O Globo
Vemos críticas não ser consideradas porque
são percebidas como acusação moral ilegítima
A polarização não é apenas a separação da sociedade em dois campos políticos antagônicos. Com ela, vêm também a desqualificação do adversário e insensibilidade às suas críticas. Quando instituições são hegemonizadas por um dos polos, seu caráter público é comprometido porque as autoridades que as controlam sentem que não precisam responder a críticas “desqualificadas”. Precisamos entender como opera esse mecanismo e atuar em sentido contrário, para garantir que sigam funcionando de modo republicano num mundo dividido.
Uma famosa história da infectologia serve de
ilustração sobre esse ponto. Em meados do século XIX, a febre puerperal, após o
parto, era amplamente disseminada e matava até 30% das pacientes que davam à
luz nos hospitais. O médico húngaro Ignaz Semmelweis, que trabalhava em Viena, notou que o
índice alto de mortalidade só existia na ala atendida por médicos
profissionais, enquanto na ala das parteiras e doulas o índice era menor.
Quando um cirurgião, colega de Semmelweis, morreu com os mesmos sintomas das
parturientes depois de se cortar acidentalmente com o bisturi, ele teve uma
intuição: os médicos carregavam partículas infecciosas dos cadáveres que
manipulavam noutras alas do hospital para as mulheres em trabalho de parto.
Semmelweis ordenou então que todos os médicos
lavassem as mãos com uma solução de cloro antes de atender as pacientes. Os
resultados foram imediatos: a taxa de mortalidade caiu para menos de 2%. Foi
uma das primeiras descobertas médicas baseadas no que mais tarde se tornaria a
teoria dos germes. Mas, apesar das estatísticas mostrando a eficácia de lavar
as mãos, a comunidade médica reagiu com hostilidade. Muitos médicos se
recusaram a aceitar que eles próprios eram responsáveis pela morte das
mulheres. O próprio diretor da maternidade se recusou a implementar
permanentemente o protocolo de lavagem das mãos. Semmelweis terminou demitido e
caiu em descrença. Aos 47 anos, foi internado à força num asilo psiquiátrico
na Hungria,
onde morreu em decorrência de maus-tratos.
O episódio é conhecido e discutido na
filosofia da ciência. Para Thomas Kuhn, mostra como a ciência resiste à mudança
de paradigmas. Para Karl Popper, evidencia as deficiências de uma ciência que
não aceita a falseabilidade de crenças prévias. Na historiografia da medicina,
porém, um elemento é destacado: os médicos da época de Semmelweis não aceitavam
que matavam suas pacientes por não lavar as mãos. Não apenas rejeitaram a
ideia, mas ficaram ofendidos e indignados com a sugestão de que eram os responsáveis
pelas mortes. O argumento de Semmelweis não foi recebido como descoberta
científica, mas como acusação moral e pessoal que tornou a comunidade médica
completamente surda às críticas.
É fácil ver o paralelo com a política
polarizada. Na polarização, também vemos críticas não ser consideradas porque
são percebidas como acusação moral ilegítima.
Nas universidades, não levamos em
consideração as críticas feitas pela direita de que há falta de pluralismo
político nas ciências humanas e sociais. Não as escutamos porque as vemos como
um ataque ilegítimo, vindo de atores desqualificados política e intelectualmente.
Acontece o mesmo, de maneira invertida, com a polícia, que apenas despreza as
críticas da esquerda a seus abusos de autoridade. Para a polícia, elas não vêm
de pessoas de bem cuja preocupação precisa ser levada em conta. Vemos a mesma
situação também na relação da Justiça brasileira com certos movimentos sociais
de direita. Seus apelos, mesmos os razoáveis, nunca são ouvidos porque vêm de
quem a Justiça entende atacar a democracia.
Universidade, polícia e Justiça não servem
apenas a uma parte, mas à coletividade. No decorrer do tempo, o fosso que
separa as instituições de seus críticos só se aprofunda, com as críticas se
tornando cada vez mais passionais e indignadas, enquanto as posturas
institucionais são cada vez mais consolidadas, num ciclo de reforço da
parcialidade e alienação institucional.
Se queremos preservar o caráter republicano
de nossas instituições, elas precisam reaprender a ouvir. Críticas incômodas
não devem ser descartadas como ataques, mas analisadas com consideração e
compromisso público. Olhem para a História e olhem para o exterior.
Instituições que ignoram o que diz uma parte grande da sociedade não apenas
traem sua função pública, mas pavimentam seu próprio colapso.
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