Folha de S. Paulo
Os EUA vão pegar uma gripe; e nós precisamos
nos preparar para não pegarmos pneumonia
A latino-americanização dos Estados Unidos
continua de vento em popa. Trump está causando recessão somente por sua
inconsistência. Ao prometer uma coisa e mudar de ideia, ameaçar com tarifas
e voltar atrás e demitir
funcionários somente para recontratá-los uma semana depois, o governo Trump
joga as expectativas no fundo do poço, de onde vai demorar para a economia
americana sair. O modelo do Federal Reserve de previsão do PIB já
aponta contração de 2,4% para o primeiro semestre.
Esse tipo de incerteza é bem comum no Brasil. Políticas que são anunciadas, mas ficam marinando no Congresso, ou ações revertidas rapidamente tornam investimentos de longo prazo menos atrativos.
No caso americano, muitas empresas americanas
estão paralisadas. E isso depois de gastarem rios de dinheiro se preparando
para medidas que foram canceladas. Foram milhares as reuniões em multinacionais
para organizar cadeias de produção com mudanças tarifárias. A perda em
eficiência vai contaminar toda a economia. E isso sem contar no freio do
consumo.
"Quando fizer o bem, faça-o aos poucos.
Quando for praticar o mal, é fazê-lo de uma vez só." Há uma razão para
qual o famoso conselho de Maquiavel continue atual. Economias modernas
funcionam em grande parte à base de expectativas. Quando a sociedade espera
maldades, mas não sabe o tamanho ou quando elas vão vir, consumo e investimento
travam. As medidas de incerteza de política econômica estão maiores do que no começo da pandemia. Ou seja, Trump
parece mais caótico do que um vírus que parou a economia global por meses.
Mais de 200 mil dos 3 milhões de funcionários públicos federais já foram
demitidos. O problema é ninguém saber quantos mais vão perder o emprego. O
governo anunciou que metade
dos funcionários do Departamento de Educação será demitida. Mas será
realmente esse número? Mais? Menos? Ninguém sabe.
Assim, em vez de uma redução de consumo de
parte da força de trabalho, é possível que a maioria dos 3 milhões de
funcionários esteja segurando as contas, com impactos gigantescos sobre
economias locais. Combinado com as empresas multinacionais segurando investimentos,
pois não sabem como se proteger das disrupções das cadeias globais de valor, a
recessão é certa.
A crise já chegou às empresas de setores não
relacionados com as medidas de Trump. A Delta Airlines foi clara no seu anúncio
mais recente para investidores: os lucros serão menores por causa do aumento da incerteza econômica generalizada.
Nem sempre dá para afirmar por que o mercado acionário desabou, já que sempre
há dezenas de choques, positivos e negativos, afetando a economia
simultaneamente. No caso da queda recente dos mercados globais, só há uma
razão: aumento dramático da incerteza sobre a economia americana.
O mais engraçado é ver Trump
repetindo a palestrinha de
presidentes latino-americanos, de que mercados financeiros estão
exagerando e não importam muito. Bolsas importam porque sinalizam
expectativas de investimentos. Essa ladainha e o descaso com políticas
consistentes ao longo do tempo são o que mantêm a região firmemente
presa na armadilha da renda média.
Os EUA vão pegar uma gripe. E nós? É melhor
nos prepararmos para não pegarmos pneumonia.
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