O grave estado de saúde do presidente Hugo Chávez impossibilitou-o de tomar posse, no último dia 10, para o exercício de um terceiro mandato presidencial, para o qual havia sido eleito. Esse fato frustrou o cumprimento de uma posse expressamente prevista pela Constituição do país, elaborada na vigência do chavismo. Acabou levando a uma juridicamente discutível fórmula voltada para dar continuidade ao seu regime de mando. Essa fórmula, que teve o respaldo do Legislativo e do Judiciário, afastou a via constitucional contemplada para uma situação dessa natureza: a realização de nova eleição em 30 dias.
Na perspectiva das relações internacionais, a análise desta situação passa por uma avaliação sobre em que medida a fórmula acima mencionada, que conferiu poder a Nicolás Maduro, ungido como vice-presidente pelo presidente Chávez em dezembro, no exercício do seu anterior mandato, configura ou não uma ruptura de ordem democrática nos termos do Protocolo de Ushuaia de 1998, do Mercosul, com o qual a Venezuela está comprometida. Também cabe levar em conta a Carta Democrática Interamericana de 2001, à qual a Venezuela está ligada como Estado-membro da OEA, ainda mais que serviu de base para deslegitimar a tentativa de golpe de Estado contra o presidente Chávez em 2002.
A cláusula democrática consagrada nos dois textos citados tem como objetivo realçar a importância das afinidades que resultam da forma compartilhada de conceber a vida em sociedade, seja para o desenvolvimento dos processos de integração (no caso do Mercosul), seja para reconhecer que a democracia representativa é indispensável para a estabilidade, a paz e o desenvolvimento da região (no caso da OEA).
A cláusula democrática guarda relação com as características ora mais homogêneas, ora mais heterogêneas dos regimes políticos dos Estados que integram o sistema internacional. A distinção homogêneo/heterogêneo deve-se a Raymond Aron. Em Paz e Guerra entre as Nações realça que a conduta dos Estados não se circunscreve à mera afirmação de interesses nacionais e à luta pelas posições de poder no plano internacional. No plano externo é movida também pelas ideias e pelos valores que norteiam, no plano interno, os seus regimes políticos.
Na vigência dos regimes autoritário-militares na América Latina, as afinidades provenientes da concepção política dos governantes daquela época levaram ao conceito das fronteiras ideológicas. As transições democráticas na região trouxeram uma contestação a essa visão autoritária do papel das fronteiras. A cláusula democrática foi fruto dessa realidade política. Parte do potencial de convergência cooperativa no campo econômico e estratégico, proveniente da proximidade no campo dos valores, tutelado pela cláusula democrática. Com efeito, no campo dos valores, a democracia, porque postula no plano interno o reconhecimento do Outro, favorece, no plano internacional, a aceitação das normas jurídicas, a moderação das pretensões e a limitação da violência nas relações entre os Estados que a praticam.
Bobbio ilustra as consequências para a vida internacional de um regime antidemocrático na sua análise do fascismo. Aponta que o fascismo se contrapôs muito mais à democracia do que ao socialismo e ao marxismo; realça que a violência era a sua ideologia e, por isso, a exaltação da guerra foi uma de suas características mais constantes; anota o significado da afirmação do primado da ação sobre o pensamento, que substitui o "penso, logo existo" pelo "agitamos, logo somos", e assinala que Mussolini via na democracia representativa e no seu antibelicismo a mediocridade de uma vida cotidiana cerceadora de uma ação voltada para a criação de uma "nova ordem".
Na vida de um sistema internacional há modalidades e gradações diversas de homogeneidade e heterogeneidade, variáveis em função das estruturas sociais e da dinâmica dos regimes políticos dos Estados. Assim, por exemplo, no momento atual, o componente democrático do "governo das leis" é muito mais nítido no Brasil e no Uruguai do que na Argentina. São as gradações e os matizes que tornam complexa a avaliação da condição democrática de um país.
Nessa avaliação, no caso específico da Venezuela, cabe examinar o tema da degeneração do poder democrático, seja por falta de título para o seu exercício, seja como resultado do abuso no seu exercício. O título para o exercício do poder do vice-presidente Nicolás Maduro é juridicamente discutível, mas foi respaldado pelo Legislativo, pelo Judiciário e pelo Executivo do país. Daí a importância de se examinar se provém de uma degeneração do poder democrático que ocorre quando se configuram significativos desrespeitos aos direitos humanos, à independência e à separação dos Poderes, à liberdade de expressão e de imprensa e à vigência plena do Estado de Direito.
O regime do presidente Chávez vem se caracterizando pelo crescente fomento da hiperpersonalização da política, que visa ao fortalecimento do Executivo e ao enfraquecimento dos vínculos e controles que caracterizam a arquitetura constitucional democrática em matéria de aquisição e exercício do poder. É representativo do primado da ação do governo de um homem que, lastreado numa autocracia eletiva, promoveu a subordinação do Legislativo e do Judiciário para permitir o culto à política como espaço para o pleno desenvolvimento da vontade da potência.
É por obra da natureza monocrática do regime político da Venezuela que a fórmula encontrada para manter, no momento, ainda que indiretamente, o mando do presidente Chávez se fez per leges, ou seja, por meio da lei, mas não sob o império do governo das leis. É por isso que ela é democraticamente discutível e juridicamente frágil. A evolução da conjuntura dirá se a democracia vai ou não enfraquecer-se ainda mais na Venezuela e se vai ou não contribuir para aumentar a heterogeneidade não democrática da região.
Celso, Lafer, professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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