cerca de 90 deputados.
Distância ideológica
O tamanho da maior bancada vinha caindo em
paralelo à maior pulverização partidária, mas voltou a crescer em 2022, quando
o PL do ex-presidente Jair Bolsonaro elegeu 99 deputados. Até então, era
incomum que um partido abertamente de oposição iniciasse o governo com mais
deputados: o único precedente havia sido o PT em 2018.
— A retomada dos partidos na década de 1980
foi importante para diluir a força da Arena, que era o partido da ditadura.
Esse aumento da fragmentação trouxe impactos à governabilidade, mas o principal
fator de dificuldade hoje é a maior distância ideológica entre um Executivo
mais à esquerda e um Legislativo mais à direita, no qual o centro ficou
esmagado — avalia a cientista política Joyce Luz, pesquisadora do
Cepesp/FGV-SP.
Para a pesquisadora, o crescimento do Centrão
desde o governo Bolsonaro — na prática, um bloco informal de parlamentares
fiadores da governabilidade — deixou o Legislativo com “um alicerce
suprapartidário, sem a capacidade de coesão que antes tinham os líderes de cada
partido”.
Coautor do livro “Democracia negociada —
Política partidária no Brasil da Nova República”, o historiador Leonardo Weller
lembra que o termo “Centrão” foi inicialmente aplicado, no pós-ditadura, para
caracterizar o agrupamento entre siglas nanicas à época, como PL e os extintos
PSC (incorporado ao Podemos) e PDC, um dos precursores do PP. Eles se juntaram
a partidos maiores de direita, como o PFL, que daria origem, em 2022, ao União
Brasil, e o PDS, sucessor da Arena. O grupo contava também com parte do próprio
PMDB (hoje MDB), herdeiro da oposição à ditadura.
A enorme bancada peemedebista de 280
deputados, a única vez em que um partido teve maioria sozinho na Câmara,
mascarava uma divisão entre parlamentares de centro-esquerda — parte deles
deixaria o PMDB para fundar o PSDB em 1988 — e uma outra ala de “ex-arenistas”,
como o próprio presidente Sarney.
— O Centrão era o Arenão. Depois que
Bolsonaro tomou o lugar do PSDB como anti-Lula, passamos a ter uma direita mais
radical, mas ainda assim vários desses partidos estão na aliança do governo.
Eles também estavam nos governos anteriores do PT, só que hoje existe uma menor
harmonia, porque mudaram os atores do Congresso — analisa Weller.
Ele também avalia que governo e Congresso
passaram a “disputar uma fatia cada vez menor do Orçamento”, resultado de um
“problema fiscal que vem recrudescendo” e de mudanças na legislação, desde
2015, que tornaram obrigatório o pagamento de emendas parlamentares.
Deputado federal desde 1995 e ex-presidente
da Câmara, Arlindo Chinaglia (PT-SP) afirma que essa correlação de forças entre
Executivo e Legislativo, alterada primeiro pelo aumento de siglas na
redemocratização, foi aprofundada recentemente com a ascensão de uma
extrema-direita menos contida.
— Antes a direita não se apresentava como
tal, tanto que na Constituinte se cria o termo Centrão. O Congresso foi indo
mais à direita nos últimos anos — conclui.
Fatores combinados
Segundo Weller, a pulverização partidária
ocorreu a partir dos anos 1990 devido a “incentivos generosos” da legislação
brasileira, como a garantia de recursos públicos do fundo partidário e de tempo
de propaganda em TV. Além disso, a regra de coligação proporcional permitia, na
prática, que os partidos pequenos “dessem um pouquinho de tempo de TV e
recebessem um pouco dos votos dos partidos grandes”.
Em 2017, porém, o Congresso aprovou o fim das
doações de empresas para campanhas e a criação do novo fundo eleitoral, além de
ter estabelecido uma cláusula de barreira que exige percentuais mínimos de
votos e de deputados eleitos para que os partidos sigam tendo acesso aos
recursos. Essas regras, combinadas ao fim das coligações proporcionais a partir
de 2020, restringiram a margem de atuação dos partidos e viraram “incentivos
para a negociação de fusões”, segundo a pesquisadora Joyce Luz:
— Se você tem menos partidos, isso tende a
aglutinar preferências do Congresso.
Contemporâneo de Chinaglia na Câmara, o
deputado Cláudio Cajado (PP-BA), no oitavo mandato, elogia o enxugamento do que
classifica como “legendas de aluguel”, mas vê necessidade de outras medidas que
deem maior coerência partidária:
— Um deputado não pode chegar em postos na Mesa Diretora, presidência de comissões ou relatorias indicadas pelo partido e defender uma visão totalmente diferente do que o programa partidário prega.
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