sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Para historiador, comparação de Bolsonaro a nazifascismo é indevida

Historiador diz que forças progressistas têm dificuldade de entender fenômeno bolsonarista

Por Fernando Taquari | Valor Econômico (23/1/2020)

SÃO PAULO - O autoritarismo representa a melhor definição para o governo Bolsonaro e as comparações com o fascismo e o nazismo, do ponto de vista teórico, correspondem, por ora, a um exagero. Essa é a opinião do historiador Antonio Pedro Tota, da PUC-SP. As associações entre o bolsonarismo e o nazismo voltaram à tona após a demissão de Roberto Alvim da Secretaria de Cultura, na esteira de um vídeo com declarações reproduzidas de um discurso de Joseph Paul Goebbels, ministro da Propaganda nazista.

Em sua avaliação, o termo fascista tem sido utilizado sem a devida compreensão. A gestão de Bolsonaro, segundo o professor, deve ser classificada como reacionária e de extrema direita. Autor de diversos livros, como “O Imperialismo Sedutor” e “O Amigo Americano”, Tota diz que falta ao presidente uma estrutura partidária organizada para simbolizar uma ameaça a ponto de ser comparado ao nazismo. Ele aponta que os evangélicos, em sua maioria apoiadores do governo, podem oferecer essa estrutura partidária ao bolsonarismo, mas refuta comparações entre a atuação das igrejas e o Partido Nacional Socialista Alemão.

Tota lembra que a SA - uma milícia militar nazista - tinham uma atuação social que oferecia aos desamparados uma sensação de pertencimento, mas o paralelo termina aí: “Não quero comparar evangélicos aos nazistas. Há grandes diferenças”, afirma. Ele pontua que “os evangélicos querem aumentar cada vez mais sua bancada e a influência no Congresso”. “Não sei se conseguem fazer um partido, mas podem aderir ao Aliança pelo Brasil, em construção pelos aliados do presidente”, acrescenta.

Apesar das distinções, Tota enxerga pontos em comum entre o bolsonarismo e os regimes de Adolf Hitler e Benito Mussolini. Para ele, Bolsonaro atua politicamente mais com a emoção e contra a razão, que é a marca do fascismo e, sobretudo do nazismo. O professor pondera, porém, que o presidente pode inaugurar, envolto em um viés autoritário, um novo tipo de governismo, acuando cada vez mais outros Poderes.

Em meio às aulas, o professor tem se dedicado a escrever mais um livro: “1945, o Ano sem fim”. A ideia, afirma Tota, que se especializou em história contemporânea, com ênfase no processo de americanização da América Latina, é mostrar que continuamos hoje presos ao que aconteceu naquele ano, quando o então presidente Getúlio Vargas foi deposto pelos militares e encerrou o chamado Estado Novo, que identifica como um período autoritário.

Em sua pesquisa, o historiador de 77 anos encontrou um documento no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), no Rio, com uma carta do educador e intelectual Anísio Teixeira, de abril de 1945, em que ele diz que as forças progressistas do país, com o fim do Estado Novo, perderam a oportunidade de se unir e que cada vez que se chegou perto desta união houve um boicote. Ele faz um paralelo com a situação atual.

Veja a seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: A demissão de Alvim da Secretaria de Cultura determina um limite do que é inaceitável?

Antonio Pedro Tota: No fim, pesou a pressão da comunidade judaica. A atriz Regina Duarte, que deve substituir Alvim, não apoia essa política. A maior parte das pessoas que votaram em Bolsonaro não faz a menor ideia de quem seja Goebbels e desconhece o que era o nazismo. Eles falam em comunismo, embora não tenham também ideia do que é, por conta da retórica de Bolsonaro. Ser anticomunista hoje é moleza. Você está chutando cachorro morto.

Valor: Como o senhor viu a reprodução de um discurso nazista?

