Sem nunca ter publicado um livro em vida, o pensador italiano, um dos mais influentes do século XX, tem sua obra revisitada e reinterpretada em novos livros, 80 anos após a sua morte
Leonardo Cazes | O Globo / Segundo Caderno
O regime fascista de Benito Mussolini não queria criar um mártir. Em 24 de abril de 1937, após dez anos e cinco meses de prisão, decidiu soltar Antonio Gramsci, principal liderança do Partido Comunista Italiano (PCI). Após uma década de maus tratos no cárcere, Gramsci, de saúde frágil desde a infância, já estava condenado. Morreu três dias depois, numa clínica em Roma, aos 46 anos. Sem nunca ter publicado um livro em vida, tornou-se um dos mais influentes pensadores do século XX, com sua original e heterodoxa contribuição ao marxismo. E, 80 anos após sua morte, seus trabalhos são lidos, relidos e, em alguns casos, até “reescritos”.
DIVULGAÇÃO
Desde a década de 1990, ganharam força as pesquisas que buscam reconstituir a produção de Gramsci à luz da filologia histórica. Seguindo essa linha, a partir de 2007 começou a ser editada na Itália a “Edição nacional dos escritos de Antonio Gramsci”, sob responsabilidade da Fundação Instituto Gramsci, com objetivo de estabelecer a versão definitiva de todos os seus manuscritos. Esse trabalho vem dando novo impulso aos estudos da obra do pensador italiano, agora livre das amarras políticas do século passado, como é o caso de dois livros recém-lançados no Brasil: o ambicioso “Dicionário gramsciano”, organizado por Guido Liguori e Pasquale Voza, e “Modernidades alternativas: o século XX de Antonio Gramsci”, de Giuseppe Vacca, ex-diretor do Instituto Gramsci.
Isso porque, além dos cerca de 2 mil textos políticos e jornalísticos publicados na imprensa entre 1914 e 1926, a parte mais importante da produção do pensador italiano são os seus 33 cadernos manuscritos, feitos na prisão entre 1929 e 1935, mais conhecidos como “Cadernos do cárcere”. É no período de reclusão que Gramsci desenvolve seus conceitos mais conhecidos, como “hegemonia”, “revolução passiva”, “sociedade civil” e a “filosofia da práxis”. Contudo, pela própria natureza dos cadernos e pelas limitações impostas pelos fascistas, trata-se de uma “obra em progresso”, na definição de Liguori, professor da Universidade da Calábria e presidente da seção italiana da International Gramsci Society (IGS).
Para Vacca, os esforços em torno da “Edição nacional” favoreceram a formação de uma nova geração de estudiosos que se dedicam a uma “leitura diacrônica” dos “Cadernos do cárcere”, reconstruindo suas conexões com a história europeia e mundial do século XX. Essa “leitura diacrônica” é uma forma de montar o mosaico do seu pensamento, já que o desenvolvimento dos seus conceitos está espalhado pelos cadernos.
— A “Edição nacional” é a primeira edição crítica integral dos escritos de Gramsci tratados com critérios exclusivamente filológicos e segundo o método histórico, sem sugerir nenhuma interpretação e restituindo textos e contextos de sua obra a seu tempo, como é obrigatório para um clássico do pensamento — afirma Vacca, que no seu “Modernidades alternativas” analisa alguns dos principais conceitos de Gramsci.
Na mesma trilha, o “Dicionário gramsciano” busca realizar um trabalho que o pensador italiano não teve tempo de concluir em vida: a sistematização de seus principais conceitos. Trata-se de um trabalho coletivo dos pesquisadores da IGS desde o ano 2000. No livro, trabalharam cerca de 60 especialistas e estudiosos, italianos e estrangeiros, incluindo brasileiros. Liguori vê um renascimento dos estudos gramscianos após o fim da União Soviética:
— Depois do fim do PCI, o partido de Gramsci, e da União Soviética, o seu pensamento tem sido interpretado de um modo menos diretamente condicionado pela luta política. Nos países anglo-saxões, ele se tornou um autor de referência para os “Estudos culturais”, o que lhe deu fama, mas também mutilou grande parte de sua natureza política. Um caso interessante é o dos “estudos subalternos”, nascido na Índia, que difundiu por todo o mundo a categoria gramsciana de “classe subalterna”, em oposição à “classe hegemônica” — aponta Liguori.
Os “Cadernos do cárcere” foram editados pela primeira vez entre 1948 e 1949, após a Segunda Guerra Mundial, mas o texto sofreu diversas alterações e censuras devido às discordâncias de Gramsci com a linha política adotada pelo PCI, à época comandado por Palmiro Togliatti. A primeira edição crítica dos “Cadernos” só foi publicada na Itália em 1975, graças ao trabalho de Valentino Gerratana. A partir daquela década, segundo Vacca, houve apropriações equivocadas das ideias de Gramsci com objetivos políticos imediatos. Ele cita a “presumida hegemonia neoliberal”, que não leva em conta que o conceito gramsciano de hegemonia implica “a capacidade das classes dominantes de produzir estabilidade e gerar consenso”.
RECEPÇÃO BRASILEIRA
No Brasil, a situação foi parecida. Um dos tradutores da edição brasileira dos “Cadernos” (Civilização Brasileira), ao lado de Carlos Nelson Coutinho e Luiz Sérgio Henriques, o professor Marco Aurélio Nogueira, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), afirma que o contexto brasileiro do final das décadas de 1970 e 1980 influenciou a recepção das ideias gramscianas.
— Havia muita resistência ao pluralismo e ao valor intrínseco da democracia, em torno do qual não deveria haver disputas. O marxismo brasileiro também era raso, sobretudo na reflexão política — diz Nogueira. — Além do mais, Gramsci é um pensador marxista heterodoxo e de difícil assimilação. São coisas que fazem com que ele gere tantas controvérsias.
Contudo, o professor aponta que as suas ideias foram decisivas para encaminhar os grupos de esquerda em direção à luta democrática contra a ditadura. Esse movimento estava alinhado com a própria reorientação política dos partidos comunistas na Itália, na França e na Espanha, repercutidas no Brasil por intelectuais chamados então de “eurocomunistas”.
— O marxismo gramsciano deu à esquerda uma concepção “processual” da reforma social, ou seja, uma ideia de “revolução socialista” que se faria mediante processo de longo prazo e não de “explosões”. Isso impulsionou a passagem de praticamente todas as correntes para o campo democrático — explica Nogueira. — Sem o estímulo fornecido pela sua “plataforma” política e intelectual, é provável que a história da transição tivesse sido diferente.
Gramsci viveu e produziu no conturbado período entreguerras, num mundo chacoalhado pela Revolução Russa de 1917 e pela ascensão do fascismo — do qual foi vítima — na Itália, e do nazismo na Alemanha. Morto em 1937, não viu a queda dos seus algozes nem a crise do regime comunista soviético, que já criticava no início dos anos 1930. No presente de crises e ascensão da extrema-direita na Europa, os estudiosos concordam que Gramsci segue atual.
— Gramsci diz que o poder está assentado muito mais nos aspectos “hegemônicos” do que no aparato “repressivo”. Ele também não tinha uma visão ingênua da democracia: um consenso sobre um programa político deve ser criado bem antes do dia da eleição — diz Liguori.
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