- O Estado de S. Paulo
Trump não entende que suas políticas provavelmente teriam exatamente o efeito de elevar os déficits externos
No fabuloso livro de Gabriel García Márquez, José Arcadio era o patriarca da família Buendía, homem empreendedor e extravagante, alimentado por sonhos de grandeza. Fundador da cidade de Macondo, Buendía era orientado pelo cigano Melquíades, que alimentava suas extravagâncias. Infelizmente, José Arcadio enlouqueceu e foi amarrado a uma árvore. Amarrado permaneceu, mesmo depois de libertado das cordas que o mantinham preso.
Donald J. Trump não é o patriarca da família Trump, mas espécie de José Arcadio da segunda geração com jeito de patriarca. É extravagante, sonhos de grandeza o alimentam, como bem revela seu mote de campanha. É orientado por gente de todo o tipo, mas há um ar de cigano Melquíades na Casa Branca, na pele do nacionalista-populista Steve Bannon. Ao final desta semana, Trump completará 100 dias como presidente dos Estados Unidos, período que costuma delinear as chances de que o novo governo consiga emplacar durante o mandato a agenda de reformas e políticas que o elegeram. O que fez Trump nesses 100 dias? Mais fácil dizer o que Trump não fez.
Trump não conseguiu acabar com a reforma da saúde de Obama – o Obamacare – e não conseguiu substituí-la por sua própria proposta. Aprovar a proposta do partido Republicano era fundamental para abrir alguns espaços no orçamento por meio da redução de benefícios aos mais pobres, isto é, por meio do encolhimento dos gastos com o Medicare. O corte teria sido de US$ 800 bilhões, caso a proposta tivesse vingado. A classe média e os mais pobres teriam sido atingidos, mas o espaço orçamentário permitiria “massiva” – palavra de Trump – redução dos impostos, sobretudo para os mais ricos.
Portanto, era preciso aprovar o Trumpcare para pôr em marcha o ambicioso plano de reforma tributária – o corte de impostos seria compensado pela redução do Medicare. Como o Trumpcare caiu por terra, está agora na berlinda a proposta de reforma tributária. Os mais otimistas ainda acham que o corte ambicioso de impostos será implantado, ainda que isso leve a um aumento do déficit público. Os menos otimistas, ou realistas, acreditam que Trump terá apoio para corte bem menor do que o almejado, uma vez que não há coesão dentro de seu partido – haja vista o destino do Trumpcare, derrotado pelos próprios Republicanos.
De um modo ou de outro, o corte de tributos aumentará o déficit público, pressionará a inflação e os juros, e desembocará em uma valorização do dólar prejudicial ao déficit externo dos EUA. Trump não gosta de déficits externos, mas não entende que suas políticas provavelmente teriam exatamente o efeito perverso de aumentá-los. Melquíades sussurra em seu ouvido: não se preocupe! O corte de impostos aumentará o crescimento, o maior crescimento fará com que os impostos paguem por si. Quando Melquíades chamava-se Guido Mantega e tínhamos no poder uma matriarca, ouvimos a mesma história. Deu no que deu.
Se Trump não emplacou a reforma da saúde, tampouco a reforma tributária – até o momento – ele também não acusou a China de manipular sua moeda, como dissera que faria em campanha. Talvez tenha sido o medo dos mísseis da Coreia do Norte, talvez tenha sido obra dos outros encantadores de serpentes da Casa Branca, aqueles que entendem um pouco mais de economia. Trump não solapou o México com tarifa de 35% sobre seus produtos, e não enterrou o Nafta – por ora.
O que fez Trump? Assinou papelada, profusão de decretos. Alguns deram com os burros n’água, como o decreto que barrava refugiados e visitantes de alguns países islâmicos. Outros tornaram-se nova política de imigração, política dura, política que vem separando famílias país afora e diminuindo as chances de estrangeiros que sonhavam estudar ou trabalhar nos Estados Unidos. Outros ainda são ordens para que o governo faça exatamente o que já faz. Vários desmantelam regulações em áreas diversas – do meio ambiente às regulações financeiras. Punhado determina que estudos sobre o comércio dos EUA com outros países sejam feitos para determinar sabe-se lá o quê.
De tudo isso, fica uma imagem: a de um presidente que ronda a Casa Branca à noite de roupão enquanto ouve o noticiário na televisão. O presidente dos cem dias, preso em sua própria solidão.
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