Tota: Alvim não reproduziu o discurso de qualquer nazista. Ele escolheu Goebbels, o grande ideólogo da perspectiva de como organizar um partido pela propaganda. No filme “Triunfo da Vontade”, de Leni Riefenstahl, que retrata o 6º Congresso do Partido Nazista, há uma passagem do discurso de Goebbels em que ele fala que era muito melhor você conquistar o coração de um povo pelas palavras do que usar uma arma. Naquele momento, eles estavam no poder há um ano e oito meses e já tinham conquistado o coração do povo alemão. Ainda falta muito para nos aproximarmos do nazismo, o que não deixa de ser perigoso. Mas não sei se o governo Bolsonaro está conquistando o coração dos brasileiros. Conquistou o de uma parcela.

Valor: O vídeo de Alvim e outros gestos do governo Bolsonaro legitimam a tese daqueles que falam em uma gestão fascista ou nazista?

Tota: Usa-se hoje com muita facilidade a palavra fascismo. É evidente que o Alvim tem essa tendência autoritária, ele pode ser rotulado de fascista, mas, até onde sei, não tem a teoria fascista escorando-o. A questão importante aqui é que Goebbels tinha um grande partido por trás do nazismo. O bolsonarismo não tem. Isso, talvez, seja um perigo, já que esse autoritarismo pode se disseminar sem uma organização. A organização do Partido Nazista era impecável e deu uma identidade para aquele montante de desempregados existente na Alemanha entre 1929 e 1933. Muitos se filiaram porque a SA dava sopa, uniforme, dinheiro, cigarro e, principalmente, a camaradagem e a sensação de pertencimento. As igrejas evangélicas, no caso brasileiro, cumprem esse papel. As pessoas conseguem até deixar as drogas quando são acolhidas. Não quero comparar evangélicos aos nazistas. Há grandes diferenças.

Valor: O senhor quer dizer que os evangélicos podem ajudar o bolsonarismo a criar um grande partido?

Tota: Eles podem oferecer ao bolsonarismo uma identidade partidária. Repare que eles querem aumentar cada vez mais sua bancada e a influência no Congresso. Não sei se conseguem fazer um partido próprio, mas podem aderir ao Aliança pelo Brasil, em construção pelos aliados do presidente da República.

Valor: Seria anacrônico, portanto, falar em fascismo ou nazismo no Brasil de hoje? O governo Bolsonaro representaria um outro tipo de autoritarismo?

Tota: O autoritarismo cabe melhor ao nosso caso atual. Já cometemos o erro de chamar o governo de Getúlio Vargas, entre 1937 e 1945, de nazista e totalitário. Não era nazista e tampouco totalitário. Era autoritário. O partido dele era fardado, o Exército que o sustentava. Numa conversa informal você até pode falar que o governo Bolsonaro é fascista. Mas pensar teoricamente como um governo fascista é um exagero. Diria até que é uma forma apressada e preguiçosa de classificar os eleitores do Bolsonaro.

Valor: Qual seria a melhor definição para este governo?

Tota: É um governo de extrema direita e reacionário. Não é um governo conservador. Muitos governos conservadores têm uma formação intelectual mais acurada. Basta lembrar de Winston Churchill. O curioso é que as forças progressistas estavam cegas e não faziam ou não fazem essa distinção. Por isso que o antipetismo se organizou via redes sociais. Foi nessa brecha que apareceu o Bolsonaro. As forças progressistas não conseguiram ainda entender isso.

Valor: O senhor acredita que o bolsonarismo veio para ficar?

Tota: É uma impressão. Bolsonaro vai testar cada vez mais as instituições. Mas não acho que sejam tão habilidosos politicamente. Como Alvim, este governo acredita mais nessa coisa emocional do que racional. O bolsonarismo é disperso e espontâneo, embora a administração nazista da Alemanha também tenha sido meio anárquica. Funcionava na fórmula erro e acerto, mas a Alemanha era dotada de uma máquina industrial moderna. E tinham como respaldo um partido organizado pela força da vontade. Um “O Triunfo da Vontade” aqui, na atual conjuntura, precisaria de uma organização partidária muito bem feita como na Alemanha nazista. Vamos ter um nazismo aqui? Acho que não. Mas será cada vez mais um governo autoritário.

