quarta-feira, 26 de abril de 2017

O funcionalismo e a greve geral | Cristiano Romero

- Valor Econômico

Adesão a movimento será maior no serviço público

As centrais sindicais prometem promover, na sexta-feira, "greve geral" com o objetivo de protestar contra a tramitação de duas reformas institucionais propostas pelo governo: a trabalhista e a previdenciária. De antemão, já está claro que as categorias que mais vão aderir ao movimento são as do serviço público. A tática é paralisar principalmente os transportes, impedindo que a maioria dos trabalhadores saia de casa para trabalhar.

A participação de funcionários públicos tem um lado anedótico - quando era sindicalista, o ex-presidente Lula costumava dizer que, sem corte de ponto, greve de funcionário público é férias - e outro bem mais sério. Quando se debatem contra mudanças na superdeficitária Previdência, os empregados do serviço público estão apenas defendendo seus interesses, que eles sabem contrários ao da maioria da população brasileira.

Em 2003, Lula chegou ao poder e, em poucos meses, enviou ao Congresso Nacional projeto de emenda constitucional propondo a unificação das regras de aposentadoria de funcionários públicos e trabalhadores celetistas (INSS). Parte da base parlamentar de apoio ao governo e toda a oposição simplesmente não entenderam aquilo: "Como? Lula quer acabar com privilégios dos funcionários públicos?".

A perplexidade se justificava: os sindicatos das principais categorias do funcionalismo eram filiados à Central Única dos Trabalhadores (CUT), ligada ao PT. A curiosa aliança existente entre partidos de esquerda e sindicatos do funcionalismo se deu no Brasil porque, nos estertores da ditadura, ambos tinham em seus discursos a defesa de um Estado forte, centralizador e intervencionista - o Estado que os militares criaram, inchado e razão primeira das injustiças sociais que grassam no país, e que já estava falido desde a crise da dívida externa, em 1982.

A batalha para a aprovação da PEC de 2003 foi renhida e custou a Lula, num primeiro momento, um naco do PT. Inconformada com a reforma, a então senadora Heloísa Helena liderou um pequeno motim e fundou o PSOL, partido que conseguiu se notabilizar no campo da esquerda por empunhar bandeiras mais anacrônicas que as do PT.

Embora nos tempos de sindicalismo tenha defendido algumas teses modernas, como o fim do imposto sindical e a regulamentação do direito de greve para funcionários públicos, Lula sentiu o golpe. Ao considerar excessivo o custo político da aprovação daquela reforma, o então presidente tomou uma decisão com sérias consequências para as finanças públicas nos anos seguintes: sem anunciar oficialmente ao distinto público, ele desistiu de regulamentar a reforma que aprovou em 2003.

A reforma de Lula instituiu a contribuição dos aposentados para a previdência - medida que o governo de Fernando Henrique Cardoso não conseguiu aprovar no Congresso - e estabeleceu que, a partir da regulamentação daquela emenda constitucional, quem entrasse no serviço público passaria a se aposentar pelas regras do INSS até o teto e, se quisesse, complementaria aquele valor contribuindo para um fundo de pensão a ser criado pela União. Na prática, a reforma de Lula acabava com uma velha injustiça: a aposentadoria integral dos funcionários públicos.

Mas, sem regulamentação, apenas a contribuição dos inativos passou a vigorar. Lula ficou mais sete anos no cargo, durante os quais, ordenou que esquecessem a reforma que ele aprovou com enorme dificuldade no Congresso. Nesse período, contratou dezenas de milhares de funcionários públicos, e estes vão se aposentar pelas regras antigas.

Numa das poucas decisões sensatas de sua ruinosa gestão, a ex-presidente Dilma Rousseff regulamentou a reforma da previdência promovida por Lula. A empreitada era fácil: bastava passar, por maioria simples, lei ordinária instituindo o fundo de pensão que administraria a aposentadoria complementar dos funcionários contratados a partir da vigência da nova lei - e assim foi criado o Funpresp.

Uma nota: a desistência de regulamentar a reforma da previdência foi o primeiro sinal de que não era para valer a intenção de Lula e do PT de abraçar o pragmatismo e reformar as ideias econômicas da esquerda. A partir dali, Lula se convenceu de que era preciso fazer um aceno à esquerda, ideia que se tornou uma obsessão em 2005, com o escândalo do mensalão que o enfraqueceu e quase o tirou da presidência. A ascensão de Dilma, que estava à esquerda de todos no PT, se deu justamente naquele momento - como a história é irônica, Dilma regulamentou a reforma "neoliberal" de Lula, mas também destruiu sua herança na macroeconomia por considerá-la desde sempre... "neoliberal". Vá entender...

O tema previdenciário voltou porque não há futuro para o Brasil sem mudanças drásticas no regime atual. De saída, é preciso considerar uma questão de natureza ética - as diferenças ainda existentes entre as regras aplicadas a trabalhadores do setor privado e do setor público - e outra, atuarial: o Brasil é um dos poucos países do mundo onde é possível se aposentar aos 50 anos, sendo que a expectativa de vida dos brasileiros é superior atualmente a 70 anos.

Quanto maior a expectativa de vida e menor a idade de aposentadoria, mais tempo o Estado terá que arcar com os rendimentos dos aposentados. Mesmo tendo uma população relativamente jovem, o Brasil gasta com previdência o equivalente a quase 13% do PIB. O déficit anual é crescente (dados de 2016): R$ 151,9 bilhões no INSS e R$ 78,5 bilhões no regime dos servidores.

A temporada, claro, é rica em argumentos que, se fossem levados em conta, não reduziriam o rombo real em um centavo sequer. Alguns, por exemplo, fazem a seguinte afirmação: a previdência quebrou porque JK usou dinheiro da previdência para construir Brasília e também porque as empresas devem bilhões de reais ao INSS - a maioria dessas firmas não existe mais e as que existem e devem não pagam por absoluta incapacidade; outras não pagam porque a cobrança é ineficiente.

Outro argumento: o regime próprio de previdência dos servidores públicos é deficitário porque a Constituição obrigou o governo a bancar as aposentadorias de funcionários que nunca contribuíram e fez o mesmo, no regime geral (INSS), com os aposentados rurais. Se essas benesses fazem parte do pacto social inscrito na Constituição e todos vivemos sob a égide da Carta Magna, logo, todos devem pagar por ele e não apenas os setores da sociedade não representados em Brasília.

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