sábado, 15 de março de 2025

Câmbio em marcha forçada - Luiz Gonzaga Belluzzo e Manfred Back

Muito além do “risco fiscal”, países de moeda frágil, como o Brasil, se dilaceram entre controlar a inflação e crescer

Nos idos de 1999, o nosso Brasil varonil adota o regime de câmbio flutuante. Naquele momento, não por convicção, mas por necessidade. Após uma crise aguda no balanço de pagamentos, vítima de uma fuga maciça de dólares para o exterior, no segundo semestre de 1998, o País ficou praticamente sem reservas internacionais.

Nosso Banco Central tenta defender a banda cambial, intervindo nos contratos de dólar futuro. Em 1999, o Banco Central tinha a prerrogativa de intervir no mercado futuro.

Hoje, não!

A forte desvalorização do real naquele momento promoveu a adoção do Tripé Macroeconômico. A tríade (ou mantra) rezava: regime de meta de inflação, câmbio flutuante e superávit primário. Nosso tripé sempre foi manco: os anos em que o Banco Central se aproximou da meta de inflação registram juro alto, atração de capitais externos, arbitragem e câmbio valorizado.

As continuadas flutuações do real diante das moedas “fortes” (dólar, euro) suscitaram uma avalanche de opi­niões a respeito do fenômeno monetário-financeiro internacional. Peço licença ao eventual leitor para sublinhar monetário-financeiro e internacional.

O pedido ao leitor deita raízes na sobrecarga de opiniões que se derramam em queixas que atribuem à irresponsabilidade fiscal os sucessivos e intensos declínios de valor do nosso real diante do patrono do sistema monetário internacional, Mister Dólar.

Incursões na história: 

Começamos com a estagflação dos anos 70 do século passado. Naqueles tempos, a continuada desvalorização do dólar foi enfrentada com a elevação da policy ­rate deflagrada por Paul Volcker em 1979. A elevação dos juros foi apresentada, então, como uma medida destinada a alcançar o objetivo doméstico de controle da inflação, mas o efeito mais relevante para a economia internacional foi a recuperação do papel do dólar como moeda-reserva.

A forma como ocorreu a recuperação do dólar, como moeda-reserva e de denominação das transações comerciais e financeiras, promoveu profundas alterações na estrutura e na dinâmica da economia mundial. Nas três décadas seguintes, à sombra do fortalecimento do dólar, os Estados Unidos promoveram as políticas de abertura comercial e impuseram a liberalização financeira urbi et orbi.

O estudo do Banco de Compensações Internacionais (BIS) – The ­Transmission of Unconventional Monetary Policy to Emerging Markets – admite que há consenso a respeito da predominância dos fatores “externos” sobre os fatores internos na determinação dos fluxos de capitais.

Reza o relatório: 

“Os Bancos Centrais das economias emergentes têm enfrentado desafios políticos decorrentes tanto da apreciação da taxa de câmbio quanto da depreciação nas últimas duas décadas. Durante a década anterior à crise de 2008, e desde 2009, os diferenciais de taxas de juro e crescimento resultaram em entradas substanciais de capital e pressões de apreciação da taxa de câmbio. Em contraste, grandes ­saí­das de capital durante maio–setembro de 2013 e início de 2014 foram acompanhadas por fortes depreciações cambiais. Globalmente, na maioria das economias emergentes, as taxas de câmbio efetivas nominais depreciaram-se significativamente e foram voláteis entre 2007 e 2013”.

O economista Claudio Borio, do Banco de Compensações Internacionais, já desvelou a verdade que a maioria dos analistas se esforça por esconder sob a rica tapeçaria de seus inefáveis saberes fiscalistas. A morfologia dos movimentos de capitais é intrinsecamente pró-cíclica em sua recorrência maníaca, que vai da abundância de grana estrangeira às paradas súbitas e daí às crises financeiras e bancárias. Esse “eterno retorno do mesmo” ­(Nietzsche, tenha piedade) está determinado pela interação entre a liberalização das contas de capital, a emergência das economias “emergentes” como polos de atração da movimentação financeira e o papel dos Estados Unidos como provedores de ativos líquidos de “última instância”, os títulos do Tesouro americano.

A interpenetração financeira suscitou a diversificação dos ativos à escala global, o inchaço dos mercados futuros de câmbio e juros e, assim, impôs a “internacionalização” das carteiras dos administradores da riqueza, o que coloca formidáveis desafios às políticas monetárias. Diante da enxurrada de capitais empenhados na arbitragem com taxas de juro e na especulação desaçaimada com suas moedas, os emergentes levam surras periódicas dos agentes da finança dotados de expectativas racionais.

Num ambiente internacional de livre movimentação de capitais, os Bancos Centrais dos países de “moeda fraca” encontram dificuldades em manter, simultanea­mente, boas condições de crédito doméstico e a estabilidade de suas moedas.

Nas pegadas da globalização financeira, o Brasil manteve por 20 anos uma combinação câmbio-juro hostil ao crescimento da indústria manufatureira e amigável à arbitragem sem risco.

Diante de frequentes episódios de aguçamento da instabilidade cambial, as vozes de sempre descarregaram as culpas sobre os ombros das “condições internas”. Proclamam – sempre e sempre – os danos do “risco fiscal”, exibido como um pecado irremissível. Ignoram que os países de moeda não conversível se dilaceram entre o objetivo de manter a inflação sob controle e o propósito de não danar o crescimento ou colocar em risco a estrutura industrial e, consequentemente, o “arcabouço” de geração de renda e emprego. No Brasil, a derrocada exportadora da indústria faz parceria com a invasão das importações de produtos manufaturados, prenhes de incentivos e subsídios oferecidos generosamente pelos competidores espertos.

Seja como for, a sucessão de episódios valorização/desvalorização demonstra que a almejada correção dos chamados desequilíbrios globais vai exigir regras não compatíveis com o sistema monetário internacional em sua forma atual. O movimento dos BRICS revela a reação de um conjunto de países diante dos percalços a eles causados por uma estrutura financeira global monetariamente hierarquizada, comandada pelo poder do dólar.  

Publicado na edição n° 1353 de CartaCapital, em 19 de março de 2025.

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