Valor: Ainda assim o senhor enxerga pontos em comum entre o bolsonarismo e o fascismo/nazismo?

Tota: Claro! Uma delas foi essa tentativa de mostrar que a nossa cultura deve ser outra, heroica, nacional e dotada de grande capacidade de envolvimento emocional, como reproduziu Alvim do discurso de Goebbels. Acho que Bolsonaro não tem tanto trabalho para ser irracional e contra a razão, que é a marca do fascismo e, sobretudo do nazismo. Esse é outro ponto em comum, assim como a tentativa de releitura de episódios da história, como negar o golpe militar e as violações.

Valor: O senhor imaginava que a questão do nazismo e do fascismo voltaria à tona no país?

Tota: Não é um privilégio do Brasil. Nos Estados Unidos tem um partido neonazista importante, embora seja, teoricamente, proibido lá. É meio paradoxal. Você pode manifestar suas opiniões, por causa do artigo 1º da emenda da Constituição. Aqui as forças progressistas, de Itamar Franco até a Dilma Rousseff, ficaram preocupadas com questões menores após a ditadura militar. É importante a defesa das minorias, etc e tal. Mas tínhamos a construção de um país pela frente. Foi sendo gestada uma força reacionária enquanto PT e PSDB brigavam entre si, sem prestar atenção nessa massa de desempregados e desiludidos.

Valor: A democracia está em risco no Brasil?

Tota: Há um risco. Parece que estão testando as instituições e o Alvim foi longe demais. Talvez sua intenção fosse viabilizar alguma investida. Não será fácil instaurar uma ditadura. É capaz que aconteça alguma coisa do tipo do Viktor Orbán, na Hungria, com restrições à liberdade, ou algo como a Venezuela, de Nicolás Maduro, em que as eleições são manipuladas.

Valor: Aliados de Bolsonaro chegaram a argumentar que o Partido Nazista, denominado Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, era de esquerda por ter a palavra socialista no nome.

Tota: Não pode ser considerado um partido de esquerda e nem conservador, era reacionário e que, paradoxalmente, permitia as pesquisas mais modernas no campo das ciências. O título do livro de Jeffrey Herf sintetiza muito bem a questão: “O Modernismo Reacionário”. O nome do partido podia, e esse era o objetivo, confundir uma parte do povo alemão, já confuso no meio da disputa entre o Partido Social Democrata e o Partido Comunista.

Valor: Como assim?

Tota: O Partido Nazista atraia trabalhadores que se decepcionavam com o Partido Comunista ou com a socialdemocracia, ambos ligados ao marxismo. Para piorar as coisas, um dos mais importantes quadros do Partido Nazista, Ernst Röhm, comandante da SA, achou que deveria levar ao pé da letra as palavras socialista e trabalhadores. Queria fazer uma revolução socialista ao nacionalizar os bancos e as indústrias pesadas. E, pior, queria dissolver a Wehrmacht. Ora eram exatamente os dois maiores pilares do governo de Hitler. Röhm foi executado junto com todos os quadros dessa “esquerda” do partido.

Valor: Como o senhor avalia o papel das demais instituições?

Tota: Por ora, estamos sob a orientação da Constituição de 1988. Mas será que não está acabando o presidencialismo de coalizão? Bolsonaro parece que está em um movimento de ataque e recua, porque não tem força política no Congresso. Não descarto a possibilidade de emergir um novo estilo de governismo, em uma estratégia de encolher e pressionar o Legislativo. Bolsonaro precisa de uma força para fazer isso. Por ora, a que existe não é suficiente.

Valor: E os militares?

Tota: Bolsonaro também está em choque com os militares. O vice é um general, culto e que não liga tanto para ideologia.

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