quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Virtudes e defeitos

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO

A crise econômica internacional já está provocando efeitos na distribuição das classes sociais no país que foram detectados em pesquisa pela Fundação Getulio Vargas. Embora continue em crescimento e representasse, no final de 2008, 53,8% do total de brasileiros das seis maiores regiões metropolitanas, a classe C mantém seu desempenho graças mais ao efeito nocivo da crise nas classes A e B do que simplesmente ao crescimento virtuoso da economia que tira cidadãos das classes D e E.

Segundo pesquisa intitulada "Crônica de uma Crise Anunciada: Choques Externos e a Nova Classe Média", do Centro de Políticas Sociais do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getulio Vargas, coordenada pelo economista Marcelo Neri, a partir de setembro de 2008, quando se determina início da fase aguda da crise, com a quebra do banco Lehman Brothers nos Estados Unidos, há aumento da classe C e redução dos extremos dos estratos sociais.

"Pessoas que estavam mais no topo da distribuição estão caindo ou deixando de crescer", diz o estudo. A classe AB apresenta um crescimento negativo de 0,65% entre setembro e dezembro do ano passado. A classe C apresentou, nesse mesmo período, um crescimento de 1,24%, e as classes E e D continuam em queda de 2,51% e 1,23% respectivamente.

Segundo os dados da FGV, houve o aumento acumulado de 2004 a 2007 das classes C e AB de 26% e 42%, respectivamente, com correspondente redução da participação das classes D e E. A classe C - a nova classe média emergente - continuou em expansão de 3,7% comparando os extremos de 2008, chegando a 53,8%, e as classes A e B também ficaram 3,9% maiores no período, com queda das classes D e E de 6,8% e 8%, respectivamente.

A partir de setembro, porém, a pesquisa constatou que quem está perdendo mais são os que eram inicialmente mais ricos. Um exemplo: no período antes do agravamento da crise, 19 pessoas a cada cem que estavam na classe AB caíam para as classes mais baixas, e este número teve um aumento de cerca de 30%, subindo para 25.

Segundo o estudo da FGV, que aliás foi apontada pela revista americana Foreign Policy como um dos cinco melhores "think-tanks" do mundo em políticas públicas, há um claro "movimento de instabilidade" no topo da distribuição de renda, onde os sinais da crise são mais visíveis.

Este efeito é chamado de "contraelite", e se dá pelo tipo de crise, que afeta mais os setores exportador, formal, financeiro e imobiliário. O lado bom, segundo a pesquisa, é que esses setores são relativamente pequenos em relação ao conjunto da população.

Mesmo a indústria nas metrópoles industrializadas ocupa só 12% dos trabalhadores, uma pequena parte da mão-de-obra. Esses setores são também menos importantes no Brasil do que em outros países, e por isso a economia brasileira, que é relativamente pouco aberta, será afetada com menor gravidade.

Também o trabalhador brasileiro comum está mais protegido do que o trabalhador ocupado em setores mais modernos da economia. Para a FGV, o fator fundamental é a pujança do mercado interno, que continua aquecido "e isso vai fazer a diferença".

Paradoxalmente, os defeitos de nossa política econômica agora viraram virtudes, ressalta o trabalho da FGV. Mesmo não tendo sido uma decisão deliberada de planejamento de política, a nossa história nos teria levado a uma situação que é relativamente mais confortável em épocas de choques externos adversos, analisa o estudo.

O Brasil dispõe, segundo a FGV, de instrumentos de política pública à disposição em maior número e diversidade do que outros países. O Bolsa Família, que atinge hoje quase um quarto da população brasileira e chega aos de menor renda que consomem boa parte de sua renda, seria um exemplo, com efeito duplo: é bom em termos equitativos e em termos de aquecimento de demanda.

O aumento do salário mínimo, por sua vez, não tem o mesmo efeito na base da distribuição, aumenta a rigidez trabalhista, mas tem um efeito direto sobre demanda pelas vias dos programas sociais a ele vinculados.

O estudo da FGV trata o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) como se fosse o New Deal do presidente americano Franklin Roosevelt, programa que ajudou o país a sair da Grande Depressão. Mesmo admitindo que o PAC, ao ser lançado, não fazia muito sentido, o economista Marcelo Neri tira uma conclusão otimista de sua existência:

"O Brasil criou um New Deal antes que o risco de depressão fosse sequer anunciado. Àqueles que achavam que o Brasil estava com sorte antes, pelo crescimento da economia mundial, eu diria que sorte nós temos agora. É como se descobríssemos o que não sabíamos: compramos nos anos anteriores um bilhete, não de loteria, mas de seguro premiado".

Segundo o estudo, depois do fim da recessão de 2003, o Brasil vinha apresentando até 2006 um crescimento mais acelerado do que nas chamadas décadas perdidas, mas menor do que os demais países emergentes, ou desenvolvidos. Mais recentemente, "o Brasil começou a subir no ranking internacional de crescimento ano a ano, sem mudar o patamar da expansão, pois são os outros que estão desacelerando". Segundo as tabelas da revista britânica The Economist, em 2007, o Brasil foi o 33º no total de 43 países. Em 2008, se tornou o 21º, e, nas projeções para 2009, estamos em 8º lugar no ranking.

O estudo tem notícias boas, sem dúvida, mas terminei de lê-lo com a sensação desagradável de que estamos melhores porque estamos atrasados economicamente, temos programas assistencialistas, e só melhoramos na comparação internacional porque os outros pioram.

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